FD: É o que acontece quando, num processo de trinta passos, você prevê encrenca no passo 13 e por isso não dá o passo 1.
Mas a encrenca pode ser real ou imaginada, a inibição pode ser saudável ou neurótica. As encrencas imaginadas são muitíssimo maiores do que as reais, pois imaginação não tem limites. O monstro imaginado pode ser tão assustador que você fica inibido até de conferir seu nível de realidade, se ele é tão monstruoso quanto se pensa.
Essa do monstro é a inibição neurótica; por isso, é objeto de investigação da psicanálise. Que crença problemática está construindo o monstro? Há alguma profecia do tipo, “ah, eu não vou dar certo na vida mesmo…”, que esteja te fazendo imaginar dificuldades insuperáveis? Você foi tão mimado que não suporta algo diferente do sucesso imediato? A investigar…
A outra não; a inibição saudável tem a ver com a singularidade do nosso desejo: se me dizem que eu devo fazer exercícios físicos “que são bons para você”, logo imagino o tédio e as dores musculares… e não faço nada.
“Qual a origem da fobia social, do medo de aparecer em público?”
Francisco Daudt: Vem da obrigação de ter que ser outra pessoa, porque você “sabe” que ser você não é o bastante.
Fazendo uma caricatura bem “Freud explica” (mas só pra provocar), você foi criado sob amor condicional: “eu te amarei se… você atender às minhas expectativas”. A partir daí a criança fica tentando ler o que esses pais esperam dela, tentando ser outra pessoa. Expressões como “você me decepcionou!” também ajudam.
A criança não entende a injustiça contida na proposta, mas certamente se perturba com ela. Seu Superego se constrói de forma supercrítica, em constante observação de seus atos, em permanente desqualificação do que você faz de espontâneo.
Como fruto dessa injustiça, uma grande quantidade de raiva é reprimida, pois é raiva contra alguém de quem sua sobrevivência depende… e a bomba-relógio está armada.
Quando isso acontece com alguém com forte desejo exibicionista (não é nada vergonhoso ou errado ter tal desejo, ele nasce com a pessoa, e é uma das armas de sedução), a criança será tímida – que teme o julgamento da plateia – e um dia, a partir de uma situação, a fobia se desencadeará.
Todas as fobias derivam de dificuldades de gerenciamento da raiva. Tendem a acometer obsessivos bonzinhos; costumam estar acompanhadas de relações sadomasoquistas sutis com pessoas afetivamente importantes (pai, mãe, cônjuge, chefes et al.).
De Sergio Perocco: “O que é o après-coup, em psicanálise?”
Francisco Daudt: Quando você me perguntou, eu não tinha ideia do que se tratava. Aí você disse, “é o conceito freudiano de Nachträglichkeit”.
Ah, bom, disse eu, a “significação a posteriori” (imagine só, eu entender melhor através do nome em alemão…).
Eu nunca tive contato com esse termo em francês, pois minha leitura de Freud se deu em cima da coleção da Imago, da tradução inglesa do Strachey.
A melhor explicação para o “a posteriori” é a do homem que vinha pela rua quando alguém passou por ele correndo. Ele não ligou muito. Quando virou a esquina, perguntaram-lhe: “o Sr. viu o assassino de dez mulheres que estava em fuga?” E o homem desmaiou…
Ou seja, o trauma só se deu quando a ficha caiu.
O mesmo se deu comigo, quando meu irmão mais velho fez o favor de me informar que masturbação era pecado mortal. Pensei, “Ih, tô fulminado…”
“São duas meias e uma inteira”, diz você; “Quarenta reais”, diz a bilheteira do cinema… e aí termina a mais básica das interações pessoais.
Por contraste, a paixão idealiza a “troca total”, o encontro da “outra metade da maçã” com quem você vai se fundir “em um só corpo e uma só alma”.
Tá certo, a primeira é realista demais, pequena demais, ainda que necessária; a segunda é uma viagem delirante fadada ao fracasso, mas… entre as duas, há muitas trocas possíveis e belas, desde que: 1. se conheça o próprio desejo; e se aprenda que: 2. cajueiro não dá banana.
Há aquele amigo com quem eu só converso sobre carros; há aquele parente terraplanista com quem só troco memórias dos anos 50; há aquele crush e todo um clima entre nós, mas não dá pra mais nada além disso (o paradigma do cajueiro/banana); há com quem é possível conversar sobre as variações Goldberg e a insuperabilidade do Glenn Gould (mas não queira ir muito além); há quem também fale javanês e some encontro intelectual com afetivo (poucos, muito poucos); há os do intelectual, afetivo e erótico (total raridade, beirando a ilusão); há os do só erótico (e como têm valor!).
“Mil folhas”, é o que somos. E zona de interseção é aquele negócio da teoria dos conjuntos, quando dois círculos se sobrepõem parcialmente: o truque é poder regulá-la (para mais, para menos, para nada), de acordo com os dois princípios enunciados acima, o do desejo e o do cajueiro.
Quanto mais conhecermos sobre nosso próprio desejo, e mais formos capazes de avaliar os potenciais frutíferos do outro, mais felicidade teremos.
De Maria Scalise: "O que é perversão? Quais os sintomas?"
Francisco Daudt: Perversão é a transgressão sistematizada. É quando aquele “foda-se, vou fazer!” se torna uma compulsão, algo mais forte que você, que agora é prisioneiro dela, pois virou um vício.
É um nome que já me deu muito trabalho, de tão feio que é. No senso comum, o perverso é aquele sádico cruel, de modo que nunca o uso, em clínica. Não vou dizer a nenhum cliente que “ele tem uma perversão”. No lugar disso, digo que “ele é prisioneiro de um vício”.
O mecanismo de defesa da perversão é a renegação. A coisa se dá assim: a pessoa sente despertar-se nela um desejo proibido, ou malvisto pelo seu Superego. A crítica do Superego a ameaça. Existe um silencioso embate entre o desejo e a crítica/condenação: “isso é errado”, “mas eu quero!”, “olhe as consequências do seu ato”, “ahhh, dane-se! Vou fazer, assim mesmo!”.
Sim, mas foi desse jeito que conquistamos vários direitos antes proibidos. Quase que se poderia dizer que, sem a renegação não haveria vida sexual, já que ela começa na infância como uma coisa “feia e proibida”. O bisavô de meus filhos foi preso por ter ido à praia sem camisa… em 1928. Se não houvesse esse tipo de transgressão, estaríamos na mesma até hoje.
Isso sem mencionar os direitos das mulheres, e como eles avançaram graças a transgressão. As leis não mudam por uma conversa racional tranquila, mas por força das mudanças transgressoras dos costumes.
Outra coisa é a perversão/vício: você não usa mais a transgressão; é usado por ela. Você não é mais dono; é escravo…
YUVAL HARARI (sobre a edição em quadrinhos de “Sapiens”):
“Eu penso que, fazer um esforço para alcançar uma audiência mais ampla, não é prejudicar os valores da ciência: é servir a ela!”
É exatamente o que venho fazendo com a psicanálise ao longo da minha carreira: torná-la acessível, transparente, clara; tirá-la das mãos da igrejinha, da academia, dos religiosos do saber.
De Leandro Alves de Siqueira: “Vi que existe entre os psicanalistas uma espécie de gozo no falar difícil e no não entendimento. Mas não é um contrassenso?”
Francisco Daudt: Leandro, as nossas ações são complexas, multideterminadas, mas existe esse componente, um certo complexo de inferioridade na psicanálise: diante da dificuldade de se entender a psiquê humana, e frustrada por sua impotência, a pessoa pode se sentir atraída a se dedicar mais ao confeito do que ao bolo; mais às firulas do que à substância; mais à espuma que ao chope; mais ao rito do que ao significado; mais à forma que ao conteúdo; mais à erudição que à sabedoria.
Tenho muita compaixão pelo aspirante a psicanalista que ambicionava entender os segredos da mente, mas quando chegou ao curso de psicologia (ou à formação analítica) se deparou com uma enxurrada de conhecimentos esotéricos, que o deixavam perplexo.
Imagino-o sempre a se perguntar, “mas então é isso? Eu não estou entendendo nada, então… o errado devo ser eu, eu devo ser meio burro”. E a partir daí, começou um processo de se adaptar, de aderir, de aprender a falar difícil, de ter o gozo de passar a perplexidade adiante, de não ser mais a vítima dela, mas seu causador.
Eu mesmo escapei por pura sorte dessa arapuca: eu era médico clínico havia cinco anos quando resolvi ser psicanalista. Não precisei cursar psicologia, portanto. Estive prestes a fazer uma formação com analista kleiniano, mas o destino me pôs diante de um freudiano formado na Argentina pelo Angel Garma (que tinha se formado com o Theodor Reik, formado por sua vez pelo próprio Freud). Foi desse jeito que me tornei um “freudiano de quarta geração”, em linha direta com o velho professor austríaco.
Assim, minha base teórica principal foi Freud, e ele fala língua de gente: eu entendia tudo. Ainda por cima, coordenei por dez anos grupos de estudo de Freud, e não tem melhor jeito de aprender que ensinar.
“O que é trauma, em psicanálise? É algum acontecimento horrível?”
Francisco Daudt: Chama-se de trauma a experiência vivida que abala o equilíbrio psíquico e que aciona os mecanismos de defesa contra a angústia, produzindo um rearranjo mental que contém sintomas de doença.
Todo mundo pensa logo num acontecimento, uma cena presenciada, um abuso sofrido na infância. Mas… não é necessariamente assim.
Apesar de haver a neurose pós-traumática, como as neuroses de guerra que vêm depois de o soldado ver o amigo a seu lado morrer com a cabeça despedaçada, por exemplo, a maior parte dos traumas que vivemos acontecem por uma prática esquisita, um clima ruim, um ambiente ameaçador estabelecidos por extenso tempo em casa, ao longo de nosso crescimento.
Um menino de dez anos foi um dos namoradinhos do Michael Jackson, por um período. O pai descobriu e acionou o cantor em milhões de dólares, expondo o filho no processo. Três anos depois, o menino disse-se magoado porque o cantor nunca mais o procurou. Onde estaria o trauma?
A primeira tendência é apontar o abuso sexual que o menino sofreu, mas…
Do ponto de vista do menino, aquela foi a maior experiência de sua vida: paixão, prazer, glamour, encantamento. (Em um documentário recente, vários ex-namoradinhos do cantor repetiram a mesma história: eles viveram um tremendo caso de amor. O que foi ruim foi o que veio depois da separação.)
Ainda de seu ponto de vista, o mundo caiu por causa da reação do pai, da exposição na mídia, do clima que se instalou em casa, do drama da divisão íntima entre gostar de suas lembranças e a obrigação de ter horror a elas. Drama que se arrastou por anos.
Onde estaria o trauma? Muito mais no drama que fizeram do caso do que no caso em si.
Disclaimer: Será que tenho de lembrar que “isso não é endosso da pedofilia, e sim o uso de uma situação extrema, condenável (com justa razão) pelo senso comum, para caricaturar de maneira clara o conceito de trauma”? Será?
Rodrigo Souza: “Por que um cara como eu, de 25 anos, passa a ter desejo por homens mais velhos?”
Francisco Daudt: A psicanálise investiga como é o desejo da pessoa, e quais são os problemas que interferem nesse desejo. Em princípio, não há problemas no seu desejo, isso é só o perfil dele. E a minha resposta pode não te atender, dada a singularidade que os desejos têm.
Mas, de fato, andei vendo desejos semelhantes no consultório, e achei alguns pontos em comum neles: a busca de figura paternal, que contém acolhimento, colo, reconhecimento amoroso, força e grandeza, porto seguro, proteção; mais a vontade de ser dominado/possuído por um poder gentil, de se entregar a alguém que tome conta, de esquecer das ameaças do mundo em seus braços, pois se está “em boas mãos”.
Além disso, costuma haver um desejo de corrigir a própria história. Muitos gays passaram pela experiência de dois tempos em relação ao próprio pai: um tempo amoroso, em que o pai as acolhia e acarinhava; seguido de um tempo de rejeição, quando o pai foi percebendo a orientação homoerótica do filho.
Disso resulta que o objeto de desejo, para muitos gays, seja um homem hétero, mais velho ou não. A parte triste é que, em vez de ser corrigida, aquela história de proximidade seguida de rejeição muitas vezes se repete, no drama da paixão.
Isso sim, é um assunto para se tratar na psicanálise.
“A virtude precisa ser recompensada ainda nesta Terra, ou a ética pregará em vão”. (Freud, em “O mal-estar na civilização”; “Das unbehagen in der kultur”).
Essa frase de Freud é a minha predileta. Ela contém o reconhecimento do senso de justiça com que nascemos: se eu faço por alguém, esperarei retorno em alguma medida.
O amor incondicional é uma ilusão (ainda que, com os filhos, nos aproximemos dele). Até São Francisco de Assis, o mais altruísta dos santos, diz em sua oração que “é dando que se recebe; é perdoando que se é perdoado”.
Com as pessoas queridas, a linha de crédito é elástica, mas existe…
Freud se perguntou: “Afinal, o que querem as mulheres?”
A psicologia evolucionista se aventura a responder, refraseando a pergunta e falando da influência animal que existe em nós: “O que proporcionaria mais chances de sobrevivência e de sucesso reprodutivo às crias de uma mulher, e a ela mesma? O que quer sua genética? Casamento, garantias e prestígio, por parte do homem escolhido.”
Mas, e aí temos uma armadilha da natureza, o homem que lhes oferecer tudo isso sem restrições tenderá a ser menosprezado, a não ser sexualmente desejável. Pode até ser mantido como marido, mas os genes da mulher a farão ambicionar sexualmente o cafajeste pegador, pois eles terão mais chances de se disseminar.
Portanto, a mulher mais feliz e realizada – do ponto de vista evolucionista – será Dona Flor, com seus dois maridos: Teodoro Madureira, o sólido provedor/mantenedor; e Vadinho, o cafajeste pegador.
Essa é a influência da genética em nossas vidas: ela não nos determina completamente, mas precisamos levá-la em conta, ter consciência dela.
É um eletrodoméstico muito útil (de minha modesta lavra) para as relações humanas em geral, e para os psicanalistas em particular.
Serve como um espelho onde contemplamos nossas limitações, aceitamos nossas ignorâncias, e abordamos o mundo/o outro com mais curiosidades do que certezas.
Equivale ao “Curriculum Mortis”, nome proposto por Konder para o avesso da moeda do “Curriculum Vitæ”.
De Leandro Konder:
“Evidentemente, trata-se de uma imagem que não corresponde à realidade. Em sua imensa maioria os seres humanos não são campeões invictos, não são heróis ou semideuses. Se nos examinarmos com suficiente rigor e bastante franqueza, não poderemos deixar de constatar que somos todos marcados por graves derrotas e amargas frustrações. Vivemos uma vida precária e finita, nossas forças são limitadas, o medo e a insegurança nos frequentam; e nada disso aparece no ‘curriculum vitae’ de cada um de nós.”
A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD
“O homem pode fazer o que quiser, mas não pode escolher o que vai querer”.
Schopenhauer (1788 – 1860).
“Humm, acho que hoje eu vou me apaixonar por um rinoceronte…”
Sinto muito, mas não rola. O desejo não se submete ao politicamente correto.
Não é só no nosso tesão que não mandamos, é também no nosso conceito de beleza. Ele está todo atrelado a outro desejo sinistro: o de eugenia.
Eugenia tem a má fama do nazismo, da busca pela “raça pura”, e outras coisas politicamente incorretas de dar calafrios.
Mas ela significa simplesmente “boa origem”, aquilo que queremos para nossos filhos: saúde e força, inteligência e garra, destreza e habilidade.
Por isso, somos levados a ver beleza em quem tem saúde, fertilidade, força, inteligência, garra, habilidade, poder, segurança, autoestima etc.
Essa gente nos atrai. Não sabemos, mas é a mãe natureza nos empurrando para uma procriação mais bem sucedida em termos de… mais procriação.
Dois exemplos:
1. Mucosas coradas e os batons. De vez em quando, tentam emplacar batons “modernos” em tons de verde ou de branco. Nunca colam. Os que permanecem são os da gama do vermelho (“não sou anêmica, viu?”).
2. Simetria facial. Não tem jeito, os assimétricos nos repugnarão sempre…
A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD
“Ah, o meu desejo está voltado para a pessoa, não para aparência.”
“Qualquer pessoa? Um idoso com Alzheimer?”
“Aí também não, meu negócio é mulher…”
“Bem, agora que você deixou 50% da população mundial de fora, vamos à próxima: menina de onze anos com obesidade mórbida?”
Depois de muita pergunta, fomos chegando mais próximo ao objeto “genérico” de seu desejo:
Mulher. Entre 18 e 50 (mas seria melhor entre 20 e 35). Gostosa (“meu negócio é cara, peito e bunda”). Capaz de conversar (“se for reflexiva e bem informada, melhor”). Classe média (“nem menininha do Country, nem riponga, nem caixeirinha da Sloper”). “Não pode fazer joguinhos, gosto de papo reto”…
A lista era longa, mas… “quem não tiver pecados que atire a primeira pedra”.
Assim é o desejo: ele sempre tem um perfil definido, pode perguntar para si mesmo, começando pela clássica “para onde vão seus olhos?”. Dá a impressão de que somos um monte ambulante de preconceitos e discriminações.
Bem, no tocante ao desejo, a impressão é correta: somos.
A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD
Querido Carlos, parceiro e amigo de tantos anos, morreu no dia 25 do mês passado, depois de muito tempo sofrendo de Alzheimer. Quanta coisa boa poderia escrever sobre ele... A nossa parceria, na única ficção em que me aventurei, foi um divertimento só: como dois meninos, brincamos de escrever juntos.
Seu espírito de criança se manteve até dentro da doença: visitei-o pela última vez em março de 2018. Ele me reconheceu, e se manteve sorrindo para mim durante toda a visita.
Quando sua filha se ofereceu para fazer um café “e levantar os ânimos”, ouvi dele a única (e ultima) frase: “Não precisa. A presença do Chico é mais que suficiente para levantar qualquer ânimo”.
(Abaixo: a capa e contracapa de nosso livro, “O Autor Mente Muito”, e a foto no lançamento, há 20 anos).
“Toda ação humana resulta da soma de motivação, meios e oportunidades”.
A psicanálise busca entender a mente humana, não julgá-la.
Em seu livro “No Armário do Vaticano - poder, hipocrisia e homossexualidade”, Frédéric Martel comenta a maciça presença de homossexuais no clero católico, a absoluta ausência de gays assumidos entre eles, o grande número de casos de pedofilia homossexual (o índice de pedofilia hétero é irrelevante), e o declínio enorme das vocações sacerdotais a partir da maior aceitação social da homossexualidade (anos 70 em diante).
Ele examina o caso típico do rapazinho de uma cidadezinha do interior da Itália que se percebe homossexual. Sua motivação para o sacerdócio se inicia na paróquia da aldeia, daí para o seminário em outra cidade maior, no seu meio exclusivamente masculino, na circunstância da alta religiosidade do seu tempo.
Tudo isso permite um lugar social em que pode viver clandestinamente sua orientação, e pode escondê-la ao mesmo tempo. Sua iniciação sexual se dará com seus superiores: ele, um adolescente; eles, muito mais velhos. Num primeiro momento, ele é o objeto sexual do superior pedófilo.
Mais tarde, já formado padre, terá sob seu comando coroinhas e alunos muito jovens. Sua sexualidade continua clandestina e envergonhada. Ele a considera um pecado (os padres que quiseram assumir sua vida homoerótica são expulsos ou convidados a largar a batina).
Existe para ele conflito ético, tentação e transgressão. Algum tempo depois, a transgressão se cristaliza em vício. Já lhe é compulsiva. Ele se tornou um padre pedófilo.
A MOTIVAÇÃO para esse vício: o desejo homoerótico envergonhado.
O MEIO: a cumplicidade oculta de seus pares na Igreja, o celibato, o pecado.
A OPORTUNIDADE para praticá-lo: seus meninos subalternos, que o admiram e obedecem.
Um padre pedófilo não o é porque, “necessariamente, de sua homossexualidade decorre a pedofilia”, mas sim porque sua motivação homoerótica encontrou os meios e as oportunidades para que a tempestade perfeita se formasse.
Agradeço ao Elvis S. Correia e ao Cláudio Kuiven as perguntas que motivaram esta postagem; ao Facebook, o meio e a oportunidade.
A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD
Um jovem gay envergonhado busca uma profissão que lhe dê sustento, status, amparo social, e se possível o ponha em contato com grande número de possíveis parceiros sexuais (ou apetitosos petizes).
Descobre que o sacerdócio católico é perfeito: além de lhe proporcionar tudo isso, ainda proíbe o casamento, ou seja, ele pode permanecer solteiro sem dar pinta. Não é de espantar então o número de casos de pedofilia entre o clero.
O sacerdócio católico é um caso exemplar de seleção adversa: um critério de filtragem que sempre escolhe os piores.
O conceito de seleção adversa vem da economia, mas a ideia serve à perfeição para vários outros casos de “filtragem do mal”.
Naturalmente, a que mais me preocupa é a da carreira de psicanalista.
Se a psicanálise for apresentada como uma profissão pós-moderna onde tudo é relativo; não existem distinções entre verdadeiro e falso; nada vale nada, tudo vale nada e nada vale tudo; onde basta dominar um jargão incompreensível, que nem o próprio psicanalista entende (mas finge/está convencido/acha que entende); onde a meta é a “busca do inefável” (seja lá isso o que for); uma profissão que veio para confundir, não para explicar; em que existe um pacto perverso entre os que não entendem nada para fingir que entendem tudo...
...aí teremos a tempestade perfeita para selecionar os piores: a seleção adversa.
Eis porque vivo fazendo o marketing da transparência e da clareza. Quero seduzir aquele que cogita entrar na profissão para essa ideia simples e básica: ter direito de entender o que estuda; ter direito a dizer “não entendi”, quando for o caso; ter direito a não enrolar seu futuro cliente... e de não ser enrolado pelo seu atual analista.
A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD
Paciente, antônimo de agente, é aquele passivo de uma ação. Um faz, o outro recebe. O cirurgião opera; o paciente é operado.
Em psicanálise, o cliente (aquele para quem o clínico se inclina para entender) participa ativamente do processo: é dele que vêm as pecinhas do puzzle que o analista monta; é ele que corrige, se a montagem estiver errada. O cliente é a bússola ativa do psicanalista: é sempre ele que dá o rumo.
A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD
O Arcebispo de Usher (1581-1656) fez uma cronologia da vida na Terra baseada em estudos bíblicos e de outras fontes, de tal maneira concluiu que a criação do mundo ocorreu no dia 23 de outubro do ano 4004 antes de Cristo (a. C.) pelo calendário juliano. Na época, a afirmação foi amplamente aceita.
Quando, no século XIX, começaram a aparecer fósseis de dinossauros, mostrando que a Terra era muito mais antiga, um sucessor dele deu uma explicação fascinante e irrefutável:
“Mas é claro, a Terra foi sim criada por Deus há 6 mil anos. Mas foi criada com um passado, assim como Adão: Deus o criou com um passado, ou ele não saberia o que fazer no paraíso, iria se comportar como um bebê. Ele não nasceu de ventre de mulher, mas como tinha um passado, também tinha umbigo. Os dinossauros são o umbigo/passado da Terra!”
O meu fascínio é que a história do arcebispo de Usher define o que separa ciência de fé: tudo que for irrefutável não será matéria de ciência, será assunto de fé.
As propostas/hipóteses da ciência PRECISAM ser vulneráveis à refutação, pois almejam a busca do verdadeiro. Só se aproximam da verdade aquelas que ainda escapam da refutação possível.
A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD
Um amigo toca numa questão que sempre me demanda um esforço especial: como nomear o sentimento despertado pela injustiça sem produzir reações desconfortáveis.
Sempre que menciono “raiva”, há quem se manifeste contra essa emoção, supondo que ela implica ações destrutivas e nefastas, não vendo que ela pode funcionar como um meio de busca civilizada de justiça, recusando-se a ver tal mácula em seu coração. Se eu falar em “ódio”, aí então fecha o tempo...
Primeiramente, concordaremos que sofrer uma injustiça não nos faz felizes. Mas como nomear esse sentimento desagradável? Tenho tentado “desconforto”, “inconformismo”, “indignação”, “ressentimento”, “ultraje”, “mágoa”, “mal-estar”.
Não tenho nada contra esses eufemismos, mas penso que “raiva” tem a virtude de, não apenas resumi-los, mas também a de suscitar debates como este.
A raiva é um sentimento visto como feio e mau desde nossa infância, quando somos ensinados a só ter bons sentimentos, “vocês são irmãozinhos e devem se amar, nunca sentir raiva um do outro”, mesmo se o outro nos sacaneou brabo.
A repressão da raiva é o motor da neurose obsessiva, e da sua formação reativa, a “bonzinhice”, que torna as crianças presas fáceis do bullying.
Mas a raiva é como a dor e a febre: um sinal de que algo não vai bem, de que alguma providência se faz necessária. A ausência de dor ou febre pode nos deixar negligentes com a doença, e nos levar à morte.
A ausência de raiva diante da injustiça permite que ela prospere e nos cause danos ainda maiores.
A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD
Na ciência, o erro faz parte do jogo. As hipóteses podem estar erradas; os processos podem conter erro. No primeiro caso, elas serão descartadas. No segundo, eles serão corrigidos.
Na psique, o erro corre sério risco: causar culpa. O sentimento de culpa pode ser a danação do erro, por excesso ou por falta: ou o erro é varrido para debaixo do tapete, pois sua admissão seria devastadora; ou o erro se torna drama, é um horror, e põe tudo a perder, pois se joga o bebê fora junto com a água do banho. Nada se corrige e nada se aproveita.
É preciso, pois, valorizar a utilidade do erro (como na ciência)... separando-o do sentimento de culpa.
Ou seja, não é “ah, desculpa, tá?” É, sim, "foi erro meu, e vou consertar”.
A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD
É tudo uma questão de justiça. Ou de como se chega a ela a partir da injustiça. A opressão contém injustiça, por definição: um desequilíbrio da balança de poderes da justiça.
Somos programados para reagir à injustiça: ela nos gera raiva. Se um filho vê seu irmão receber atenções desequilibradas, ele sente uma forma de raiva: o ciúme. Assim é nossa reação em todas as situações em que nos sentimos injustiçados: ficamos com raiva.
Se não houver raiva, indignação, não reagiremos, não haverá busca de justiça. Pode-se dizer então que a raiva é mãe da justiça.
A questão seguinte será como a justiça é feita. O irmão ciumento pode dar com um pau na cabeça do queridinho. O motorista que levou uma fechada pode perseguir o infrator para se vingar. Sim: a vingança é a mais primitiva forma de justiça. Daí os justiceiros, os linchamentos, os cancelamentos etc.
A vingança é reativa, e a reatividade é o movimento mental mais rápido, simplório e comum da humanidade.
Necessário à sobrevivência, sob pressão todos reagimos, não refletimos. Não há tempo nem calma para a reflexão.
Se a reação contempla a simples sobrevivência, a reflexão contempla a complexidade da vivência. Mas ela precisa de paz e de tempo. Não foi à toa que seu primeiro marco histórico só se deu há 2.400 anos: a Grécia clássica.
De volta à justiça, ao longo da história inúmeros movimentos contra a opressão foram necessariamente violentos, reativos, revolucionários e exagerados ao oposto, num primeiro momento.
O mesmo se deu/dá em relação à homossexualidade. Tomemos um indivíduo gay, como exemplo: com a percepção de que é diferente da maioria, e com características que o senso comum rotula como “erradas”, ele passou grande parte de sua vida ocultando sua condição; envergonhado dela. Ele vive uma guerra surda, uma opressão injusta, e reage do jeito que pode, se escondendo.
Quando as condições mudam, ele sai do armário e passa, reativamente, ao extremo oposto: da vergonha ao orgulho gay. Desfilará sua condição como um estandarte, pois continua em guerra, em busca de justiça para si e seus pares, agora na fase da vingança.
Como fruto dessa reação vingativa contra os opressores, muitos oprimidos conseguiram um tempo de paz, um lugar ao sol, uma jurisprudência para seu direito de ser quem é, agora com serenidade e possibilidade de reflexão.
Mas... “si vis pacem, para bellum” (“se queres a paz, prepara a guerra”), diziam os romanos. Ou, como eu dizia a meus filhos, “quando Freud não explica, Lampião entra em ação”.
Sem esquecer que nosso desejo é a serenidade, a paz e a reflexão racional, os maiores potenciais de uma espécie que se pretende Sapiens...
A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD