domingo, 14 de agosto de 2022

FUNÇÃO DE PAI

 



Na nossa espécie, função de pai e função de mãe são necessariamente casadas: não podemos dispensar nenhuma das duas.

Entenda-se função de mãe como extensão do ventre; entenda-se função de pai como extensão do parto.

A primeira acolhe, dá colinho, abriga, protege, aquece e alimenta.

A segunda ajuda a trazer para o mundo, atende às capacidades de crescentes independência e autonomia.

Nossa espécie, metida a poderosa, é de uma fragilidade sem igual: vamos precisar das duas funções ao longo da vida, às vezes mais, às vezes menos, mas não as dispensaremos jamais.

De início, exercidas por quem nos criou, sejam os pais biológicos ou adotivos, sejam as tias e tios, avôs e avós, os irmãos mais velhos, as babás, as vizinhas…

Nenhum deles exercerá apenas uma das funções: a mãe que amamenta e conversa com o bebê está atendendo sua capacidade de aprender a falar. O pai, que lhe dá a mão nos primeiros passos, protege, ampara e capacita.

Ao longo da vida, essas funções casadas (ou fragmentadas) virão dos amigos, dos professores, dos livros, das redes sociais, dos filmes, da família, namorados e namoradas, de nossos filhos e netos, até de nossos bichos de estimação, de toda parte vêm elas a nos alimentar o corpo e a alma: acolhimento e crescimento. Não ficou no passado. Não vivemos sem elas.

Hoje é um dia marcado para o reconhecimento de duas coisas: de quem nos deu e dá acolhimento e crescimento… e de nossa eterna necessidade de quem os continue nos dando.






O SUPEREGO E O MEDO DO DESAMPARO - O AMIGO PERGUNTA

 



De Vladimir Dietrich: “Eu até entendo que o desamparo seja uma força tremenda para os humanos, já que nascemos tão dependentes. Mas, por que ele se mantém como força de chantagem, mesmo depois de crescidos?”

Francisco Daudt: Você toca na principal arma que o Superego tem para nos impor suas crenças, mesmo quando elas são totalmente atrapalhadoras de nossos desejos: o medo do desamparo.

Certo, ele começa como instinto de sobrevivência, junto com os outros medos de raiz (escuro, altura, confinamento, répteis, grandes insetos etc.). Mas, como temos pouco contato com os outros, é MUITO contato com a ameaça de desamparo (“Assim eu não vou gostar mais de você”), é ele que fica como principal.

É ele que vai formar nosso Superego, nas seguintes bases: “como eu devo ser e me comportar para continuar a ser amparado?” Daí, nosso ouvido será o principal instrumento para absorver essas informações das quais dependem nossa sobrevivência (o amparo tem essa força imaginaria).

Você pode crescer num ambiente religioso formal, e absorverá as crenças e a moral religiosa (houve tempo em que eu acreditei que a a masturbação me mandaria para o inferno), e isso será o senso comum religioso. Ou pode crescer em família leiga, e absorverá as crenças e a lei moral do senso comum leigo. Não importa: O SENSO COMUM É A MAIS PODEROSA DAS RELIGIÕES. Sua principal lei é: pense e aja como todo mundo, senão…

Outro dia, um cliente de 24 anos me contou que gostava muito da namorada… mas odiava como ela tinha se transformado a partir da transição da ficância para o namoro: passou a ser exigente de várias “consolidações sociais da relação” (ficar o fim-de-semana inteiro grudados; apresentá-lo à família; diminuir a atividade sexual; discutir a relação (D.R.) frequentemente; postar fotos do casalzinho no Instagram etc.).

Ele lhe disse que gostava muito dela, mas estava odiando o tal de “namoro”, que queria voltar ao estado anterior. Ela disse, “mas namoro é assim, todo mundo sabe!, se você não quer namorar, então você não gosta de mim, você é egoísta, vamos terminar”.

Ela usou do senso comum (namoro é assim, todo mundo sabe), ela o enquadrou num antimodelo (egoísta), ela o ameaçou de desamparo.

Como ele não estava apaixonado - os apaixonados se infantilizam, voltam a ser altamente vulneráveis ao desamparo -, como ele não comprava a lei de namoro do senso comum, como o antimodelo do egoísta não lhe colava, terminou o namoro com um misto de tristeza e alívio…

Resulta que, quanto mais autônomo e independente você é, quando menos vulnerável às leis do senso comum será, quanto menos manipulável pela ameaça de desamparo será. Seu Superego terá menos poder.





CAPA E CONTRACAPA DO LIVRO NOVO




Arte de Tita Berredo, texto de Eduardo Affonso.








 

O BALDE E A TRANSFERÊNCIA

 



O conceito de transferência, em psicanálise, parece misterioso mas é simples: trata-se de transferir a um estímulo sensorial (algo que foi visto, ouvido ou sentido) um arquivo de nossa memória, que passa a dar um significado ao estímulo.

Quando você lê BALDE, aqui, transfere para essas manchinhas pretas na tela um arquivo de sua memória, e elas ganham um significado… de balde. O processo é tão automático, que você nem percebe que ele se deu. Se você lesse EIMER, não haveria arquivos de memória para transferir, a coisa não significaria nada (Eimer é balde em alemão).

Pois eu e minha irmã, quando crianças, fizemos uma brincadeira curiosa: ficamos falando “balde”, um para o outro, como se fosse uma conversa de palavra única, por uns cinco minutos… ao fim dos quais, já não sabíamos mais o que era balde. Virou um ruído. Tínhamos desconectado o automatismo da transferência! Claro, se alguém nos perguntasse o que era balde, iríamos responder. Mas sem o automático, íamos ter que pensar…

A transferência neurótica (reação exagerada frente a um estímulo banal) é mais complexa. Mas tem as mesmas bases. Meu melhor exemplo para ela é o “gato escaldado tem medo de água fria“. Um gato que sofreu queimaduras, porque um dia alguém jogou água fervendo nele, vai pular alto se sentir água fria batendo-lhe no lombo. E isso vai durar anos: a transferência automática é “qualquer água no lombo vai me queimar”. Os arquivos de dor estão cruelmente gravados em sua memória.

Disclaimer: nenhum animal foi molestado ou ferido no fazimento desta postagem.

Disclaimer 2: Mesmo falando de psicanálise, nenhuma palavra desconectada de arquivos de sua memória foi usada neste texto. Não houve “parapraxia”, nem “busca do inefável”, nem “supereu” que te deixassem perplexos. Isto foi sim intencional.






ÉDIPO NO CONSULTÓRIO - O AMIGO PERGUNTA



“Meu nome é Édipo, sou rei de Tebas e quero me matar. Ou pelo menos furar meus olhos! Só vim aqui porque o Terésias insistiu muito…”

“Bem, já que o Sr. veio até aqui, poderia me dar três meses antes de fazer essas coisas, para ver se eu posso ajudá-lo? Por que o Sr. quer se matar, ou furar os olhos?”

“Tá bom, doutor, mas só três meses. Eu sou culpado pela praga que assola Tebas, pois descobri que matei meu pai e me casei com minha mãe. Sou um monstro!”

“Olha, monstros não costumam aparecer no consultório, pois eles não sofrem com seus malfeitos. O Sr. tinha plena consciência de que eles eram seus pais, por ocasião da morte e do casamento?”

“Não, não! Só descobri depois, quando me disseram que eu era filho adotado pelos reis de Corinto, e sobre quem eram meus verdadeiros pais. Mas aí já era tarde… e olha que eu fugi de Corinto justamente para escapar da sina que a pitonisa de Delfos me lançou: matar meu pai e casar com minha mãe…”

“Majestade, o psicanalista é um advogado de defesa. O Sr. já chega aqui com uma sentença feita, e isso é injusto, só a acusação teve voz. Está errado! Antes de mais nada eu quero ver os autos do processo.

E começamos bem: se o Sr. não sabia quem eram eles, temos um excelente começo: não houve intenção, nem parricida, nem incestuosa. Sem intenção, sem conhecimento, sua culpa diminui enormemente. Vamos ver agora em que circunstâncias esses fatos se deram”.

(Segue em “Édipo no consultório 2”)





 

ORGASMO SÁDICO - O AMIGO PERGUNTA

 



“O que pode haver de erótico na boca de uma mulher anestesiada?”

Francisco Daudt: Nada. Afora o estímulo sensorial, o orgasmo desse caso não vem do erotismo, e sim do extremo da transgressão. Há a adrenalina do risco pelo desafio ao Superego, não só o interno, mas à sua representação externa: a sociedade, a equipe médica e enfermagem, a violação do juramento de Hipócrates, o sagrado da maternidade etc.

O Marquês de Sade costumava se masturbar diante de um crucifixo, desafiando a imagem com blasfêmias (“Se você existe, me mate agora, seu porco!”) e finalmente chegando ao orgasmo com uma gargalhada: “Está vendo? Eu venci! Você não existe!” Não há melhor exemplo de que o prazer, ali, vinha do desafio e da vingança, não do erotismo.

Como nada do que é humano nos é estranho, Nelson Rodrigues uma vez reclamou: “Quem são esses loucos que querem abolir o pecado, na prática sexual? Eles vão matar grande parte de sua graça!” De fato, quanto mais proibido e transgressor é o sexo, mais ele se afasta do sexo pessoal, mais ele se aproxima do fetiche e da masturbação. E a masturbação é a principal vida sexual dos homens.

“Peccato che non sia peccato” (“é uma pena que não seja pecado”), diz-se em italiano, lamentando que uma comida deliciosa não tenha esse “tempero extra” da transgressão, esse bônus de prazer…






PSICANÁLISE: COMO SE TRATA A DOENÇA? - O AMIGO PERGUNTA



De Claudio Kuyven: “Você disse que o diagnóstico é a base do tratamento psicanalítico. Como assim? Se o ortopedista faz um diagnóstico, ele indica um procedimento. O procedimento é o que trata. Mas e em psicanálise?”

Francisco Daudt: Sim, em psicanálise, o diagnóstico é o tratamento. O que acontece é que a psicanálise faz diagnóstico o tempo todo. Ela é, na verdade, uma constante investigação em busca de conhecimento que atravesse a complexidade da mente. Diagnóstico vem do grego: dia = através + gnosis = conhecimento.

E é conhecimento, é diagnóstico, da doença e da saúde. Saber-se da saude do cliente é crucial; quando a doença é vício, p.ex: um casal tem uma ligação sadomasoquista, mas… também tem um vínculo amoroso.

Quando você faz o diagnóstico de que o vício rouba o potencial amoroso deles, e que o vício é resultado de algo não escolhido, mas absorvido do ambiente familiar de origem, neste momento você aciona a mais poderosa arma de cura da psicanálise: nosso senso inato de JUSTIÇA.

Ao se perceber joguete de sua história (o complexo de Édipo é isso), o cliente se mobiliza para ser dono de sua vida, para trilhar o caminho que mais lhe convém, para se libertar de um passado que lhe atrapalha os desejos mais autênticos. A psicanálise serve a isso: busca de justiça.

O diagnóstico da doença aciona a vontade de se livrar de uma prisão injusta; o diagnóstico da saúde é, essencialmente, o conhecimento de seu desejo mais autêntico, que ele buscará realizar. Ou você acha que se matar cheirando cocaína é expressão do desejo autêntico de alguém?

É por isso que a cura, em psicanálise, vem do constante diagnóstico. Cabe ao psicanalista transferir tecnologia para o cliente, de modo a que ele continue a se conhecer (a se diagnosticar) pela vida afora.

É a isso que Freud chamou de “análise interminável”.






 

“O REPRIMIDO RETORNA?” - O AMIGO PERGUNTA

 



“O que é esse tal de retorno do reprimido?”

Francisco Daudt: O retorno do reprimido é menos complicado do que parece. Suponha um pensamento incômodo sobre alguém. Você varre da consciência, “não quero pensar nisso”, mas ele não desaparece da sua cabeça. Volta e meia ele dá notícias. E você varre de novo.

Isso, numa coisa boba. Vamos aumentar a gravidade um pouquinho: você tem aquele encontro agendado, mas há uma ambivalência em relação à pessoa em questão. Você quer, e também não quer. Mas já agendou, já está comprometido. Aí a ambivalência retorna de uma forma mais esquisita: você perde o compromisso, pois se esqueceu totalmente dele. O retorno se deu de forma disfarçada, substituída: é o ato falho.

Vamos aumentar a gravidade mais ainda: você depende do seu pai, ele é a fonte de amparo na sua vida, mas… ele é injusto e cruel com você, muitas vezes, e isso desperta em você uma raiva (que você não chama de raiva, chama de mágoa, desconforto, ressentimento; chamar de raiva seria muito forte). A ameaça de desamparo é tão grande, que esses desconfortos somem de sua mente: aí sim, se deu uma repressão. O retorno desse reprimido vai se dar de forma ainda mais esquisita: o sintoma neurótico. Você tem pensamentos invasivos de outra natureza, tem sonhos estranhos e repetitivos, você desenvolve uma fobia a baratas ou aranhas, você tem crises de pânico, você tem ritos obsessivos aprisionantes.

A cara do sintoma não se parece nem um pouco com a raiva reprimida, mas ele retorna e retorna, podendo tomar outras formas mais complexas: a paixão neurótica por alguém com características do seu pai, como se você quisesse corrigir a história, só que a pessoa se parece tanto (naquele aspecto injusto) com ele que em vez de haver correção, o que existirá é repetição.

Você acaba encontrando sucessores do seu pai pela vida afora: é o retorno do reprimido…






FALANDO DE SEXO: ZONAS ERÓGENAS - O AMIGO PERGUNTA

 



“Me pegaram, me mandaram ficar imóvel, e me mapearam o corpo para descobrir minhas zonas erógenas. Fiquei fora de mim! Nem sabia que determinadas áreas do meu corpo eram capazes de me dar tanto prazer. Isso é normal?”

Francisco Daudt: Não. Isso é totalmente anormal, no sentido estatístico. Não só você é uma raridade afortunada, mas quem te mapeou também. O normal é que a pessoa passe a vida só percebendo prazer na boca e nos genitais, e que jamais, sim, jamais se disponha a pesquisar com tanta meticulosidade, quer em si, quer em outros, as áreas do corpo capazes de gerar prazer intenso, de arrepiar, de dar tesão.

Zonas erógenas são isso. Desde que nascemos, elas concentram nossas atenções, já que somos máquinas programadas para buscar prazer - é assim que o gene egoista nos manipula para se duplicar. A primeira é a boca: sugar alimenta e dá prazer. A segunda é o esfíncter anal: o jogo de retenção/liberação das fezes dá prazer, e foi tomado por Freud como ícone de negociação com a cultura (você precisa saber onde defeca). A terceira é a genital: do prazer que ela produz virão nossos genes duplicados.

Mas quando o indivíduo sai da fisiologia para o esporte, ele pode explorar cada centímetro quadrado de seu corpo como zona erógena em potencial. Com a exceção da ponta dos cotovelos, já ouvi de tudo.

Os exemplos mais corriqueiros são os mamilos “felizes” (é triste, mas mamilos cegos não são raros), o períneo e a parte externa do ânus. Essa perianal é um problema, quase um tabu para os homens, que dirá o canal retal… Eles têm um potencial de prazer enorme, frequentemente inexplorado, pelos medos de viadagem.

Menos comuns são: axilas, nuca, pescoço, orelhas, canal auditivo, narinas, laterais do tronco, umbigo, virilhas, nádegas e seu rego, parte interna das coxas, parte de trás dos joelhos, pés e seus dedos. Basicamente, onde puder haver cócegas, poderá haver prazer, se o estímulo for o certo.

Outra questão é o tipo de estímulo. Os mais bem sucedidos são a lambida e a sugada. Mas as mordidas leves, a passagem das unhas em intensidade variável, a massagem, a pegada também têm seu lugar.

Ou seja, como disse o amigo politicamente incorreto, “esse negócio de foder é pra proletário (que vale pela prole que produz); tem tanta coisa boa pra se fazer na cama e o cara fica obcecado com os finalmente?”





SUICÍDIO

 



Pessoas que cometem suicídio não querem que a vida acabe; querem que a dor acabe.

Na clínica, nunca combato “aquela coisa”; busco combater a dor.







BOAS INTENÇÕES E TIRANIA - A POLÍTICA GERAL E A DOMÉSTICA



O problema dos tiranos não é falta de boa intenção, o problema é que eles conseguiram excesso de poder, sem ninguém para contrariá-los. Isso não se passa só com Hitler, Stálin, Mao, Fidel Castro, Mussolini, Franco, Costa e Silva e outros ditadores, ou aspirantes a ditadores.

Existe um tirano dormindo dentro de todos nós: a motivação à espera de meios e oportunidade.
O mesmo se passa dentro de famílias. Uma família com muitos membros, irmãos, tios, avós et al. tende a algo parecido com um parlamento: há vários pontos de vista, há alguma diluição de poder, há com quem trocar seu sofrimento, e há, em última instância, um menor tempo de atenção dedicada a cada um: há espaço para vida não vigiada.

O papel dos pais está longe desse negócio de “demonstrações de afeto”, “quality time”, “amor incondicional”. O excesso disso, cheio de boas intenções, tem gerado um bando de mimadinhos incapazes, passarinhos de gaiola que não sabem (nem querem) voar.

Se sua intenção é criar filhos autônomos, capazes e independentes, get a life e SAIA DE CIMA DELES!






 

EM DEFESA DO CONSUMIDOR: COMO ESCOLHER UM PSICANALISTA

 



Antes de mais nada, penso que há uma pergunta a ser respondida, porque eu a ouço muito:
psiquiatras, psicólogos, psicanalistas, terapeutas, qual a diferença entre eles?

Psiquiatras:
são médicos que estudam a melhor maneira de ajudar quem está mentalmente perturbado através de remédios. Isto é um espetáculo. A psicofarmacologia avançou muitíssimo nas últimas décadas, e os remédios que temos hoje são tão bons que eu diria: não há melhor momento na história da humanidade do que hoje para ser deprimido, neurótico, ansioso, maníaco, psicótico ou qualquer outro distúrbio que, antigamente, levaria você a um hospício.

Psicólogos:
são estudiosos da “alma”, ou, em termos atuais, do software que roda no cérebro e que aparece como comportamentos, pensamentos e outras perturbações (porque eles estudam como o nosso cérebro funciona e como ele nos perturba). Existem muitas maneiras de estudar isto, e muitos mestres olharam este funcionamento por muitos ângulos.

Psicanalistas:
estes psicólogos derivam da maneira de estudar o software cerebral que Freud inaugurou no século XIX. É claro que eu, como psicanalista que sou, vou me deter mais neste jeito de entender o funcionamento da nossa mente. Freud descobriu que nós éramos tão marcados pela nossa educação e pelas pessoas que nos criaram, que acabávamos por carregar este jeito de viver pelo resto de nossas vidas: se ele era favorável e lógico, ótimo, viveríamos bem; se ele era estranho e cruel, acreditaríamos nele e viveríamos mal (ele não falou quase nada da genética, que constitui 50% do que somos).

Terapeutas:
são pessoas que cuidam (terapia é cuidar, é tratamento) de outras. Por isto você tem fisioterapia, logoterapia, quimioterapia e assim por diante, até ter psicoterapias, feitas por psicoterapeutas, que são pessoas que cuidam de você e de sua maneira mental de funcionar. Os psicanalistas podem ser estudiosos apenas (teóricos), ou psicoterapeutas, aqueles que cuidam de pessoas usando a psicanálise como instrumento. É uma das inúmeras maneiras de psicoterapia.

Mas acho que basta. Meu assunto é como escolher um psicanalista terapeuta, alguém que vai cuidar de você com o instrumental que Freud inventou, alguém que vai te prestar um serviço de saúde. Você o contrata e consome o serviço dele.

“Ai, que barbaridade, pensar o cliente como consumidor!”

Sinto muito se feri suscetibilidades, mas imagino que, se você está lendo um caderno sobre psicanálise, está preparado para ler textos eruditos de que você não vai entender 10%. É uma das coisas que me horrorizam em psicanálise, e que sempre me pareceu uma contradição entre termos. Afinal, a psicanálise veio para explicar ou para confundir?

Clínica: do latim, quer dizer “inclinar-se”, para observar e entender.

Pratico a clínica psicanalítica há 45 anos, e fui consumidor desta prestação de serviço durante oito, com dois psicanalistas diferentes. É. Prestação de serviço mesmo, eu pagava (caro) e recebia 50 minutos de suposta atenção.

Assim como quando fui pai, tentei me lembrar de quando era criança e o que funcionava e o que me irritava no jeito de meus pais, quando fui ser psicanalista, prestei bem atenção no que me fez bem e no que me fez mal quando fui cliente. Para aprender com os erros (evitando-os) e com os acertos de meus psicanalistas (tomando-os como modelo).

Você já viu que vai entender tudo o que eu escrever aqui. Gosto de clareza, de transparência, do que é lógico e razoável. Se você gosta de obscuridades, perplexidades e esoterismos, pode pular este artigo. Não é tua praia.

A coisa é simples assim: quantos psicanalistas são necessários para trocar uma lâmpada? Um só, mas é preciso que a lâmpada queira muito ser trocada. Procurei a psicanálise porque me sentia mal comigo mesmo e queria muito me sentir bem. A pergunta seguinte era: o profissional teria o mesmo objetivo? Ele quereria me fazer sentir melhor com o instrumento terapêutico que usava?

Parece uma pergunta besta, não? Mas não é! Há vários psicanalistas que não se sentem comprometidos com a melhora e o bem-estar de seus pacientes (que dirá com a cura de seus sintomas), eles têm como meta “a reflexão sobre os enigmas do seu funcionamento psíquico”, ou pior, “com a sua aceitação da castração” (calma, que eu explico, é algo assim: “o mundo é duro mesmo, e você deve se dobrar e aceitá-lo como é, sem esperar colinho de mãe, que é o mesmo que querer roubá-la de seu pai, representante do mundo cruel. Tenha horror do incesto, o complexo de Édipo”).

De tal maneira que, escolher um psicanalista não é tarefa fácil. Aqui vão algumas sugestões que podem te ajudar, se você ainda não largou a leitura deste blasfemo insolente, ou mesmo desta pessoa desprezível pela sua linguagem chã que qualquer um pode compreender.

A INDICAÇÃO: Ela pode vir de um amigo querido, que tem se sentido cada vez melhor com seu tratamento, e que te diz que nunca saiu de uma sessão pior do que entrou, e que não acredita que “hoje a sessão foi ótima, eu saí de rastos, aos prantos, me sentindo a última das criaturas, porque nós fomos fundo nos meus horrores”. Ela pode vir de artigos que você leu e te deram alívio e compreensão, assinados pelo cara. Ou o mesmo sentimento a partir de livros que ele escreveu, entrevistas que ele deu etc.

O PRIMEIRO CONTATO: Geralmente pelo WhatsApp mensagem ou ligação. É impressionante o que se pode aprender sobre o outro num telefonema: se ele é acolhedor; se é hostil; se é simpático ou não; se é pomposo ou simples; se você se sente confortável na conversa, ou constrangido; se vai te atender logo ou “talvez, se abrir uma vaga, nos próximos meses”. Enfim, minha sugestão é: só vá à entrevista se você se sentir bem com ele ao telefone. De desconforto, já basta a tua vida, você não precisa pagar (caro) por ele!

PERPLEXIDADE: Se o Dr. Fulano te disser alguma coisa que você não entenda, se falar de tal maneira complicada que você chegue a achar que é burro, pode desistir: ele não serve para você.

MUDEZ: Se o Dr. Fulano ficar olhando mudo para você quando você quiser saber algo na entrevista, as chances são de que ele ficará mudo durante a terapia. Por que você há de pagar (caro) para alguém que não diz nada? É teu trabalho se entender? Pois então fale para o espelho. É muito mais barato.

CONTRATO: Sinta-se confortável com um contrato claro de tempos de sessão e de custos. Pergunte sobre férias suas e do terapeuta, quem paga o quê. Pergunte sobre pontualidades (há poucas coisas mais constrangedoras do que encarar colegas numa sala de espera), porque você tem mais o que fazer na vida, e continua sendo uma falta de respeito – em qualquer especialidade médica – te fazer esperar tendo hora marcada. Woody Allen diz em um filme que não podia se suicidar porque seu analista cobraria as sessões que ele faltasse. Contratos precisam ser claros!

COMO EU SAIO DA SESSÃO?: Não deixe ninguém te convencer que sair de rastos, aos prantos e arrasado de uma sessão significa que ela foi “funda e produtiva”. Só significa que o terapeuta pôs mais dor naquilo de que você já se acusava. Ele quer que você se arrependa. É mais barato procurar a igreja católica (nos confessionários).

SENSO DE HUMOR: Se você sentir falta dele no seu terapeuta, significa que ele gosta de drama, e o drama é parte integrante, agravante e fundamental dos seus sintomas. Vá embora! Parte da cura é não se levar tão a sério, não se achar (e a ninguém) tão importante.

Dentro de cem anos, lembre-se, estaremos todos mortos (provavelmente, esquecidos). E, faz parte do meu imaginário aparelho humildificador,

amanhã este artigo será papel de embrulhar peixe…





TRUQUE DE CONSULTÓRIO - O AMIGO PERGUNTA

 


“Quais dos habituais truques de psicanalista você usa em sua clínica? Silêncio prolongado? Interpretações prontas? ‘Neutralidade’? Mistério? Distância formal? Desmascaramento das intenções ocultas, daquelas que fazem o cliente chorar? Joguinhos de poder?”

Francisco Daudt: Meu único “truque” é não ter truques, muito menos joguinhos. Entendi, com o tempo (e revisitando a época em que estive do outro lado do balcão/divã), que esses truques mencionados só servem para afirmar o psicanalista como superior e idealizado, ou seja, eles põem o analista na posição do Superego do cliente. Eles repetem, na relação analista-cliente, o jogo fodão-merda que todos temos com nosso próprio Superego.

Disso resulta que o vício sadomasoquista do fodão-merda não é investigado no cliente, pois o próprio analista nem o vê, por estar incorporado nele a partir de suas instituições formadoras. A doença s&m fodão-merda é o principal ponto cego da enorme maioria dos psicanalistas.

Por ter ciência disso, e por saber bem meu lugar de prestador de serviços para o cliente, posso ter a postura humilde e transparente de recebê-lo com afabilidade e bom humor, sem dramas, ouvi-lo com compaixão, nunca interpretar nada, simplesmente investigar e apresentar minhas hipóteses para sua avaliação: sempre facilmente rejeitáveis, se ele as confirmar, haverá muita chance de estarem corretas.
Basicamente, o “truque” é o método científico. E a ciência contém ignorância humilde, com muita vontade de saber. Saber sobre a saúde do cliente, e entender bem o que a atrapalha.






CHORO: ORIGEM E DINÂMICA

 



Na base do choro - qualquer choro - mora a impotência diante de um incômodo. A primeira manifestação disso é o choro do bebê. Ele não fala e não faz, sua dependência é quase total, sua impotência frente aos incômodos é similar. Ele chora, portanto. Melhor dizendo, ele urra.

O choro é chato para os outros, foi moldado assim pela seleção natural, para os pais tomarem uma providência que faça parar o choro e mantenha o filho vivo. Não será muito diferente, pela vida afora. Mas o bebê ganha potência, ele já pode chamar, dizer “Qué pêta!”, e seu problema é resolvido rapidinho. Quanto mais cresce, mais potência, logo, menos choro.

E o nosso choro de adultos, às vezes silencioso e solitário? Sua base continua a mesma, agora reduzida a duas situações: raiva impotente e pena de si mesmo.

“Ah, raiva impotente eu até aceito, minha filha mimadinha chora à toa, a cada vez que as coisas não saem do jeito que ela quer; mas eu, ter pena de mim? Quando entreguei minha filha no altar e chorei, eu estava com pena de mim mesma?”

Bem, você não estava sentindo-se com a missão cumprida, de tantas noites insones, tanto altruísmo e devoção à maternidade, tantas vezes que você se deixou em segundo plano para cuidar dela, tanto sacrifício feito e represado que agora chega ao fim? Essa catadupa de sentimentos não estaria condensada ali, naquela hora? O que é o choro do herói, o choro do mártir, o choro do abnegado?
“Ah, eu sou homem, não choro à toa, mas quando ouço o ‘Adagio for strings’, do Samuel Barber, eu me acabo de chorar. Onde está a pena de mim mesmo? Eu choro sim, mas de emoção frente à beleza”.

É curioso, mas os adágios são, em geral, “tears jerckers” (“puxadores de choro”). Vá ver “Morte em Veneza”, enquanto ouve o adágio da 5ª de Mahler, e identifique-se com a inescapável solidão do personagem principal. O que acontece? Você vai chorar… de pena de si mesmo. 






FALANDO DE SEXO: MEDO DE PERFORMANCE - O AMIGO PERGUNTA

 



“Já estamos casados há anos, eu amo minha mulher, mas meu desejo por ela vem decaindo e agora eu tenho medo de chegar perto, provocar expectativas e não ser capaz de cumpri-las. Tem saída?”

Francisco Daudt: Claro que tem. Você me disse que, não só a ama, mas que gosta de massagem e de carinho (dar e receber). Você sofre de um medo que é o maior inibidor sexual dos homens - e atualmente, das mulheres também -, o de não ter um bom desempenho de penetração, por ereção insuficiente/ausente. A própria cobrança é o suficiente para fazer broxar. No caso delas, a inibição é de ter orgasmo, a praga de “ter que ser boa de cama” chegou a elas também.

Com essa ideia na cabeça, eles não chegam nem perto, um do outro…

Se vocês tiverem um acordo de carinho, de chamego, sem linha de montagem para o intercurso, aliás, com o trato de não penetração, vão poder dar expressão erótica do amor que têm um pelo outro. Você vai ver: se a partilha intelectual já é boa; quando se soma à partilha afetiva, fica melhor ainda; se a erótica (de novo, sem incluir penetração) for acrescentada, aí então é uma beleza!

Eu não quero criar expectativas, mas um cliente a quem sugeri isso, na sessão seguinte me disse, com um sorriso maroto (e feliz): “Ih, ontem nós quebramos o trato, hehehe…”






O voo e o ninho

 



O destino de um pássaro é voar, está em seus genes. Mas, para voar ele precisa do ninho. O ninho o protege, aquece e alimenta enquanto suas penas não crescem, suas habilidades de vôo não se desenvolvem. Se o ninho o expulsa precocemente, ele se estatela no chão e morre. Mas se o ninho o prende além da conta, ele não aprende a voar, ele fica restrito àquele casulo, ele não cumpre seu destino.

O bom destino de um pássaro, portanto, depende de um delicado equilíbrio entre o voo e o ninho: excesso de ninho aleija o pássaro; falta de ninho o mata.

Conosco não é diferente: precisamos de colo, de amparo, de proteção para seguir nosso destino – se concordarmos que nosso bom destino é a independência e a autonomia do indivíduo que se formou.

Mas o equilíbrio necessário para essa formação, a conversa entre ninho e voo, entre colo e independência, é infinitamente mais complexa e delicada que a dos pássaros. Eles afinal estão programados pelo instinto, que a eles se impõe como força maior.

Nós, não. Nossa espécie tem um programa de aprendizado tão extraordinário, e um tempo de aprendizado tão enorme, que o instinto com que nascemos vai se colorindo de experiências e de memórias tão singulares que o produto resultante se distingue do instinto, e ganha assim um nome novo: desejo.

Desejo: esse programa oceânico e descomunal que nos rege mantém com o instinto relações de raiz. Sim, continuamos a querer reprodução como os pássaros querem, mas de forma bem mais complicada, para dizer o mínimo.

De tal forma que, sim, nós botaremos filhos no mundo. Agora, daí a ter habilidade e competência para levar bem o equilíbrio entre ninho e voo, ah, isso é outra conversa.

A menina de oito anos levou um bilhete escrito por ela para sua mãe: “Não suporto mais esse cárcere maldito! Libertem-me dos grilhões que me aprisionam”. A mãe leu o bilhete e disse: “Ai, que lindo! Vou grudar na geladeira”.

Para quem acha que a psicanálise tem mania de culpar os pais, devo dizer que não é bem isso. O que ela faz é rastrear a história das incompetências da criação de cada um. Você acha que a mãe daquela menina é culpada de algo? Não, ela foi apenas incompetente, incapaz de perceber que a filha se expressava assustadoramente bem, com um diagnóstico preciso do que se passava. Incapaz de corrigir-se e de corrigi-lo. Culpa implica má intenção, e é muito raro ver pais mal-intencionados em relação aos filhos.

Criar filhos é a profissão mais difícil que existe. Como ela é universalmente adotada, seja com talento e vocação, seja sem – o que é mais freqüente –, o que acontece é que somos resultado de um show de incompetências. Uns pássaros, ora aleijados, ora estropiados, de voo capenga, passando as incompetências de geração em geração.

A essas incompetências de criação que carregamos como um fardo pela vida afora, Freud deu o nome de Complexo de Édipo. Édipo, o pobre grego quase assassinado pelos pais biológicos, que teve sua origem escondida pelos pais adotivos, e como fruto dessa trapalhada acabou se casando com a própria mãe. E se culpou por isso!

Pobre diabo foi ele. Pobres diabos somos nós.






UM IDEAL ILUMINISTA - juntar exatas com humanas

 



Quando entendi o que foi/é o Iluminismo, descobri um rótulo bom para mim. Agora, além de ser um fervoroso democrata, um liberal nos costumes e na economia (capitalista civilizado, ciente de que os investimentos no social e na ecologia trazem grande retorno), eu também era um iluminista.

Ser um iluminista é ter como valores prezados, como bússola de navegação da própria vida, a razão, a ciência, a lógica, e a vontade de saber mais, com a humildade da ignorância e a desconfiança de certezas.

Um dos meus heróis do Iluminismo - ao lado de Darwin, Freud et al. - é Edward O. Wilson (1929-2021). Acabei de ler seu livro, “O Sentido da Existência Humana” (2014), e uma das coisas que me encantaram nele foi seu ideal iluminista de unir ciências humanas com as exatas, pois elas se realimentam e se complementam para… entender mais sobre o sentido da existência humana.

Meu exemplo maior é o desmonte da crença na tábula rasa, na ideia de que nascemos como um papel em branco onde a cultura escreverá nosso destino, nosso desejo, nossas ambições… e nossos defeitos.

A crença é um subproduto do marxismo - e sua tradução política (socialismo, comunismo) - que ambicionava construir o “novo homem”: despojado de ganância, completamente cooperativo, sem individualidades, como uma colônia de térmites, ou de formigas, onde todos trabalham em favor do coletivo. Para isso, bastava dar ao Estado Socialista o controle total da educação dos filhos.

Bem, sabemos os resultados disso. “Ah, mas a União Soviética usou mal o princípio, o que não significa que ele esteja errado”. É, o apego à crença da tábula rasa continua firme e forte nas humanas: são todos culturalistas, acham que não existe essa coisa de “natureza humana”.

Mas o psicanalista aqui, encantado com a psicologia evolucionista, está convencido que fatos biológicos simples como “mulheres engravidam; homens podem dar no pé” influenciam muito no comportamento.

Por isso, vejo com enorme prazer a possibilidade de as exatas conversarem cada vez mais com as humanas. Ou, como dizem os alemães, as “geisteswissenschaften” (as ciências da alma) possam ser parceiras do saber das “naturwissenschaften” (as ciências da natureza).

Porque nossa alma é um produto da natureza.






DR. PENNA

 



Talvez por não ter conhecido meus avôs, “adotei” alguns ao longo da vida. Suas histórias me faziam viajar no tempo, para épocas mais gentis e memórias saborosas. Dr. Penna foi um “avô” muito querido.

Em 1975, quando me mudei para a vila onde moro até hoje, ele era meu vizinho de porta. Um dentista nascido em Petrópolis na virada do século (1900), educado na Inglaterra (Eton College), formado aqui pelo Dr. Fordham, o dentista americano da elite carioca dos anos 30/40.

Francisco José Penna herdara de seu mestre a clientela ilustre: num domingo, encontrei o embaixador Maurício Nabuco em frente à sua porta, para ser atendido numa emergência dentária. É, Dr. Penna tinha equipamento em casa, para essas situações. Herdou também a filha do Dr. Fordham, com quem se casou e de quem era viúvo havia muito tempo.

Dr. Penna era um gentleman. Ele me recebia à noite em seu robe de tweed, e lá ficava eu, ouvindo suas histórias, pedindo sempre mais: de como eles haviam voltado de Nova York de navio, em 1950, trazendo na bagagem todas as novidades da cozinha americana, compradas por sua mulher (geladeira e freezer também). Esses utensílios de época continuavam na casa, nostalgia pura. Inclusive seu carro, um reluzente Oldsmobile comprado zero em NY, que veio embarcado junto com eles.

De como ele pegava o trem das 6 da manhã na estação de Petrópolis, onde morava, descia na da Leopoldina, onde um táxi contratado o esperava para levá-lo ao consultório, na Av. Presidente Wilson. E de volta ao trem, no fim da tarde, chegando às 19h30 em Petrópolis, rotina que manteve por mais de trinta anos, até vir morar no Rio.

Nos anos em que estive separado, entre os dois casamentos, quando ia sair para a noite dava uma passadinha lá para me despedir. Ele sempre me fazia a mesma recomendação, em seu perfeito inglês de Eton: “Behave yourself, be good, and don’t do anything I wouldn’t do”.

Ter amigos velhinhos é um pouco parecido a ter cachorros: muito afeto e pouca duração. Dr. Penna morreu aos 90, depois de 15 anos de amizade…






SENTIMENTO DE CULPA: UM TIRO NO PÉ

 


Quer de fato combater o machismo, o racismo, a homofobia, o fascismo etc.? Não enquadre ninguém como machista, racista, homofóbico, fascista.

Não faça ninguém se sentir culpado e menor; isso só serve para você se sentir superior, é má estratégia para os seus valorosos propósitos.

Arranje um jeito de convencer o outro das vantagens (e as há, muitas) da virtude: é o melhor jeito de combater o vício.






SEXO SADOMASOQUISTA - O AMIGO PERGUNTA

 



De Gustavo Wong: “Como funciona o sadomasoquismo no sexo?”

Francisco Daudt: O sadomasoquismo sexual visa passar por cima das barreiras da vergonha e da culpa, que impedem o prazer. Visa driblar os mandamentos morais do Superego. Para isso, ele se combina e se mistura com o domínio/submissão.

A coisa funciona assim: se, ao ter prazer no sexo, a mulher sente medo/vergonha/culpa de se ver como uma puta; se, ao ter prazer anal, o homem sente medo/vergonha/culpa de se ver como viado, essas barreiras impedirão o orgasmo.

O sadomasoquismo e o domínio/submissão funcionam como truque para ultrapassar/manter essas barreiras.

A parte do domínio/submissão: O macho forte domina a mulher, ou o outro homem que, diante daquela força poderosa, “não pode fazer mais nada, tem medo de apanhar e se submete, afinal, ele/ela foi currado/a, não teve saída senão a submissão. “Ah, não foi por vontade minha, eu fui forçado”. Os papéis não são fixos, a mulher pode assumir o papel de “dominatrix” e submeter o homem envergonhado.

Eu disse ultrapassar e manter, pois a vergonha e a culpa não foram questionadas nem resolvidas, elas foram ultrapassadas, dribladas, e se mantêm intactas, voltam com tudo, desafiando e pedindo nova ultrapassagem.

A parte do sadomasoquismo é mais voltada para ultrapassar a culpa. O macho sádico, causando dor no outro, produz uma espécie de “castigo adiantado”, que pune a culpa pelo prazer que ele pode sentir, ao se ver como antimodelo (puta/viado). Ao se sentir punido/a, a culpa estará expiada. Novamente, homem ou mulher podem assumir esse papel: a dominatrix combina domínio com sadismo.

Você vê como a combinação dele com o domínio/submissão funciona: “Faz isso! Ah, não vai fazer? Toma essa chicotada, então!”.

Domínio pela dor: “não posso resistir… tenho medo, e essa coisa dói!” Diante disso, há a entrega; e com a entrega, o orgasmo.

Esse é um enorme problema no caso dos estupros ou dos abusos, em ambos os sexos: eles podem produzir orgasmo… e uma tremenda ressaca moral por isso, o que frequentemente inibe a queixa criminal.

Mas… não há nada tão ruim que não possa piorar: o prazer sexual vem se somar aí ao prazer de enganar o Superego. Foi por isso que Nelson Rodrigues disse: “Essa gente está maluca? Querem tirar o pecado do sexo? Vão acabar com a metade do prazer…”






PREFÁCIO DO LIVRO NOVO (LANÇAMENTO EM BREVE)

 



Tenho horror de prefácio.

Ainda mais num livro que foi escrito para quem não lê, para quem lê só textos pequenos em mídias sociais, para viciados em telinha, para leigos interessados em psicanálise, mas que, com justa razão, largam a leitura ao primeiro termo complicado, para estudantes de psicanálise que querem entender o que leem.

Eu gosto de nheengatu. Os descobridores perguntaram como se chamava a língua daqueles índios que eles encontraram no litoral. “É nheengatu”, disseram os índios. “Mas o que isso quer dizer?” “É língua de gente”, responderam.

Pois então: meu livro fala de psicanálise em língua de gente.

E chega de prefácio.