domingo, 28 de fevereiro de 2021

MÃE NATUREZA (do 1 ao 5)

 


“Você poderia dar alguns exemplos de como a psicologia evolucionista influencia o seu trabalho de psicanalista?”

Francisco Daudt: Nesses tempos politicamente corretos, discutir nossa natureza é algo delicado. Vende-se muito a ideia de que tudo possa ser corrigido pela criação dos filhos e pelas políticas públicas, de que tudo é uma questão cultural.

Por isso, parto de algumas premissas que, se aceitas, a conversa pode continuar. Tomemos a mais importante delas:
Mulheres engravidam; homens não. Isto é fato da natureza, não é cultural.

Aceita essa premissa, podemos conversar sobre o fato natural que mais faz diferença em nossas vidas. Ele é cheio de consequências:

1. As mulheres sempre sabem que seus filhos são realmente seus; os homens sempre terão uma margem de dúvida.

Sim, atualmente o teste de DNA pode resolver essa questão, mas considere o ponto crítico de desentendimento a que se precisa chegar antes que ele seja pedido, e quanto tempo de suspeitas e amarguras antecede esse momento.

2. As mulheres tenderão a se preocupar sobre sua reputação sexual, se são confiáveis ou não neste quesito (“Sim, o filho é mesmo seu!”).

3. Os homens podem engravidar e fugir; as mulheres estarão presas à cria, de nove meses a trinta anos ou mais.

4. As mulheres precisarão de mais ajuda, como decorrência, que os homens, pois ninguém cria filhos sozinho.

5. As mulheres tenderão a querer mais compromissos afetivos de longo prazo do que os homens.

6. Haverá negociações difíceis para que isso aconteça. Em termos grosseiros, uma guerra dos sexos que, numa caricatura, se descreve em uma frase: para ter sexo, os homens prometem casamento; para ter casamento, as mulheres prometem sexo.

Aí está a ponta do iceberg da presença da mãe natureza, injusta e desigual, em nossas vidas. O assunto aqui apenas esboçado. Há outros 90% submersos...


O ciúme masculino é principalmente sexual; o ciúme feminino é principalmente de prestígio. O homem teme criar filho dos outros; a mulher teme que seu homem invista em outros interesses que não ela – veja bem, não é nem “em outras mulheres”.

A fertilidade feminina tem prazo de validade; a masculina não. Decorre que as mulheres se preocupam mais com a perda da juventude que os homens.

Fertilidade e atratividade sexual estão ligadas. Não existe nenhuma cultura no mundo em que mulheres pós-menopausa sejam símbolos sexuais; Sean Connery foi eleito o homem mais sexy do mundo aos 80 anos.

A sobrevivência da humanidade depende do orgasmo masculino. Decorre que não há homem que não tenha experimentado orgasmo. O mesmo não se dá entre as mulheres.


O medo de cobras nasce conosco por herança genética há milhares de anos; o automóvel é o lugar mais perigoso em que entramos, mas apenas há 120 anos.

Quantas pessoas você conheceu que morreram em desastre de automóvel?

Quantas pessoas você conheceu que morreram picadas de cobra?

Continuamos com pavor de cobras. Ninguém tem medo de automóvel.

Dados: A maioria dos falecimentos por picada de cobra no Brasil acontecem com pessoas com 50 anos ou mais. Dos 844 casos ocorridos entre 2010 e 2018, 493 são desse grupo. Isso representa 58,4% do total.

São 100 pessoas POR ANO.

Durante 2019, 31.307 pessoas morreram por acidentes de trânsito e estimativas mostram que em 2020 o número não será muito diferente.

São 313 vezes mais.



Nascemos com uma programação de medos e repugnâncias que se liga aos dois anos e não se desliga mais.

Medos de escuro, altura, confinamento, répteis, grandes insetos voadores, grandes felinos... e o mais cotidiano deles, de desamparo.

Repugnância a fezes e a carne podre. Repugnância a podre é especialmente curiosa: uma pessoa pode nunca ter tido a experiência de sentir cheiro de carne podre, e vomitar automaticamente ao senti-lo pela primeira vez.

Esses medos e repugnâncias servem à nossa sobrevivência. Mas será sobre esse programa inato que o nosso Superego será construído. Ele vai absorver informações que o meio produz, para nos deixar alertas ao tipo de comportamento que pode nos por em risco.

O risco mais óbvio é o de desamparo: “se eu fizer isso, não vão mais gostar de mim”. Muitos pais ameaçam seus filhos com essa frase, inclusive. A ameaça absorvida vira vergonha e sentimento de culpa, agora despertados pela acusação desse “juiz interno” que é o Superego.

Mas as fobias nos lembram dos outros medos de raiz assumidos pelo Superego. O medo de voar de avião, assim como o de elevador, falam do confinamento e da altura. Há variadas fobias envolvendo répteis (lagartixas, p.e.), insetos e outros artrópodes (baratas, cigarras e aranhas), e até de felinos (gatos).

Finalmente, as obsessões por limpeza, medo dos germes e os nojos variados, se ligam às repugnâncias primitivas.

É o horror às “imundices”.


Quantas vezes você já ouviu alguém responder com um simples “não sei” a uma pergunta?

Ok, você pode responder a essa com um “não sei”, mas sendo “impressionista”, você diria que é frequente ou que é raro?

Muito mais comum é se ouvir “ah, vai ver que é porque...”, ou “eu acho que...”

E a partir daí, a pessoa preenche o vazio de seu conhecimento com o pensamento mágico.

Não há nada de errado nisso, é simplesmente um aspecto da natureza humana: o desconhecido nos causa medo, pode conter uma ameaça. Haver uma resposta para tudo é tranquilizador.

Quando pequeno, eu quis saber por que havia trovões durante as tempestades de verão. “Ah, é porque estão fazendo faxina no céu. Não vê a água que cai de lá? Estão lavando o chão. Os trovões é quando arrastam os móveis”, explicou-me a minha babá. E eu fiquei mais calmo...

A tradição oral, a Bíblia, os mitos, os oráculos, as videntes, as estrelas e as religiões continham todo o saber necessário. Estava escrito, os sábios disseram, e a humanidade se tranquilizava.

Foi quase anteontem, a primeira vez na história em que se disse, “Ei, espere, eu... não sei! Mas quero saber!” Há uns 500 anos apenas: o Iluminismo. O nascimento das ciências. A ignorância assumida que motivou a investigação, a pesquisa, as descobertas, a revolução científica.

Assumir o “não sei” é, pois, uma virtude. É o “não sei” curioso e interessado que nos moverá às descobertas.

Imagino um futuro psicanalista lendo estas linhas e ganhando o direito de dizer “ainda não sei” para si mesmo, afastando de si a tentação de interpretar tudo com tiradas espertas, quase místicas, certamente esotéricas e obscuras.

Um futuro psicanalista descobrindo que a ignorância assumida não é uma vergonha, mas o começo da busca do verdadeiro, uma virtude trabalhosa.

Como todas as virtudes o são: o prazer não é imediato, e sim construído.



 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD

O AMIGO PERGUNTA - A “BONZINHICE”

 



“O que é formação reativa, em psicanálise?”

Francisco Daudt: É uma atitude que se constrói, se forma (formação) em reação (reativa) a algo que a pessoa considera muito feio, errado, mau. É um mecanismo de defesa contra a angústia de ser mal julgada: “Olha, eu sou o contrário dessa coisa feia, viu?”

É um movimento meio deliberado, meio inconsciente. Começa na infância, em geral, mas pode ser tardio.

A “bonzinhice” é típico exemplo de formação reativa. Primeiramente, por seu caráter exagerado: bondade é uma coisa, bonzinhice é outra. Aquela doce criança, supercomportada, que nunca dá trabalho, tão boazinha, já está sofrendo de formação reativa.

Mas reativa a quê? Reativa à maldade que vem da raiva. A raiva é talvez o sentimento mais difícil de se administrar. Apesar de ela ser a reação natural às injustiças, é extraordinariamente complicado para uma criança ter rebeldia às injustiças que vêm dos adultos. Como apresentar de maneira serena seus pleitos de justiça?

Outro dia contei que minha primeira lembrança da vida foi de raiva/ciúmes. Você imagina o pirralho de três anos que eu era chegando para minha mãe e dizendo “Estou sendo ameaçado de abandono porque você vai ter um bebê novo, coisa que não seria justa. Isso é verdade?”

Impossível. O que fiz eu (sem decidir nada, claro)? Fiquei bonzinho, não dei trabalho, amei minha irmãzinha nova, tudo na vã esperança de ser amado...

Desenvolvi uma formação reativa contra a raiva, a “bonzinhice”.

Outros exemplos de formação reativa: a macheza exagerada (por temor de viadagem); os pudores e nojinhos exagerados (por temor da própria sexualidade); as demonstrações exageradas das próprias virtudes (por desejo de superioridade moral e temor de incorreção política).

Enfim, todas as vezes em que você notar que está exagerando em alguma atitude, pode se investigar sobre uma formação reativa em andamento...


 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD


O ELOGIO DO MIMO



Se você é mimado, tem um problema pela frente.

Eu sei que as gerações “floco de neve” são tão mimadas que, em inglês, não se diz mais “spoiled” (estragado); o termo novo é “entitled” (que se sente no direito a).

Mas o problema não está no mimo, está na voz passiva. “Eu sou mimado” significa que há sempre alguém me dando comidinha na boca. Significa que “eu sou um incapacitado”, pois a função de mãe (exercida por não importa quem) excessiva me trata como um idiota que não sabe fazer nada por si, como se eu fosse um bebezão que ainda não saiu do berço, nem ir ao banheiro sozinho eu sei.

Mas se eu sou independente e autônomo, tenho meios para terceirizar coisas chatas e compro tempo livre para mim, a conversa é outra: EU me mimo!

Ora, grande parte da felicidade está em conhecer seus desejos e implementar meios para que eles sejam atendidos. Se faço isso, eu me mimo, eu me trato muito bem.

Só preciso ter cuidado com a inveja dos outros...


 

NATUREZA HUMANA 5 - O ELOGIO DA IGNORÂNCIA ASSUMIDA

 


Quantas vezes você já ouviu alguém responder com um simples “não sei” a uma pergunta?

Ok, você pode responder a essa com um “não sei”, mas sendo “impressionista”, você diria que é frequente ou que é raro?

Muito mais comum é se ouvir “ah, vai ver que é porque...”, ou “eu acho que...”

E a partir daí, a pessoa preenche o vazio de seu conhecimento com o pensamento mágico.

Não há nada de errado nisso, é simplesmente um aspecto da natureza humana: o desconhecido nos causa medo, pode conter uma ameaça. Haver uma resposta para tudo é tranquilizador.

Quando pequeno, eu quis saber por que havia trovões durante as tempestades de verão. “Ah, é porque estão fazendo faxina no céu. Não vê a água que cai de lá? Estão lavando o chão. Os trovões é quando arrastam os móveis”, explicou-me a minha babá. E eu fiquei mais calmo...

A tradição oral, a Bíblia, os mitos, os oráculos, as videntes, as estrelas e as religiões continham todo o saber necessário. Estava escrito, os sábios disseram, e a humanidade se tranquilizava.

Foi quase anteontem, a primeira vez na história em que se disse, “Ei, espere, eu... não sei! Mas quero saber!” Há uns 500 anos apenas: o Iluminismo. O nascimento das ciências. A ignorância assumida que motivou a investigação, a pesquisa, as descobertas, a revolução científica.

Assumir o “não sei” é, pois, uma virtude. É o “não sei” curioso e interessado que nos moverá às descobertas.

Imagino um futuro psicanalista lendo estas linhas e ganhando o direito de dizer “ainda não sei” para si mesmo, afastando de si a tentação de interpretar tudo com tiradas espertas, quase místicas, certamente esotéricas e obscuras.

Um futuro psicanalista descobrindo que a ignorância assumida não é uma vergonha, mas o começo da busca do verdadeiro, uma virtude trabalhosa.

Como todas as virtudes o são: o prazer não é imediato, e sim construído.


 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD



MÃE NATUREZA 4

 



Nascemos com uma programação de medos e repugnâncias que se liga aos dois anos e não se desliga mais.

Medos de escuro, altura, confinamento, répteis, grandes insetos voadores, grandes felinos... e o mais cotidiano deles, de desamparo.

Repugnância a fezes e a carne podre. Repugnância a podre é especialmente curiosa: uma pessoa pode nunca ter tido a experiência de sentir cheiro de carne podre, e vomitar automaticamente ao senti-lo pela primeira vez.

Esses medos e repugnâncias servem à nossa sobrevivência. Mas será sobre esse programa inato que o nosso Superego será construído. Ele vai absorver informações que o meio produz, para nos deixar alertas ao tipo de comportamento que pode nos por em risco.

O risco mais óbvio é o de desamparo: “se eu fizer isso, não vão mais gostar de mim”. Muitos pais ameaçam seus filhos com essa frase, inclusive. A ameaça absorvida vira vergonha e sentimento de culpa, agora despertados pela acusação desse “juiz interno” que é o Superego.

Mas as fobias nos lembram dos outros medos de raiz assumidos pelo Superego. O medo de voar de avião, assim como o de elevador, falam do confinamento e da altura. Há variadas fobias envolvendo répteis (lagartixas, p.e.), insetos e outros artrópodes (baratas, cigarras e aranhas), e até de felinos (gatos).

Finalmente, as obsessões por limpeza, medo dos germes e os nojos variados, se ligam às repugnâncias primitivas.

É o horror às “imundices”.


 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD


MÃE NATUREZA 3

 



O medo de cobras nasce conosco por herança genética há milhares de anos; o automóvel é o lugar mais perigoso em que entramos, mas apenas há 120 anos.

Quantas pessoas você conheceu que morreram em desastre de automóvel?

Quantas pessoas você conheceu que morreram picadas de cobra?

Continuamos com pavor de cobras. Ninguém tem medo de automóvel.

Dados: A maioria dos falecimentos por picada de cobra no Brasil acontecem com pessoas com 50 anos ou mais. Dos 844 casos ocorridos entre 2010 e 2018, 493 são desse grupo. Isso representa 58,4% do total.

São 100 pessoas POR ANO.

Durante 2019, 31.307 pessoas morreram por acidentes de trânsito e estimativas mostram que em 2020 o número não será muito diferente.

São 313 vezes mais.


 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD



MÃE NATUREZA, INJUSTA E DESIGUAL 2



O ciúme masculino é principalmente sexual; o ciúme feminino é principalmente de prestígio. O homem teme criar filho dos outros; a mulher teme que seu homem invista em outros interesses que não ela – veja bem, não é nem “em outras mulheres”.

A fertilidade feminina tem prazo de validade; a masculina não. Decorre que as mulheres se preocupam mais com a perda da juventude que os homens.

Fertilidade e atratividade sexual estão ligadas. Não existe nenhuma cultura no mundo em que mulheres pós-menopausa sejam símbolos sexuais; Sean Connery foi eleito o homem mais sexy do mundo aos 80 anos.

A sobrevivência da humanidade depende do orgasmo masculino. Decorre que não há homem que não tenha experimentado orgasmo. O mesmo não se dá entre as mulheres.


 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD


 

MÃE NATUREZA, A INJUSTA E DESIGUAL

 



“Você poderia dar alguns exemplos de como a psicologia evolucionista influencia o seu trabalho de psicanalista?”

Francisco Daudt: Nesses tempos politicamente corretos, discutir nossa natureza é algo delicado. Vende-se muito a ideia de que tudo possa ser corrigido pela criação dos filhos e pelas políticas públicas, de que tudo é uma questão cultural.

Por isso, parto de algumas premissas que, se aceitas, a conversa pode continuar. Tomemos a mais importante delas:
Mulheres engravidam; homens não. Isto é fato da natureza, não é cultural.

Aceita essa premissa, podemos conversar sobre o fato natural que mais faz diferença em nossas vidas. Ele é cheio de consequências:

1. As mulheres sempre sabem que seus filhos são realmente seus; os homens sempre terão uma margem de dúvida.

Sim, atualmente o teste de DNA pode resolver essa questão, mas considere o ponto crítico de desentendimento a que se precisa chegar antes que ele seja pedido, e quanto tempo de suspeitas e amarguras antecede esse momento.

2. As mulheres tenderão a se preocupar sobre sua reputação sexual, se são confiáveis ou não neste quesito (“Sim, o filho é mesmo seu!”).

3. Os homens podem engravidar e fugir; as mulheres estarão presas à cria, de nove meses a trinta anos ou mais.

4. As mulheres precisarão de mais ajuda, como decorrência, que os homens, pois ninguém cria filhos sozinho.

5. As mulheres tenderão a querer mais compromissos afetivos de longo prazo do que os homens.

6. Haverá negociações difíceis para que isso aconteça. Em termos grosseiros, uma guerra dos sexos que, numa caricatura, se descreve em uma frase: para ter sexo, os homens prometem casamento; para ter casamento, as mulheres prometem sexo.

Aí está a ponta do iceberg da presença da mãe natureza, injusta e desigual, em nossas vidas. O assunto aqui apenas esboçado. Há outros 90% submersos...

 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD



Pornografia educativa

 



 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD





domingo, 14 de fevereiro de 2021

NÃO EXISTE CULTURA INÚTIL

 


“A baleia orca é, na verdade, um golfinho gigante. O prezado ouvinte... sabia?”

As pérolas da Radio-Relógio Federal deslumbravam o ouvinte curioso. E havia o arremate filosófico: “O minuto é um milagre que não se repete”, plim!

É claro que Urbano, o aposentado, atormenta os outros com seu Homem-Almanaque, e tiozões assemelhados fizeram assim a má fama desse tipo de saber, chamando-o de “cultura inútil”.

No entanto, cada novo aprendizado que surge do nosso INTERESSE e de nossa CURIOSIDADE tem o valor inestimável de mexer com nossos neurônios e fazer com que vejamos uma coisa banal por um ângulo surpreendente.

Ora, interesse e curiosidade são expressões do nosso desejo, e não existe utilidade maior na vida do que a descoberta do que o atende. 

TODA a psicanálise está voltada para isso: conhecer o próprio desejo e implementar meios de satisfazê-lo.

 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD


INVEJA, UMA INJUSTIÇA INJUSTA

 


“Que ódio, ele é mais inteligente do que eu, ele me humilha com sua inteligência, isso não é justo! Tomara que ele morra!”

De fato, a mãe natureza não é justa em sua distribuição lotérica de qualidades. Nos valores que fazem diferença para o mercado sexual, ela é generosa com uns, mesquinha com outros. Ela é como uma mãe que tem preferidos, e isso costuma despertar ciúmes nos filhos enjeitados. 

O ciúme é a primeira inveja, frequentemente a primeira injustiça, que causa a primeira raiva.

Eu tinha três anos quando a empregada me anunciou, rindo: “Aí, hein, vai deixar de ser o reizinho da casa, vai ganhar irmãozinho...” Sim, minha mãe estava grávida; sim, eu era o caçula; sim, fiquei muito puto. Foi meu primeiro ciúme, minha primeira raiva, minha primeira percepção de injustiça frente à qual eu era impotente.

Só que aquele ciúme, aquela raiva não era sem fundamento: eu estava mesmo sendo roubado de algo que julgava meu. A atenção que recebia, a partir dali, estava fadada a me ser subtraída e dada a alguém mais. A situação continha sim uma injustiça, a raiva era justa. 

A raiva é fruto do sentimento de injustiça; é ela que move a busca de reparação. A raiva é, pois, mãe da justiça.

Mas a correção daquela injustiça só pôde ser feita 42 anos mais tarde, quando estávamos esperando nosso segundo filho: resolvi que minha primogênita não haveria de sofrer aquele golpe que sofri. Ao longo da gravidez, diluí e terceirizei os cuidados e atenções que ela recebia, de modo a que ela não sentisse tanto a retirada dos nossos cuidados, quando o bebezinho nascesse. E funcionou.

Voltando à inveja: assim como na família nuclear temos uma premissa de que deveria haver igualdade na distribuição de afetos, no caso da inveja, parte-se da mesma premissa, a justiça pela igualdade.

A partir dessa crença íntima do direito à igualdade, podemos nos comparar, dizer que o outro “recebeu” mais que nós, que estamos sendo roubados por ele, e isso nos deixar irados, furiosos de... inveja.

Como no ciúme dos filhos, essa inveja foi motor de justiça em alguns casos históricos: a ala esquerda do parlamento da revolução francesa lutava por igualdade, enquanto a ala direita defendia a liberdade (deixemos a “fraternité” de lado, pois que eles mesmos  sabiam que ela era um tanto utópica).

Foi assim que surgiu o conceito de igualdade democrática, que almeja a igualdade de OPORTUNIDADES E DIREITOS. É uma batalha incessante, mas é dos momentos mais lindos da história da humanidade, quando se pôde usar a fração justa da inveja para a busca de correção de uma injustiça arcaica. Foi pensando nesse momento que me inspirei para buscar a justiça entre os filhos.

As outras desigualdades da vida, porém, continuarão existindo... e continuarão a gerar inveja. Inveja causada por uma injustiça... injusta.


 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD


A PSICANÁLISE E AS CIRCUNSTÂNCIAS

 



“Eu sou eu e a minha circunstância, e se não salvo a ela, não salvo a mim”.
(Ortega y Gasset, 1883-1955, Espanha)

A psicanálise investiga o Eu, o Superego e o desejo inconsciente, sim. Mas ninguém fala das circunstâncias, e elas fazem toda a diferença. Para o Eu, para o Superego e para o desejo inconsciente.

Ortega y Gasset tem toda a razão: é preciso salvar a circunstância para salvar o paciente.

A circunstância é o que o cerca, é onde ele está imerso. A circunstância é a pandemia, mas é também a sogra, a dívida, o emprego/desemprego, a dor lombar, os amigos, o próximo, o distante, o senso comum, o estresse, o vício, a treta, a oportunidade, os meios e a motivação.

A circunstância pode ser imutável, e essa o estoicismo, mesmo que não dê conta dela, ajuda a suportar.
Mas pode ser mutável para melhor: essa sim, é assunto da psicanálise.

Quando o diagnóstico da doença é feito, com ele vem a consciência dos gatilhos que a despertam, dos traumas que a causaram, das trilhas que a ela levam, das frustrações que a mantêm.

Todos esses podem ser circunstâncias mutáveis, à espera da intervenção possível... e desejável.
Intervenções que salvam o Eu.


 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD


A ARMADILHA DO PRAZER

“A galinha é a máquina inventada pelo ovo para fazer um outro ovo”.O prazer é o truque inventado pelo DNA para que façamos outro DNA. A busca do prazer - e a evitação do desprazer - pautam nossa vida desde o berço. São eles que nos manterão vivos e que acabarão por nos dar filhos, queiramos ou não (é tão mais fácil esquecer a camisinha ou a pílula...).Nós não somos programados para a paternidade/maternidade, somos sim programados para buscar prazer: a obesidade mórbida e o sexo virtual nos espreitam...
 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD


“O que dizer sobre o instinto materno e o relógio biológico?” - O AMIGO PERGUNTA

 


O AMIGO PERGUNTA 
Zoraya Therezinha Silva: “O que dizer sobre o instinto materno e o relógio biológico?”

Francisco Daudt: Há uma preciosa observação recente sobre essa conversa entre natureza e cultura (nature/nurture): a influência do feminismo nas decisões sobre maternidade. 

Com o número crescente de mulheres que mandam na própria vida, cresceu também o número daquelas que decidiram não ter filhos, ou deixar isso para o mais tarde possível.

Acompanhei algumas, no consultório; outras, nas relações pessoais e pela mídia, pois é assunto que me desperta a curiosidade. Elas relatam ter sofrido muita pressão de amigas e parentes para que engravidassem, para abandonar uma decisão que incomodava as outras. Umas poucas – muito poucas – congelaram óvulos, para o caso de mudarem de ideia. 

De modo que minha impressão geral é de que, quando a ideia de realização pessoal de uma mulher é formar família (ou quando isso é o senso comum de seu meio), o tal “instinto materno” impera e o relógio biológico causa grande ansiedade.

Mas se a mulher muda de cabeça (e, por consequência, de meio), esse “instinto” passa para um segundo ou terceiro plano.


 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD


domingo, 7 de fevereiro de 2021

AGRAVANTES E ATENUANTES DA IMBECILIDADE



“Minha questão aqui é que a ninguém a imbecilidade é alheia, não há quem esteja imune a ela”.

"Os imbecis perderam a modéstia"; "Os idiotas vão dominar o mundo; não pela capacidade, mas pela quantidade. Eles são muitos."

As famosas frases de Nelson Rodrigues constatam uma triste realidade da espécie. Não à toa o primeiro-ministro britânico Winston Churchill disse que a democracia era o pior dos regimes (com exceção de todos os outros).

Queixar-se da imbecilidade humana, porém, é como queixar-se da chuva: é um dado da natureza e não há nada a fazer, exceto proteger-se dela.

Minha questão aqui é que a ninguém a imbecilidade é alheia, não há quem esteja imune a ela; todo Einstein tem seu momento de Eremildo, o personagem idiota do Elio Gaspari. O que quero comentar são os fatores que agravam a imbecilidade, e os que a atenuam, para que todos nós possamos lidar melhor com ela.

Você pensará que lidar melhor com ela visa apenas atenuá-la, mas não; eu acredito que há muita gente mal-intencionada querendo aumentá-la. Se não, como explicar o descalabro da educação pública?

Afinal, a educação é o pilar da busca da igualdade de oportunidades; é o que transformou a Coreia do Sul em potência econômica em poucas décadas. Em nossa terra, todavia, é entregue às baratas.

Deve haver muito político temendo um povo esclarecido, preferindo pobres mendigando por uma bolsa-esmola a troco de votos.

A chave psicológica do aumento/diminuição da imbecilidade está na capacidade humana de reflexão/reação. Se somos induzidos à reatividade, nossa burrice aumenta. Se temos espaço para a reflexão, cresce nossa inteligência.

É verdade que nossa espécie não teve muito estímulo para a reflexão em suas origens: imagine um ancestral nosso na savana africana vendo um bando de amigos em correria. Se ele parasse para refletir sobre o pânico público, provavelmente teria sido devorado por um predador, não deixando descendentes.

A reatividade de sair correndo junto aos amigos salvou sua vida. A filosofia teve mais chance de existir quando o grego clássico pôde tranquilamente conversar e refletir com seus pares na Ágora.

Eis que nesse cenário acima está o que determina a reatividade e o que possibilita a reflexão: sentir-se ou não ameaçado; precisar ou não se defender. De fato, todos os mecanismos de defesa psíquicos são emburrecedores.

Tomemos apenas a negação como exemplo: todos nós estamos fadados a morrer. A morte e os impostos são as duas únicas certezas da vida. Agora considere a quantidade de energia que a humanidade investe na negação da morte.

Considere o aluguel mental que isso traz, todas as derivações dessa negação (Galileu e a rejeição ao heliocentrismo, por exemplo), e você terá uma pálida ideia da influência emburrecedora dos mecanismos de defesa.

Para um exemplo mais recente, considere os nossos debates políticos. Há espaço para reflexão neles? Todos se ocupam de atacar o oponente por meio dos piores adjetivos, pois sabemos que a melhor defesa é o ataque. Claro, todos estão sob a ameaça dos rótulos horríveis que cada parte lhes lança. Assim, só fazem reagir. É a imbecilidade desfilando em toda sua glória.

Algo em âmbito mais próximo? Pense nas DRs (discussões de relação). A ameaça de rompimento, de desamparo, de perda de amor está tão presente que a reatividade defensiva impera, é por isso que não se vai muito longe nelas Se elas começassem com uma declaração apaziguadora (eu te amo e quero me entender bem com você), as chances de reflexão seriam maiores.

Todas as doenças psíquicas neuroses, psicoses, perversões, depressão, psicopatia derivam de estarmos aprisionados a mecanismos de defesa contra as ameaças do mundo (i.e., do superego), e sabemos como elas nos reduzem a capacidade de raciocinar.

Eis porque adoro a conversa calma e amigável; o ambiente que acolhe e não acusa; a amizade que não pressupõe malícia da outra parte; a autoridade do saber, e não a de mando; a democracia parlamentar, e não a tirania.

“Como obsessivos veem a ambivalência?” - O AMIGO PERGUNTA



Francisco Daudt: Não veem. O problema é esse. Um obsessivo tem particular dificuldade para aceitar a ambivalência, principalmente em si, secundariamente nos outros. 

Para o obsessivo, vale o poema de Cecília Meireles: “ou isso, ou aquilo”. Nunca os dois. Jamais um obsessivo dirá “eu gosto de fulano, mas também às vezes quero matá-lo”. Ou ele gosta, ou ele não gosta. O não gostar será visto como impureza do gostar.

A obsessividade é um traço genético que faz a criança ver sua raiva das pessoas importantes (pai e mãe, p.e.) como uma séria ameaça de retaliação/desamparo, e isso detona nela um processo de buscar pureza de sentimentos. A raiva precisa ser banida como se fosse uma imundice.

Eis o que leva os obsessivos a funcionarem sobre os eixos do controle e da pureza (sendo que o controle serve à pureza). Acertam os quadros na parede porque são puros, e aquele “desvio” os incomoda. São bons e arrumados porque não abrigam impurezas de sentimentos. Se consideram intimamente uma fraude porque sabem que o 100% puro é inatingível. Estão em permanente questionamento da intenção de seus atos porque buscam a eliminação do ruído, da impureza.

Por isso é tão difícil fazer com que o obsessivo aceite a ambivalência: sim, você gosta e não gosta, em tempos diferentes, e os dois sentimentos valem, ambos valem, “ambi + valência”.

CANCELAMENTO

 


Matéria do 2º caderno do Globo de hoje me fez entender melhor o que é o tal cancelamento de que tanto se fala.

Ele é o mesmo que os muito antigos “justiçamento” e “linchamento”: ações extralegais violentas de correção de costumes/punição de crimes. 

Eles atendem vários desejos humanos primitivos: proeminência social por superioridade moral; ganhar importância pelo meio fácil da destruição; identidade tribal/grupal; sentir-se do “lado certo/justo”, além de um último e sinistro, o de ser ativo da morte.

A nossa espécie é a única que tem consciência de que vai morrer, isto acaba por fazer do assassinato (e seus congêneres, como o suicídio, o genocídio, a guerra e outros “cídios”) uma permanente tentação. Algo semelhante ao instinto de morte que Freud descreveu. 

Por rebeldia contra nossa passividade frente à morte, nós desejamos ter controle sobre ela, mesmo que sendo a morte dos outros.

Mas o linchamento é muito trabalhoso. O cancelamento, não: ele está ao alcance dos dedos.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

O AMIGO PERGUNTA - “Narcisismo é uma doença?”

 


Francisco Daudt: Depende do grau. Interesse pela própria imagem todos temos, zelar pelos próprios interesses, todos zelamos, é da espécie. Pense em São Francisco, o mais altruísta dos homens, e lá está ele dizendo em sua oração que “é dando que se recebe, é perdoando que se é perdoado”.

Ou seja, a empatia – a capacidade de se pôr na pele do outro – também nos serve; ela nos faz “amáveis”, merecedores de amor. Quando somos atentos ao outro, interessados por ele, temos a esperança de retribuição. Isto é a troca justa, o receber equivalente ao dar (ou equilibrado com ele).

Sim, mas existe uma fronteira a partir da qual nós percebemos que o narcisismo de alguém se torna um peso... para os outros. É curioso, nunca vi ninguém se queixar de que “sofre de narcisismo”. 

Havia uma anedota do narcisista que, depois de falar horas sobre si, disse: “Ah, cansei de falar de mim, fala você agora um pouco... sobre mim”. Ou da mulher que, diante da morte súbita do marido, saiu pela casa gritando, “Ele não tinha o direito de fazer isso COMIGO!”

Mesmo que a pessoa não “sofra” de narcisismo, um narcisista tem tamanha preocupação com a própria imagem, que é impossível não suspeitar de sua autoestima. Se ele precisar cuidar tanto de como aparece na foto, é porque teme muito não sair bem.

Pense no ex-presidente Trump. Dificilmente iremos encontrar exemplo mais caricatural de narcisista. Assistimos a quatro anos de ininterrupta torrente de autoelogios, de afirmações de superioridade, de realidade paralela até, para a negação de qualquer defeito ou limitação. 

Quando se soube que o pai lhe dissera na infância “Não aceito perdedores, viu!” (“losers”: fracassados, merdas), tivemos aí o vislumbre de sua insegurança e constante necessidade de pavoneio. 

Ou seja, não acredite que o narcisista se ache o máximo; ele guarda em segredo uma perturbadora suspeita sobre seu valor.

Essa é a diferença entre autoestima e vaidade/soberba: a autoestima é serena; a vaidade/soberba é inquieta, agitada, intranquila, em permanente busca de reafirmação.

O narcisismo mais comum é resultado de a pessoa lidar com tumultos internos tais, que a percepção do outro se torna completamente secundária. Não sobra espaço. Ele se desenvolve então como mecanismo de defesa contra a angústia causadas por suas fragilidades envergonhadas.

E pode se tornar um vício comportamental, um sadomasoquismo (mais ou menos) sutil, a que dei o nome de jogo fodão/merda.

Mas tenho visto narcisismo herdado: a pessoa já tem, desde criança, o jeitão de um de seus pais, excessivamente voltada para si mesma, meio incapaz de considerar o outro. Não é por maldade, é que o outro não lhe passa pela cabeça.

Quando os dois fatores se juntam, sai de baixo...


Francisco Daudt: Não é que narcisismo tenha cura, sobretudo se é genético. No entanto, a empatia pode ser aprendida como um gosto adquirido. 

Se o narcisista, assim como se o alcoólatra, se reconhece como tal, e mais, se vê vantagens na empatia, ele pode aprendê-la como se aprende uma língua estrangeira: tendo a coisa em mente e treinando muito. 

Um cliente, de forma bem-humorada, incorporou um jargão a cada nova conversa: “E você, como vai sua vida?” É assim que treina o interesse no próximo. Ele diz que está gostando muito...

Claro, é necessário que os problemas que o assolam e não deixam espaço para a percepção do outro sejam tratados; ele não pensará em ninguém mais, se aquele tumulto na cabeça não diminuir.