segunda-feira, 29 de março de 2021

PORNOGRAFIA: USO OU VÍCIO? - O amigo pergunta

 


Adrilles Jorge: “A pornografia pode ter um efeito benéfico para a saúde sexual? Em que ponto se torna vício?”

Francisco Daudt: Estabelecido que o vício é o ato compulsivo que prejudica nossos maiores interesses, posso dizer que, em 46 anos de clínica, só diagnostiquei dois casos de vício em masturbação, um deles acompanhado de maconha, o que atrapalha o diagnóstico preciso. Perdiam emprego, deterioravam sua casa e seu meio social por causa do vício, donde... era vício mesmo.

Claro, falo em masturbação porque ela é o principal objetivo da pornografia. Nunca ouvi falar de alguém viciado apenas nela, excluída sua inspiração auto-erótica.

Portanto, para se entender o valor da pornografia, é preciso avaliar a importância e a função que a masturbação tem.

A reprodução dos mamíferos está completamente atrelada à busca de prazer. O prazer sexual foi o truque que a mãe natureza arranjou para que replicássemos o DNA. 

Agora vem a parte da natureza injusta: principalmente o prazer sexual masculino. A testosterona é a imperatriz do tesão; sem ela, pode esquecer. 

A partir dos 12-14 anos, o menino será inundado por testosterona, se excitará por estímulos mínimos e se masturbará. Todos – sim, todos – os homens já se masturbaram e/ou se masturbam regularmente. Isso estabelece neles o circuito neuronal do orgasmo – e agora vem mais injustiça da natureza – do qual depende a continuação da espécie.

O principal estímulo para excitação/masturbação/sexo/orgasmo masculinos é visual. Através daquilo que atrai a visão de um homem, podemos desenhar a conformação de seu desejo (homo, hétero, que formas, que circunstâncias etc.).

É aí que entra a pornografia. Estive num programa do Pedro Bial discutindo com mulheres que pretendiam fazer pornografia educativa, para que o machismo grosseiro pornográfico habitual não corrompesse o comportamento deles face às mulheres.

Tive que explicar que não existe, nem existirá, pornografia educativa. Só existe pornografia que dá tesão e a que não dá tesão. Ponto.

Para a psicanálise, a pornografia é preciosa ferramenta de conhecimento do desejo. Eis porque defendo a pornografia gourmet: menos aeróbica, mais complexidade; menos homem da pizza, mais dramatização. 

Isso me permite entender o que toca/excita os desejos dos clientes. Uma das principais funções da psicanálise é entender seus desejos, aqueles mais descontaminados da doença, menos invadidos pela briga dos Titãs internos, com menos Superego, com mais Ego.

Aliás, nem preciso defender essa complexidade da pornografia: a mão invisível do mercado (sem intenções humorísticas) dá conta disso. Com o barateamento digital das produções, o cardápio pornográfico na internet é imenso, permite uma seleção de pratos principais tal, que o cliente já chega sabendo bem o que lhe apetece.

Então, sim, a pornografia tem um papel muito interessante na saúde sexual. E podemos definir saúde sexual como aquela que se conquista fora da guerra da neurose, dos vícios e das perversões. Aquela com que a pessoa se sente em paz.



 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD




sábado, 27 de março de 2021

A MORTE E A MORTE DE D. LYGIA

 


2010, domingo de Páscoa. D. Lygia, aos 95 anos, comandou mais uma vez a casa para o “almocinho” que iria receber seus 7 filhos, genros e noras, 20 netos e mais de 30 bisnetos. 

Ovinhos escondidos pelo jardim, mesas postas, travessas servidas na sala de jantar, ela fez sua aparição. Acenei-lhe de longe, mas já via muito pouco e não percebeu.

Atendo o telefone às 3h da madrugada: “O pulso dela está em 40, e nós chamamos a ambulância”. Em cinco minutos, eu estava lá. Os enfermeiros já desciam a escada com ela desconfortável na maca, tentando tirar o cateter de oxigênio.

“Pode voltar agora e levá-la para a cama, que ela quer morrer em casa!”, disse eu, sem deixar espaço para discussão. O médico que acompanhava a ambulância me apertou a mão num assentimento silencioso, como a dizer, “se fosse minha mãe, eu faria a mesma coisa”.

Já deitada, ela começou o que seria seu último diálogo:

“Ah,que bom que estou de volta ao meu cantinho. (Pausa). Mas afinal, Chico, qual é a minha doença?”

“É coração fraco, mãe.”

“Humm... E as crianças? Acharam os ovinhos?” 

“Acharam todos, mãe”. 

“Ah, bom...”

E morreu. Morreu como quis: em casa e com sua missão cumprida.

Eu também cumpri a minha: único médico na família, tinha perguntado aos pais, na frente dos irmãos, se iriam querer medidas heroicas, UTI, ressuscitação etc. Disseram que não, e que esperavam de mim a proteção de tais horrores. Assim foi feito.

Hoje reconheço que tive sorte: a pressão do senso comum para a medicalização da morte não deixa ninguém mais morrer em paz. Não se conversa sobre morte, como outrora. Não se comunicam os últimos desejos, como meus pais o fizeram e o bilhete dela para mim é testemunha.





A imensa tristeza das mortes por Covid é agravada por esse distanciamento dos entes queridos. Mas suas internações fazem sentido: a esperança de cura. 

Faz-me lembrar do ensinamento de meu mestre Dr. Fernando Alvariz: “Daudt, uma coisa é parada cardíaca, outra é morte. Quando não há perspectivas, o nome é um só: morte. Deixe eles morrerem em paz”.



 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD



LUTO

 




Um dos muitos motivos atuais de tristeza, lidar com o luto entrou no dia a dia do meu trabalho de consultório.

Não estou falando só do luto dos amores desfeitos, ou das ilusões e esperanças perdidas, que esses nunca cessam de aparecer, mas do luto pelos mortos da Covid, que tem como agravante a distância do ente querido, seja na doença, seja na morte.

A ausência do rito fúnebre, do velório, do ver o corpo no caixão, aumenta o período de aceitação da perda, a irrealidade da nova condição, o inconformismo.

Outro agravante é o sentimento de culpa, a suspeita sobre quem poderia ter trazido o vírus para casa, os “e se...” que atormentam a imaginação e tiram a preciosa noção de que tudo o que estava ao nosso alcance foi feito para proteger/salvar a pessoa que morreu. A ideia de haver um culpado entre os próximos é uma tortura.

Sim, o luto não é uma doença, faz parte da vida, ele termina numa herança de belas lembranças da vida partilhada.

Mas as circunstâncias adversas podem adoecer o processo. Não é fácil lidar com o luto patológico...


 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD



“A psicanálise usa o sentimento de culpa como ferramenta terapêutica?” - O AMIGO PERGUNTA


“A psicanálise usa o sentimento de culpa como ferramenta terapêutica?”

Francisco Daudt: Não deveria jamais.

No entanto, houve um tempo (entre 1950 e 1980) em que o pensamento psicanalítico foi dominado pela culpa. Melanie Klein (1882-1960) era a referência teórica de então, e defendia que as pessoas “aceitassem a castração” (significa “se submetessem ao Superego”), reconhecessem que seus sintomas vinham de “projetarem seus ódios nos pais” (que não teriam feito nada de errado, claro) e adotassem uma “posição depressiva reparadora” (assumissem a culpa de ter sintomas, se arrependessem e se penitenciassem por isso).

Meu primeiro psicanalista era dessa linha e apesar de eu só ter 21 anos na época, detectei o sotaque religioso – não se é ex-aluno dos jesuítas impunemente – de sua “quase não fala” e lhe disse: “Ah, sim, compreendi o que a psicanálise quer. É a mesma coisa que a Igreja Católica quer de mim: que eu reconheça os meus sintomas, me arrependa deles e prometa nunca mais tê-los”.

Claro, ele ficou mudo, como de hábito.

O sentimento de culpa talvez seja a ferramenta de domínio/censura/controle de pensamento mais sofisticada que a humanidade inventou.

Ela consiste numa crença em modelos de perfeição e antimodelos desprezíveis. Você deveria ser alguém de uma virtude inatingível, caso contrário será um monstro condenado ao desterro e ao opróbio.

Claro, essa crença fica escondida em nosso juiz interno, o Superego, pronto a nos criticar e condenar por cada... pensamento, palavra, obra e omissão. Isso te soa familiar? Sim, era assim que se pecava, no ideário católico. Era assim que se ia para o inferno, caso não houvesse confissão, arrependimento e penitência.

O pior do sentimento de culpa é que ele se relaciona a valores meritórios, a causas respeitáveis, às quais você poderia aderir por gosto, mas... uma vez coagido pela culpa, você acabava com raiva desses valores e indo contra eles. Faça um alcoólatra se sentir culpado porque bebe e ele correrá para a garrafa dizendo “ ah é? Então dane-se, vou beber”, nem sempre dessa maneira educada.

É que a culpa – resultado de um julgamento sumário sem direito a defesa – acaba sendo uma injustiça em si. A culpa causa raiva... e vontade de pecar outra vez, como vingança. Bem, isso mantinha o emprego dos padres, já que eles detinham o poder da absolvição.

Pense em “me desculpa”. No quão frequente é o uso do verbo “desculpar” em nosso dia a dia. Isso dá a medida de como a crença na culpa está em nosso inconsciente. A alternativa de dizer “foi erro meu, sinto muito” nem é considerada.

Pense agora no politicamente correto. Ele defende belos valores: a tolerância, o acolhimento de diferenças, a cooperação entre as pessoas.

Mas, se a cada pensamento, eu temo estar pecando, sendo homofóbico, racista, machista, fascista etc. (a lista de antimodelos da correção política é interminável), eu acabo com raiva desses valores, jogo fora o bebê junto com a água do banho... e elejo o Trump (ou coisa pior).

Portanto, não, a psicanálise não pode usar o sentimento de culpa como ferramenta terapêutica, pois ele adoece a pessoa em vez de curá-la. Usá-lo é aderir ao juiz tirânico, é reforçar o Superego.

É curioso – e lindo – mas a psicanálise precisa cultivar a democracia na mente, aderir a ela como um valor universal. A psicanálise não pode usar instrumentos da tirania e do controle de pensamento... tais como o sentimento de culpa.



 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD



 

A “NEUTRALIDADE” DO PSICANALISTA - O AMIGO PERGUNTA

 



“Sempre ouvi dizer que o psicanalista deve ser neutro, para que o cliente projete nele suas realidades psíquicas. Você acha isso também?”

Francisco Daudt: Não. Primeiramente, porque não existe neutralidade e sim “encenação de neutralidade”, e se há uma coisa que um psicanalista deve evitar é ser fake.

Em segundo lugar, porque a psicanálise precisa deixar claro o que deseja: saúde, verdade, conhecimento do desejo e do Superego do cliente, para que ele não fique prisioneiro de sua guerra interna, seja independente e autônomo para conduzir sua vida.

Em terceiro, porque o psicanalista precisa se posicionar como prestador de serviços de saúde mental para seu cliente, e não como um ser misterioso e superior – retrato do Superego – de quem o cliente tem medo.

Em quarto, porque esse negócio de “se projetar sobre a tela em branco de um psicanalista neutro”, como método de conhecer o inconsciente, é conversa fiada: a investigação que se dá por confiança funciona muito mais. O psicanalista não está ali para vencer o paciente, mas para convencer de que ele é seu aliado na busca da saúde e da cura.

Lembrando: Freud abandonou a hipnose também porque ela era uma imposição de poder. A psicanálise não pode estar “Acima de mim” (Superego), ela precisa estar do meu lado.


 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD



domingo, 21 de março de 2021

A FACE FILOSÓFICA DA PSICANÁLISE


A psicanálise é uma teoria da mente: como ela funciona, como ela adoece, como se torna saudável.

A psicanálise também é um tratamento, uma psicoterapia que usa seus conhecimentos para buscar a cura das doenças psíquicas.

Como decorrência dessas definições, a psicanálise tem uma face filosófica.

“Filosofia” significa “amor à sabedoria”. A humanidade vem há milênios usando seus conhecimentos sobre si mesma para alcançar uma sabedoria, uma arte de viver bem. 

É isso que distingue “conhecimento” de “filosofia”: sua aplicação virtuosa em nossa vida. Claro, há outras filosofias, como a da ciência e a da lógica, mas todas as sabedorias se voltam para o bem, o belo, o pacífico, o justo. Não há “sabedorias do mal”.

Como a psicanálise entendeu que as doenças psíquicas se originam de injustiças históricas, que se repetem em nossa vida porque somos atraídos inconscientemente para repetí-las (como uma refeição mal digerida que nos fica voltando à boca), ela usará de sua sabedoria para a busca de justiça em fóruns complementares:

1. A justiça na criação dos filhos: significa contemplar suas singularidades, atender suas necessidades e apoiar suas capacidades.

2. A justiça dentro de nossas cabeças: compreender a luta interna entre os desejos malvistos que moram no Id (inconsciente) e as leis tirânicas que moram no Superego (nosso juiz interno). Mediar essas forças, trazer luz ao drama que se repete, para que o Ego (o Eu da pessoa) possa ter espaço para viver bem.

3. A justiça na sociedade: ao entender que a fonte das doenças é a guerra interna da tirania/rebeldia/repressão/mais tirania, perceber que isso se estende ao tecido social. Ou seja, a democracia é mais justa, tanto para dentro quanto para fora.

Essa é a face filosófica da psicanálise.


 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD



 

quinta-feira, 18 de março de 2021

O SUPEREGO E O DESEJO DE ÉTICA (1 e 2) - O AMIGO PERGUNTA

 



Marcio Fagundes: “Precisamos do Superego para sermos corretos?”

FD: Obrigado pela pergunta; essa é uma questão central na prática/teoria da psicanálise.

Este é um tema em que toda a sua compreensão da complexidade precisa estar presente. Vou falar bem e vou falar mal do Superego; ambas as coisas valerão. Cada pequeno parágrafo será válido, não invalidará nem o anterior, nem o próximo.

O Superego se parece com o carcereiro de um cão furioso/libidinoso/exagerado: solte o cão, e você verá as consequências...

Mas sua presença, e a existência de uma prisão, mantêm o cão em estado de fúria. Ou seja, o emprego do carcereiro não é só conter o cão; é também manter a má fama do cão. E sua fúria! Assim, o carcereiro mantém assim seu emprego e sua importância.

Que tal se nos aproximássemos aos poucos e examinássemos o cão (e o carcereiro) sem todas as cargas de preconceito sobre eles? Que tal conhecer o cão? Que tal conhecer o carcereiro?

Que tal conhecer a pessoa que carrega e mantém – com muito medo – cão e carcereiro como intocáveis, mas sabendo que o peso desse fardo lhe verga as costas e atrasa imensamente sua vida?

Eis o dilema do psicanalista: ele escolherá o reforço do sistema da carceiragem? Ou ele preferirá ser o laborioso investigador da política repressora que a doença de seu cliente contém?

Infelizmente, a história da psicanálise está cheia de reforçadores do sistema da carceiragem. Há muitos teóricos da psicanálise que foram apoiadores do Superego. Há poucos investigadores. Mesmo que Freud, seu inventor, tenha apostado completamente na investigação.

É compreensível: apoiar o Superego é mais simples. Dá respostas rápidas. Dá conselhos – mesmo que esses venham disfarçados de silêncios e de mistérios, os “conselhos que se envergonham de assim ser”. Investigar exige mais que isso...

O que nos leva à questão inicial: qual a relação da ética com o Superego? Pode haver ética sem ele? Pode haver desejo de ética?

(Prossegue em “O Superego e o desejo de ética – 2”).





“A felicidade dos outros me interessa, pois suas infelicidades atrapalham a minha felicidade”.

John Stuart Mill

Definindo ética como “um acordo de não causar dano injustificado” (legítima defesa é, como diz o nome, justificada, p.e.), abre-se um leque de possibilidades de como absorvê-la, como implantá-la em nós.

Vai desde o temor das leis e da força do Estado que as impõe, até achá-la bacana e querer tê-la como virtude cultivada: o desejo de ética. O desejo de contribuir positivamente vai além: é a ética ativa.

Mas como nosso assunto é psicanálise, vamos nos focar no que se passa dentro de nossas cabeças: natureza humana, desejos egoístas e predadores, cooperação, consciência moral, sentimento de culpa, medo do desamparo, do banimento social, medo físico. Conflitos íntimos, guerra interna, dilemas existenciais.

Coisas que acontecem no cenário que Freud desenhou:
.no Id (“Algo em mim”: as forças inconscientes herdadas, os dramas históricos esquecidos de nossa criação);

.no Superego (“O que está acima de mim”: nosso juiz interno, acusador que usa nossos medos para que cumpramos suas leis; junto com ideais de perfeição inatingíveis que sempre nos olham como faltosos, em eterna cobrança).

.no Ego (o “Eu” que sentimos ser, que tenta mediar o embate dos dois Titãs anteriores e que, como o marisco, sofre entre o mar e o rochedo).

Se houver guerra interna, se o reprimido no Id for se transformando no cão furioso, vai-se precisar de um carcereiro com grandes poderes de ameaça: o Superego. Mas isso implica não haver espaço para o Eu, eu não poderei desejar de maneira ética, bela, virtuosa. Só haverá soluços de transgressões, resultando em medo e culpa depois.

Mas, assim como a filosofia nasceu da paz, do tempo de refletir, conversar, cultivar o espírito, a mesma coisa pode nos acontecer. Em duas situações: souberam nos criar bem (algo totalmente excepcional, pois criar filhos é o trabalho mais difícil que existe, e os pais, portanto, esbanjam incompetência no assunto).

A segunda situação é a melhor possibilidade da psicanálise: ela ter o papel de pacificadora, entendendo a guerra, os interesses das duas partes em conflito, a serviço do nosso Eu. Seu melhor instrumento é promover a justiça histórica.

Acalmado o cão, o carcereiro pode ter uma digna aposentadoria. O cultivo da felicidade pedirá à sabedoria de John Stuart Mill sua bússola para o desejo de ética: “a felicidade dos outros me interessa, pois suas infelicidades atrapalham a minha felicidade”.

Compare agora isso com o Imperativo Categórico de Kant, o lema da ética de Superego: “Age como se a máxima de tua ação devesse servir de lei universal para todos os seres racionais”.

Ou seja, só faça aquilo que possa ser feito por todos os humanos, caso contrário, você estará sendo antiético.

Compreende quando eu digo que o Superego impõe ideais inatingíveis?

O Ego aqui prefere o John...



 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD


O SUPEREGO E O DESEJO DE ÉTICA 2 - O AMIGO PERGUNTA

 




“A felicidade dos outros me interessa, pois suas infelicidades atrapalham a minha felicidade”.

John Stuart Mill

Definindo ética como “um acordo de não causar dano injustificado” (legítima defesa é, como diz o nome, justificada, p.e.), abre-se um leque de possibilidades de como absorvê-la, como implantá-la em nós.

Vai desde o temor das leis e da força do Estado que as impõe, até achá-la bacana e querer tê-la como virtude cultivada: o desejo de ética. O desejo de contribuir positivamente vai além: é a ética ativa.

Mas como nosso assunto é psicanálise, vamos nos focar no que se passa dentro de nossas cabeças: natureza humana, desejos egoístas e predadores, cooperação, consciência moral, sentimento de culpa, medo do desamparo, do banimento social, medo físico. Conflitos íntimos, guerra interna, dilemas existenciais.

Coisas que acontecem no cenário que Freud desenhou:
.no Id (“Algo em mim”: as forças inconscientes herdadas, os dramas históricos esquecidos de nossa criação);

.no Superego (“O que está acima de mim”: nosso juiz interno, acusador que usa nossos medos para que cumpramos suas leis; junto com ideais de perfeição inatingíveis que sempre nos olham como faltosos, em eterna cobrança).

.no Ego (o “Eu” que sentimos ser, que tenta mediar o embate dos dois Titãs anteriores e que, como o marisco, sofre entre o mar e o rochedo).

Se houver guerra interna, se o reprimido no Id for se transformando no cão furioso, vai-se precisar de um carcereiro com grandes poderes de ameaça: o Superego. Mas isso implica não haver espaço para o Eu, eu não poderei desejar de maneira ética, bela, virtuosa. Só haverá soluços de transgressões, resultando em medo e culpa depois.

Mas, assim como a filosofia nasceu da paz, do tempo de refletir, conversar, cultivar o espírito, a mesma coisa pode nos acontecer. Em duas situações: souberam nos criar bem (algo totalmente excepcional, pois criar filhos é o trabalho mais difícil que existe, e os pais, portanto, esbanjam incompetência no assunto).

A segunda situação é a melhor possibilidade da psicanálise: ela ter o papel de pacificadora, entendendo a guerra, os interesses das duas partes em conflito, a serviço do nosso Eu. Seu melhor instrumento é promover a justiça histórica.

Acalmado o cão, o carcereiro pode ter uma digna aposentadoria. O cultivo da felicidade pedirá à sabedoria de John Stuart Mill sua bússola para o desejo de ética: “a felicidade dos outros me interessa, pois suas infelicidades atrapalham a minha felicidade”.

Compare agora isso com o Imperativo Categórico de Kant, o lema da ética de Superego: “Age como se a máxima de tua ação devesse servir de lei universal para todos os seres racionais”.

Ou seja, só faça aquilo que possa ser feito por todos os humanos, caso contrário, você estará sendo antiético.

Compreende quando eu digo que o Superego impõe ideais inatingíveis?

O Ego aqui prefere o John...



 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD



 

 

O SUPEREGO E O DESEJO DE ÉTICA 1 - O AMIGO PERGUNTA

 



Marcio Fagundes: “Precisamos do Superego para sermos corretos?”

FD: Obrigado pela pergunta; essa é uma questão central na prática/teoria da psicanálise.

Este é um tema em que toda a sua compreensão da complexidade precisa estar presente. Vou falar bem e vou falar mal do Superego; ambas as coisas valerão. Cada pequeno parágrafo será válido, não invalidará nem o anterior, nem o próximo.

O Superego se parece com o carcereiro de um cão furioso/libidinoso/exagerado: solte o cão, e você verá as consequências...

Mas sua presença, e a existência de uma prisão, mantêm o cão em estado de fúria. Ou seja, o emprego do carcereiro não é só conter o cão; é também manter a má fama do cão. E sua fúria! Assim, o carcereiro mantém assim seu emprego e sua importância.

Que tal se nos aproximássemos aos poucos e examinássemos o cão (e o carcereiro) sem todas as cargas de preconceito sobre eles? Que tal conhecer o cão? Que tal conhecer o carcereiro?

Que tal conhecer a pessoa que carrega e mantém – com muito medo – cão e carcereiro como intocáveis, mas sabendo que o peso desse fardo lhe verga as costas e atrasa imensamente sua vida?

Eis o dilema do psicanalista: ele escolherá o reforço do sistema da carceiragem? Ou ele preferirá ser o laborioso investigador da política repressora que a doença de seu cliente contém?

Infelizmente, a história da psicanálise está cheia de reforçadores do sistema da carceiragem. Há muitos teóricos da psicanálise que foram apoiadores do Superego. Há poucos investigadores. Mesmo que Freud, seu inventor, tenha apostado completamente na investigação.

É compreensível: apoiar o Superego é mais simples. Dá respostas rápidas. Dá conselhos – mesmo que esses venham disfarçados de silêncios e de mistérios, os “conselhos que se envergonham de assim ser”. Investigar exige mais que isso...

O que nos leva à questão inicial: qual a relação da ética com o Superego? Pode haver ética sem ele? Pode haver desejo de ética?

(Prossegue em “O Superego e o desejo de ética – 2”).



 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD



 

 


OS OUTROS - O AMIGO PERGUNTA

 



“Qual é a primeira orientação que você daria para um estudante de psicanálise?”

Francisco Daudt: Não tire os outros por si mesmo; eles são diferentes.

O que não significa deixar de usar símiles para se pôr na pele deles, para treinar empatia. Se você estiver atendendo um matador de velhinhas, procure um dentro de você. Eu sei que vai encontrar...




 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD



 

 

quinta-feira, 11 de março de 2021

A PSICANÁLISE DA PSICANÁLISE



Quanto mais metida a pessoa, mais insegura ela é.

A psicanálise nasceu com complexo de inferioridade. Freud era um neurologista na Viena do século XIX. Eles se consideravam deuses da ciência.

Quando Freud inventou a psicanálise, quis que ela tivesse um status semelhante ao da ciência que fazia. Apresentou-a a seus pares e eles a rejeitaram como maluquice.

Diante disso, Freud mandou seus pares às favas (mas o ressentimento ficou) e tornou-se independente na sua pesquisa. Grande passo!

Alguns colegas seus se juntaram a ele, deslumbrados com sua invenção. A partir daí, dois movimentos aconteceram: a pesquisa psicanalítica em si e a tentativa de dar a ela um lugar respeitável na ciência (e como ciência).

Até hoje tenho ambivalências diante do passo seguinte dado por Freud: constituir uma instituição para zelar pela psicanálise. Se por um lado vejo o benefício da criação de um espaço para diálogo teórico com gente interessada, por outro vejo o custo que a luta de poder institucional e a busca de status social decorrente impuseram à psicanálise.

Só médicos eram admitidos (mais um sinal de insegurança), até que Theodor Reik, psicólogo, causasse uma virada de jogo, ao ter sua admissão defendida por Freud (“A questão da análise leiga”, 1926).

Entre as sortes que dei na vida, uma foi a de ser “descendente direto” dessa linha de formação: Freud formou Karl Abraham, que formou Theodor Reik, que formou Angel Garma, que formou meu psicanalista formador.

É por isso que minha origem é freudiana, mesmo em tempos de Melanie Klein e de Lacan. O que eu fiz com essa origem, bem, imitei Freud e me tornei independente.

Mas a insegurança dos psicanalistas continuava (continuava?). Até hoje há quem ache que a psicanálise é algo “acima da psicologia”, que não faz parte dela, mesmo “psicologia” significando “estudo da mente”.

A monumentalização de irrelevâncias e adereços, como a do o célebre divã, é sintoma desse confeito, desse glacê que foi se tornando mais importante que o bolo.

Estive num debate de psicanalistas falando disso, e um colega de Portugal contou que, em sua sociedade regional, foi apresentada uma tese defendendo extensamente o ângulo de 45º para a poltrona do analista, em relação ao divã.

Não é à toa que o atendimento on-line causou tanta “comoção” no meio societário...

Outras decorrências desse delírio de status versus o aprimoramento teórico/epistemológico da psicanálise foram a criação de jargões incompreensíveis, verdadeiras viagens na maionese, para dar a impressão de que a psicanálise tratava de coisas “inefáveis e muito além da compreensão dos simples mortais”. Como o Chacrinha, a psicanálise não teria vindo para explicar, mas para confundir.

A minha defesa de transparência e clareza a se abordar o estudo da mente tem o objetivo de cuidar do bolo de boa qualidade, não de seu confeito vistoso. Se a psicanálise quiser se aproximar do conhecimento verdadeiro, precisa ser humilde. Precisa importar da ciência o “dar a cara a tapa”, o estar vulnerável a que lhe apontem os erros.

Mais uma vez: quanto mais metida a pessoa, mais insegura ela é.




 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD



 

 

ENTREGA




“Entregou sua alma ao Criador, para o descanso eterno”...

Raramente vi uma série de eufemismos tão enganosa... e tão sedutora. Quem “entregou”? O falecido? E por acaso ele tinha escolha? Sua alma? Ora, faça-me o favor... Ao Criador? Para um descanso que ele vai usufruir? Eternamente?

Mas é altamente sedutora, pois supõe um ato amoroso de vontade de se entregar ao Pai, que o recebe e protege para sempre, livrando-o dos cansaços da vida.

O prazer da entrega é uma encrenca para a maioria das pessoas, principalmente para os homens. Os alarmes homofóbicos tocam alto, quando se fala dele. “Vou me entregar aos braços de Morfeu? Que história é essa? Eu sou é macho, cara!” Calma, eu só queria dizer que você está indo dormir...

“João Valentão é brigão... a todos João intimida
Mas tem seus momentos na vida
É quando o sol vai quebrando lá pro fim do mundo, pra noite chegar;
É quando o cansaço da lida da vida obriga João descansar”

A linda canção de entrega, de Dorival Caymmi, fala desse dilema dos homens (e não só deles): criados para a atividade, têm medo da passividade, da entrega. Quantas crianças e adultos brigam contra o sono até caírem desmaiadas, por nocaute? Quantos precisam da ajuda do álcool, ou de um comprimido, para aceitarem esse momento?

No entanto, assim como não existe sono sem entrega, também não existe o orgasmo sem ela. Seja masculino ou feminino, o orgasmo é um momento de entrega total. Um homem pode até ejacular, mas sem abrir mão da obsessão de controle que domina sua vida, não gozará do prazer que o clímax pode dar.

A entrega de que falo não é um ato cego, impulsivo ou insensato: ela conversa com a lucidez e avalia riscos, através da confiança. Esse permanente medidor interno, uma espécie de “confiômetro” que temos, pode ser conscientemente cultivado para nos dizer quando e com quem nos permitir momentos de deixar fluir, de soltar as rédeas, suspender as censuras, de estar à vontade.

O psicanalista precisa ter a experiência desse sentir-se à vontade, do confiar seus pensamentos sem barreiras na prática da associação livre de ideias. Ele já foi cliente, e sabe o quanto confiou (ou desconfiou) em seu analista. Ele avalia o nível de entrega que pôde ter. Ele sabe que há uma correlação direta entre a intimidade mais secreta que confiou e o bom êxito da psicanálise que experimentou.

É preciso lembrar que a psicanálise se diferenciou da hipnose justamente pela lucidez da entrega: enquanto o hipnotizador dizia “Você está sob meu poder!”, e impunha que o cliente se entregasse através da dominação, o psicanalista precisa abdicar da posição de “Acima, superior ao paciente” (Superego = Acima de mim), para ser um prestador de serviço, advogado de defesa, estar a seu lado, trabalhando junto (colaborando, cooperativo), deliberadamente voltado à construção da saúde e do bem-estar de seu cliente.

A confiança será a base da entrega.




 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD



 


 

TENTANDO EXPLICAR A COMPLEXIDADE



“Depois de muitos estudos, concluí que o elefante é um conjunto de quatro grossas palmeiras, cravadas no chão”, disse o primeiro palestrante do Congresso de Cegos.

“Discordo!”, disse o segundo, “a minha observação mostra que ele é uma grande mangueira, com dois furos na ponta”.

“Nada disso, ele é um muro com uma corda pendurada, que termina em um chumaço de pelos!”, disse o terceiro.

Desde então, o elefante se tornou meu ícone da complexidade. Como explicar ao cliente que o aspecto por mim apontado não anula o outro, mesmo sendo o oposto dele? Como dizer que ele pode amar e também não gostar de um filho que urra sem parar durante a noite? Como fazê-lo ver que sua sexualidade não é uma coisa só? Como evocar Mário de Andrade, e lembrar-lhe “você é trezentos”?

O senso comum induz a um pensamento automático que não é estéreo, é mono; não é policromático, é preto ou branco. Ele te encosta na parede com a falácia do “reductio ad absurdum”: “Ah, você quer entender as razões do estuprador? Então você é a favor do feminicídio, né?” Ele cria censura do pensamento, pudores ideológicos, medo da incorreção política.

Ele emburrece por simplorismo. São duas coisas que a psicanálise não pode ser: nem burra, nem simplória.

Minha metáfora favorita para falar da complexidade sempre foi a análise vetorial: sobre o mesmo ponto, várias forças (os vetores) são aplicadas. Elas têm intensidade, direção e sentidos diferentes. Ainda por cima, mudam constantemente. Desse conjunto surgirá uma resultante que move o ponto.

“Você é uma boa pessoa. Mas não está imune à raiva. Quando ela aparece, você fica horrorizado. Por isso, move-se na direção contrária, e se torna super bonzinho. Como resultado, as pessoas abusam da sua bondade. Isso te dá mais raiva. Mais raiva, mais perturbação. É dessa misturada de forças atuando sobre você que vem seu sintoma de pensamentos raivosos invasivos...”

Mas a análise vetorial requer uma lembrança que seja das aulas de física, o que não é comum. Passei então a usar um rio e seus afluentes, para falar dos componentes alimentadores da complexidade. Ah, tem até a pororoca, como vetor contrário.

Enfim, falar da complexidade é complexo, um pleonasmo redundante; entendê-la é um plus a mais, adicional...



 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD



 

 

sábado, 6 de março de 2021

TENTANDO ENTENDER O CAPITÃO. 2


Em resposta ao Ricardo Rangel
TENTANDO ENTENDER O CAPITÃO. 2

Quase um ano depois, volto ao assunto. Desta vez, por uma provocação do Ricardo Rangel, que escreveu sobre o impulso de morte que dominaria o capitão.

Como o impulso de morte é uma das hipóteses freudianas mais enigmáticas, e das que mais me intrigaram, acrescento aqui o que já pensei sobre ela e como ele se aplica, a meu ver, ao capitão.

Diferentemente do que acontece em outras espécies, a morte é um assunto para a nossa. Sabemos que ela nos espera, inescapável como os impostos. Isso produziu em nós um complexo de inferioridade básico: vivemos tentando negá-la, “superá-la”, racionalizá-la. Pirâmides, religiões, cruzadas, “legados”, a “imortalidade” da Academia, enormes feitos foram engendrados para nos afirmar maiores do que ela.
Infelizmente, não são apenas as belas construções que a negam. Estas são resultado de inteligência e de perseverança: se não a evitam, podem melhorar a vida, trazendo-lhe beleza.

Não. Um meio mais simplório de afirmar-se maior é o reverso de construir: a destruição. Desde o imbecil que se acha fodão porque pixou a cúpula da Candelária e se tornou um “herói” na tribo de seus pares, até as diversas formas de assassinato: gangues, guerras, suicídio (a afirmação máxima de controlar a morte, ainda que ele vá da eutanásia ao mais lamentável de todos, o suicídio de vingança), o fuzilamento dos inimigos, o linchamento, e em termos mais atuais, o cancelamento.

Pode-se dizer então que, quanto mais primitiva e tosca a mente, mais simplória será a solução de se afirmar não-merda, de se dizer maior: aniquilar o adversário. 

A democracia é uma construção complexa e permanente. A tirania sempre foi o governo mais simplório e primitivo. Convencer é complexo; vencer é simplório. Divergir no debate é complexo; prender/matar o divergente é simplório.

O grande lamento de Nelson Rodrigues (“os imbecis dominarão o mundo; não pela qualidade, mas pela quantidade: eles são muitos”) era pela forte suspeita de que a democracia possa ter sido um ponto fora da curva, um acidente na história da humanidade.

Agora reviso nas entrelinhas a postagem de abril de 2020:

Ruth de Aquino, em artigo, defendeu que ele é psicopata, e não louco. Creio que ela acerta um pouco, mas erra muito, principalmente por simplificação. 

A meu ver, a encrenca do capitão é uma soma, uma mistura de:
a) burrice tosca complexada, desses que se percebem burros e negam isso de forma agressiva, em permanente atitude de defesa, por se sentirem sob permanente ataque/crítica.

b)  um atroz e invejoso ressentimento da inteligência e da cultura alheias, ao ponto de ver a razão e a ciência como inimigas, e crer que sua opinião prevalece sobre fatos.

c) perversão sadomasoquista semelhante à do Trump, do tipo fodão-merda, que precisa de constante afirmação/adulação para combater sua insegurança, precisa de uma tribo de seguidores fanáticos para se apoiar, precisa compulsivamente de apontar os outros como merdas para se sentir fodão (com a diferença de que Trump não é burro, é principalmente fodão-merda); 

(Nota: já dá para perceber que o único projeto de governo do capitão é se reeleger. Ele vê que não sabe governar e não governa, só ocupa seu tempo em campanha, brigando e tentando virar ditador.)

d) sim, algum grau de psicopatia, mas não elevado. Um bom psicopata não se sente ameaçado como ele se sente, basta vê-lo no pronunciamento público ao despedir o Mandetta. Ele parecia vidrado, meio atemorizado mesmo; de jeito nenhum estava frio como um psicopata estaria.

(Nota: outros sinais de medo são o destempero histérico, a coprolalia e o sumiço diante da prisão do Queiroz.)

O capitão parece acreditar nas besteiras/inverdades que diz, diferentemente de Trump ou Lula. Ele parece crer que seu passado de atleta o imuniza contra a Covid etc. Isso faz com que ele soe realmente sincero e autêntico, como seus seguidores dizem. 

Já Trump e Lula mentem com gosto, com o gozo de quem sabe que está fazendo os outros de idiotas. Isso sim, é coisa de sociopata/psicopata.

Enfim, me esforço por entender a complexidade desse fenômeno da democracia representativa, pois que ele realmente representa um significativo percentual da população, daqueles que sempre se sentiram ressentidos e humilhados pela suposta superioridade intelectual das esquerdas (o “politicamente correto” foi fator de irritação anti-esquerdas na eleição dele e na de Trump) e veem no capitão sua revanche.




 
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“Você investiga a orientação sexual do cliente? Como?” - O AMIGO PERGUNTA

 


ORIENTAÇÃO SEXUAL

“Você investiga a orientação sexual do cliente? Como?”

Francisco Daudt: A psicanálise terapêutica só tem como objeto de investigação aquilo que for problemático para o cliente, o que representar parte de seus sintomas.

Portanto, só tem cabimento investigar orientação sexual se ela é uma questão, um assunto do cliente. A maior parte deles já chega com esse tema resolvido, querendo ver outros. É claro que o desejo da pessoa é um dos principais objetos de investigação, mas será para além da questão homo/hétero, será para um desenho mais detalhado da complexidade de seu desejo.
Mas há aqueles que trazem esse tipo de incômodo: um clássico sintoma obsessivo é a dúvida “será que, no fundo, eu sou um gay enrustido?”

Aí sim, a investigação se impõe. O que, para homens, não é difícil. A pergunta-chave é: para onde seus olhos são atraídos, que corpos chamam a sua atenção animada?

“Ah, para as mulheres, mas... volta e meia me pego dando uma olhada para o pau dos caras, é como se fosse um imã, e morro de vergonha”.

Nessas horas, a pornografia e a masturbação ajudam muito: “Que tipo de pornografia te excita? Você se detém em nudes de homem ou de mulher?”

O sintoma da dúvida obsessiva gay/hétero fala de quão comum é não haver uma orientação do tipo zero da escala Kinsey (hétero sem nenhum interesse homo, esses héteros que não têm nada de homofóbicos).

Mas um obsessivo é, digamos, obcecado com pureza: ou tudo, ou nada. Frequentemente, eles são héteros com algum mínimo interesse/curiosidade homoerótica, mas quem disse que aceitam isso facilmente? Vira uma questão.

PS: É muito difícil haver esse tipo de sintoma em mulheres, elas transitam com facilidade pelos vários tipos de interesse sexual.

Isso só é drama para os homens... 



 
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“Como são formados os sonhos?” - O AMIGO PERGUNTA

 


A MARAVILHA DOS SONHOS

“Como são formados os sonhos?”

Francisco Daudt: Os sonhos dão um vislumbre da interação entre nossos softwares e hardware. Começando pelo fato de que não há observação direta dos sonhos, só do relato que fazemos deles, já vemos seu ponto central: a memória.

Acordamos e nos lembramos de ter sonhado. É uma memória fugidia, se o sonho não foi intenso, se formos fazer qualquer coisa ao acordar, a possibilidade de esquecermos do sonho é grande.

Mas, ao olharmos para o sonho, é espantoso pensar que cada cena, cada detalhe, cada emoção ali contidos saíram de nossos arquivos de memória. Alguns deles,não visitados há décadas. Cenários de nossa infância, pessoas que já morreram, faces compostas de várias outras. Tudo arquivo de nossa memória, tudo gravado e adormecido em algum lugar de nosso cérebro.

Quem já se embriagou ou já esteve chapado de maconha tem uma experiência vívida de como a memória (não) se forma: “De ontem? Não me lembro de nada...” ; “Antes de terminar a frase, já não me lembrava mais do que estava falando”.

Não houve esquecimento, nem num caso, nem no outro: a memória simplesmente não se formou. Seu processo bioeletroquímico de construção foi inibido pela presença do tóxico.

Todas as memórias de uma vida inteira estão lá, codificadas como gravações no nosso HD. Elas serão acionadas por estímulos atuais. Por exemplo: o que você almoçou ontem? Qual o nome da sua mãe? As memórias que lhe vieram estavam num pré-consciente; minhas perguntas fizeram sua atenção ir buscá-las lá.

A mesma coisa acontece com a formação dos sonhos. Nas vésperas de sonhar, algo nos tocou. Esse “tocou” não é simples. Tocou nosso desejo frustrado, como a criança que foi dormir sem sobremesa e sonha que come o doce. Ou toca nosso desejo conflituoso, como o tesão pela cunhada brigando com a culpa de pensar tal pecado. Ou nosso desejo de vingança, e sonhamos algo muito violento.

Freud comparou a formação dos sonhos como a produção de um filme: tudo começa com o DESEJO de alguém (diretor, autor), a motivação para filmar uma história.

Esse desejo precisa ser forte o bastante para mobilizar um capital que financie a produção: o assunto tem que nos ser relevante. A partir daí, reúnem-se roteiristas, cenógrafos, direção, todos usando material de nossa memória para produzir o produto final: o sonho.

É curioso, há um desejo que pode surgir enquanto estamos dormindo, e que influencia na mudança do roteiro do “filme”: o desejo de continuar dormindo. Mesmo quando uma urgência de ir ao banheiro aparece. Logo o “diretor” insere umas cenas da pessoa indo ao banheiro, procurando o banheiro, fazendo um pouquinho de xixi... e continuando a dormir. Tudo com arquivos de sua memória, buscados às pressas para atender à nova demanda.

Essa é a maravilha dos sonhos...

A MARAVILHA DOS SONHOS 2

Francisco Daudt: Há um aspecto fascinante dos sonhos que chama especialmente a atenção: o sensório revivido. Estar num sonho é ver (e às vezes ouvir) como se estivéssemos acordados. Ver e ouvir o que não está do lado de fora, algo que vem dos arquivos de memória. Como se fossem alucinações.

Para entender como isso acontece, recorro a uma experiência psicodélica dos anos 70: a câmara de privação dos sentidos.

Punha-se a pessoa dentro de um compartimento fechado, confortavelmente mergulhada até o pescoço em água salgada morna, onde havia completo silêncio e escuridão.

Depois de algum tempo, a pessoa começava a alucinar: viajava em visões, ouvia sons. Às vezes era agradável, às vezes, bad trip...

A questão é que replicamos todas as noites uma câmara de privação de sentidos: ao deitar, diminuímos a necessidade de controlar o equilíbrio e os estímulos táteis da vigília. Apagamos as luzes, isolamos os ruídos (o ar condicionado produz “ruído branco”, estímulo brando e constante que simula um silêncio mais confortável que o silêncio absoluto), buscamos conforto térmico com o ar, coberta etc.

Com isso, cortamos os estímulos ao que Freud chamou de “polo sensório”, um captador mental pelos sentidos daquilo que se passa no mundo exterior. Isso permite um contrafluxo: o polo sensório começa a ser tocado por dentro, com nossos arquivos de memória... e sonhamos/alucinamos dormindo.

Essa é a maravilha dos sonhos...



 
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