domingo, 29 de novembro de 2020

O AMIGO PERGUNTA - “O que é consciência, em psicanálise?”

 


O AMIGO PERGUNTA 

“O que é consciência, em psicanálise?”

FD: É uma pequena janela por onde nossa atenção olha; aquilo que é visto fica consciente para nós.

Freud fez essa divisão, na primeira vez em que ele esquematizou nosso aparelho psíquico (ou “mente”): havia um enorme arquivo de memórias e impulsos (o jeito como ele chamou o equivalente aos instintos animais, em nós) no INCONSCIENTE. Inalcançável e inatingível pela nossa vontade, mas podíamos deduzir que ele estava lá pelos sinais de sua existência, como os sonhos, p.ex.

Em seguida, outro departamento cheio de memórias: o PRÉ-CONSCIENTE. Esse é relativamente fácil de acessar, basta que nossa atenção se volte para ele. Como exemplo, agora vou falar de algo que estava até então no seu pré-consciente, mas... no momento em que você vir a palavra, sua atenção se voltará para aquele arquivo e a memória se tornará consciente: seu pai.

É, eu sei, você não estava pensando nele, mas um monte de memórias apareceu com as simples letrinhas finais do parágrafo anterior.

Foi por isso que Freud nem deu espaço – no desenho que fez – para o CONSCIENTE: ele é muito pequeno e fugaz, completamente dependente da nossa atenção.

Enquanto você lê este texto, sua atenção pula para fora e para dentro, ligando as palavras lidas a seus sentidos, a suas memórias pré-conscientes (e elas se tornam conscientes nessa hora), a pensamentos e deduções provocados pelo texto etc.

É claro, sua atenção também pode pular para súbitas mensagens que apareceram na tela do celular, para aquela vontade de beliscar alguma coisa na cozinha...

E se ela pular muito, você pode até não ter chegado aqui no texto. Hoje em dia, chamam isso de DDAH (“distúrbio de déficit de atenção e hiperatividade”), mas para ser sincero, a principal razão pela qual nossa atenção é desviada está na chatura dos textos.

O AMIGO PERGUNTA - “O que você faz quando o problema não é do cliente, e sim de alguém próximo a ele?”

 


O AMIGO PERGUNTA 
“O que você faz quando o problema não é do cliente, e sim de alguém próximo a ele?”

Francisco Daudt: Nada... a menos que o problema do outro seja, afinal, um problema do cliente. Inúmeras vezes diagnostiquei e sugeri médico, advogado etc. para problemas que acabavam afetando meus pacientes.

Mas dois casos são cômicos e ilustrativos. A mãe idosa da paciente a estava levando à loucura. Era uma irritabilidade claramente depressiva, e a mãe, autoritária e teimosa, se recusava a ir a médico ou achar que havia algum problema com ela. 

Eu disse à paciente: “Você vai comprar esse antidepressivo”. “Mas eu não estou deprimida”, disse ela. “Não é para você, é para sua mãe. Eu sei que ela não aceita remédios, você diga que é um revitalizante supermoderno para idosos” (o que não é, afinal, uma mentira).

A mãe adorou, a vida da minha paciente mudou significativamente para melhor. Tempos depois, recebo um telefonema da mãe (os telefones funcionavam, na época): “Doutor, minha filha está viajando, o Sr. poderia me dar uma receita daquela vitamina maravilhosa que eu tomo?”

O segundo caso é do marido da cliente, supostamente sofrendo de impotência. Já havia tentado de tudo... e nada. Ele nem chegava perto dela; se se beijavam, logo ele arranjava uma desculpa para se afastar.

Só que aquilo não me parecia impotência, e sim inibição. O marido não era chegado ao pensamento reflexivo, não adiantava “conversar” com ele. A meu ver, ele chegava na cama com uma tonelada de cobranças e culpas, com enormes expectativas de desempenho. Convenhamos, é um conjunto de pensamentos nada inspirador.

Como a coisa se arrastava por meses (em todos os sentidos), expliquei minha impressão à paciente e a instruí. É isso mesmo, fiz um côutchingue sexual para ela.

Na noite seguinte, os dois na cama, ela disse ao marido: “Não quero sexo, quero chamego e beijinho; mesmo se você se animar, eu vou dizer não. Só quero poder usar o vibrador e ter um orgasmo, enquanto a gente se faz carinho”. 

Docemente constrangido, ele concordou... e foi um sucesso. Terminada a função, ele comentou: “Mas é tão simples assim? Que beleza!”

Quando amanheceu, ele lhe disse: “Sonhei que te comia... e foi ótimo; na verdade, eu estou com vontade de te comer agora!”

E comeu.










sexta-feira, 27 de novembro de 2020

O AMIGO PERGUNTA - Clô Franklin: “Qual é a relação entre autoestima e o Superego? É possível ter autoestima quando se tem um Superego cruel?

 




Clô Franklin: “Qual é a relação entre autoestima e o Superego? É possível ter autoestima quando se tem um Superego cruel?

Francisco Daudt: É uma relação fortemente... negativa. Quanto mais cruel o Superego, mais a gente briga com ele, e isso quer dizer ora se submeter às suas críticas (e se achar um merda), ora se identificar com ele e criticar os outros (e posar de fodão, dizendo que merda são os outros).

Só que a doença, o vício fodão-merda passa ao largo, passa longe da autoestima. Quando a pessoa se sente um merda, claro que a autoestima está arruinada. Mas quando ela posa de fodona, também!
Um fodão é um inseguro; ele precisa de afirmação constante para não se sentir um merda. Isso não é autoestima elevada.

O que nos leva a perguntar: afinal, o que é autoestima?

Estimar-se é estar em paz consigo mesmo; é estar “na sua”. Tem a ver com serenidade, não com briga. Não é vaidade nem orgulho, é sim um estado de desimportância que se importa, consigo e com os outros. Uma autoavaliação de que você “é bom o bastante”, um sentimento que não ocupa a sua mente, muito menos a aluga; ao contrário, deixa-a livre para outros assuntos que te interessem. 

A autoestima é como a saúde do seu pé: você confia nele, e ele nem está te chamando a atenção, só pensou nele agora porque eu falei.

É claro que isso não funciona assim o tempo todo, isso é um retrato do ótimo; na verdade, é mais uma meta a se ambicionar que uma situação a que se chegue.

E para se chegar nela, é preciso sim questionar o poder do Superego; entender que ele é um juiz tirano, um caga-regras que tem você como primeira vítima, mas não a única, pois você pode se defender dele criticando os outros. 

Infelizmente, isso só faz fortalecê-lo.

terça-feira, 24 de novembro de 2020

Artigos: Zonas Erógenas

 O Manuel perguntou ao amigo Joaquim:

— Ó Joaquim, tua mulher transa contigo, é pur amore, ou é pur interesse?

Depois de uma pausa pensativa, Joaquim respondeu:

— Ó Manél, deve ser pur amore, pois que ela não mostra o menor interesse…

Quando alguns amigos souberam que eu ia escrever sobre o título, me disseram que ele era batido. Eles têm razão. “Só não contavam com a minha astúcia” para citar o Chavez da TV, por quem tenho admiração. Do outro tenho asco.

Pois minha intenção é pegar o mote para falar sobre o que vai acontecendo na vida dos casais, principalmente depois que vêm os filhos. Sobretudo numa transformação que se passa na mulher, que é origem freqüente das depressões pósparto.

Vamos começar com as mulheres. É freqüente que, ao lhes nascer o primeiro neném, caia-lhes na cabeça uma supraidentidade que as deixa tontas: “Agora eu não sou mais a Mônica, eu sou uma Mãe”. A Mônica era uma garota alegre, sapeca, gostava do esporte, tanto que ela e o Eduardo viveram uma paixão tórrida, do tipo “bicho pega”, até que se casaram e logo engravidaram.

Três meses de enjôo. Ela não queria nem olhar para o Eduardo, quanto mais para o tal do “bicho”. Ainda mais que o obstetra havia dito para eles maneirarem, pois era um tempo delicado, dando assim uma monumentalidade à gravidez e jogando o casal de marido e mulher ainda mais para o segundo plano.

Pois é aí que entram as tais zonas erógenas de que eu queria falar. Quem esperou as tais áreas anatômicas tão batidas vai ficar aliviado. Leia a historinha a seguir:

Há um filme (Sex education) em que os filhos de Ed Harris, preadolescentes, resolvem contratar uma prostituta para que ela lhes ensine os truques eróticos de enlouquecer uma mulher. O filme tem um final feliz, com o pai se encantando pela moça, e os filhos fazendo uma pergunta definitiva: “Existe um ponto na mulher que, se tocado, ela é levada à loucura?”. E Melanie Griffith responde: “Sim, existe”. E aponta o coração.

Eros, assim como a Philia e o Ágape, é uma das formas de amor que os gregos descreveram, tomando o nome de um deus (“graças a ele, os homens conheciam as alegrias da amizade, as doçuras da ternura, os prazeres e as dores que acompanham o amor verdadeiro”- Nova mitologia clássica; Mario Meunier, 1976), portanto as zonas erógenas – geradoras de Eros – de que estarei tratando aqui, são áreas mentais de produção de amor.

Quem salvará Mônica do peso da maternidade? Quem lhe ensinará que a moleca não morreu? Quem dirá ao Eduardo que o casal só precisa de ajuda para continuar um casal?  Que existe transa mais calma que o “bicho pega”, com notas mais ternas, mais carinhosas, talvez mais acolhedoras para o momento de fragilidade. Que a Mônica não virou santa intocável porque está se adquirindo uma nova condição (que não anula as anteriores). Que escola de medicina ensinará o obstetra que ele não é o proprietário da “gestante”, que não deve olhar para o marido como um intruso, mesmo se ele conhece Mônica desde que ela era uma garotinha, e que Eduardo é, sim, mais importante do que ele, e que se houver realmente alguma razão médica que impeça a transa, existe sempre o chamego, e o chamego dá prazer ao coração.

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Material publicado na Folha de São Paulo.

(Publicado em 11 de junho de 2012)


Artigos: Eduardo e Mônica II

 



(Publicado em 11 de junho de 2012)

 

Eduardo e Mônica tiveram um bom aconselhamento de como criar os filhos, fizeram um bom casal e geraram dois filhinhos, Cristina e Rodrigo, com três anos de diferença.

Eduardo deslumbrou-se com a dádiva do feminismo: a paternidade participativa. Acordou de madrugada, trocou fraldas, deu mamadeira, pôs para arrotar, ninou na cadeira de balanço, deixando Mônica dormir, um gesto de amor com filha e mãe.

Quando Cristina cresceu, Eduardo viu-a, aos cinco anos, na banheira, deixando a água da torneira correr sobre seus genitais.

— É uma delícia, não é, filha?

—Como você sabe, pai?

—Porque o pai já teve a tua idade, ora! Mas você já experimentou o chuveirinho do bidê?

—Já…

—E é bom também?

—É…

—Então eu vou te pedir que use o chuveirinho do bidê antes que a água de nossa caixa vá toda embora.

Adoro esta história de Eduardo com sua filha. A aceitação de sua sexualidade com um ensinamento de economia.

O fato é que quando Rodrigo tinha doze anos veio perguntar para o pai se masturbação doía.

— Bem, (disse Eduardo), depois da quinta vez em seguida, dói, sim!

— Ah, bom! disse Rodrigo.

Eduardo e Mônica passaram aos filhos o fato de que sexo era algo agradável da vida: nenhum drama; nenhum vexame; direito ao desejo; algo da natureza; se Deus nos deu, ele não gostaria que nos envergonhássemos dele.

Quando Cristina tinha uns quinze anos, Eduardo “flagrou” ela ficando com um amiguinho numa festa. Ela já tinha explicado para ele a diferença entre ficar, estar ficando, namorar e morar junto (esse negócio de noivar “é para gay, pai”, e casar, bom, pode ser). Eduardo ficou meio perplexo, mas entendeu. Cristina veio falar com o pai, depois.

— Pai, você ficou meio bolado de me ver ficando?

Eduardo foi brilhante:

— Não, minha filha. “Ficar” é como brincar de sexo. E, você sabe, sexo é como dirigir carro: delicioso, mas que envolve riscos graves. 

Você vê que eu tenho feito você aprender a andar de velocípede, de bicicleta, de patins, de cavalo, e tudo para quê? Para que você tenha noção de direção, distâncias, prudência, estabilidade, de responsabilidade, de respeito com o outro, de cuidados com você, e com o outro. Obediência a regras, de exigência que o outro obedeça a regras.

Era tudo uma brincadeira que envolvia um conceito: você está se preparando para uma prática que envolve algo muito mais sério: o risco de morrer, de matar e de ter sua reputação arruinada. Isto vale para a prática da direção de automóveis quanto para a prática do sexo. colocar cinto de segurança, por camisinha, não beber antes de dirigir, não ficar bêbada com alguém que você não confia, e assim por diante.

Cristina abraçou seu pai, grata e com orgulho.

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Material publicado na Folha de São Paulo.


Artigos: Falar sobre sexo

 (Publicado em 11 de junho de 2012)

It’s a puzzlement!”, como diria o Yul Brynner, como rei do Sião (“é uma complicação, uma encrenca”).

Você pode tentar a linguagem de um médico, e ela será engravatada ou/e incompreensível, mas ninguém vai ficar embaraçado.

Você pode tentar ser mais… digamos, pedestre. Todos vão te compreender, mas com rubor nas faces.

Você pode ser infantil, e chamar a genitália feminina de “pipita” e a masculina de “piupiu”, “bilau” e quejandos (se você for ao dicionário, vai encontrar uma extensa sinonímia para ambos – experimente, que é de rolar de rir), todos vão te entender, mas você soará ridículo.

Aliás, tenho uma sobrinha que é bióloga de renome mundial, e me explicou que quando queria se referir a seus próprios genitais, dizia “lá”, acompanhado de um gesto das mãos.

Quando eu dei curso de teoria freudiana (por dez anos, que deus me perdoe), fiz várias vezes um teste com as turmas: “coloquem em ordem anatômica os seguintes itens do períneo feminino, vindo da barriga para as costas:”

  1. ânus

  2. meato urinário (o lugar por onde sai o xixi)

  3. clitóris

  4. canal vaginal

O índice de erro era alto, tanto entre os homens quanto entre as mulheres. Piorava quando a questão era “qual a diferença entre a vulva e a vagina?” ou “o que são os grandes e pequenos lábios”?

Você está entendendo a encrenca em que me meti quando me pediram para escrever um artigo mensal sobre sexo? (a propósito, se você tentou responder à pergunta acima, o correto é 3-2-4-1). Acertou? Duvido.

Quantos homens sabem que seu pênis é um clitóris crescido? Que seu escroto (que me desculpem por usar a palavra mais feia da língua portuguesa, mas ela é precisa, não é um palavrão) são grandes lábios femininos costurados para conter ovários que desceram e se transformaram em testículos? Que nós todos começamos mulheres, e, em 49% dos casos os hormônios nos transformaram em homens, ou, em 51%, nos mantiveram mulheres. É. Vai engolindo esta!

Pega um espelho para ver as costuras, parecidas com uma cicatriz, para descobrir que elas vão do ventre do pênis (é, a parte de baixo é a barriga e a de cima são as costas) e continuam até o ânus, e que tudo isso se chama períneo, como nas mulheres, e sim, que é gostoso como o demo de se acariciar. Morra de vergonha.

Ou você pensava que as mulheres fazem perineoplastia porque só elas tem esse treco? Você também tem.

E o ânus? Ai, ai, ai… ele tem uma mucosa sensível em torno que costuma ser, para ambos os gêneros, uma zona erógena, quer dizer, gostosa de se estimular. Se for com outra mucosa então, como a língua, nem se fala. Aliás, perde-se a fala.

Ele tem dois pequenos esfíncteres, – são músculos de abrir e fechar, como os das íris dos olhos (mais luz, mais eles fecham; menos luz, mais eles abrem), que, além de serem funcionais – por isso é que a gente pode conter as emissões de gases- são também potenciais zonas de prazer.

Como falar dessas coisas? Vou ter que arranjar um palavreado nem tão lá nem tão cá.

Você percebe em que encrenca eu me meti?

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Material publicado na Folha de São Paulo.


Artigos: A Complexidade do Desejo

 



(Publicado em 11 de junho de 2012)

Um cliente me pergunta: “eu sou um pedófilo?” Ou melhor, se seu desejo por púberes femininas (é quando começam a surgir mamas e ancas) seria um desvio patológico, ou uma dessas coisas da natureza, como o desejo homossexual. “Não sei dizer, mas minorias de minorias costumam ser patologias. Precisamos investigar. Vamos fazer o retrato falado de seu desejo”. 

  1. A menina faz contato visual com ele na piscina e se mostra interessada, pois ele retribui, apenas com os olhos. “Ele não fez nada”.

  2. A menina se aproxima e monta em sua coxa, que ele coloca em boa posição. Ela começa a se masturbar, esfregando-se.

  3. Ele tem uma ereção imediata e um orgasmo.

  4. Ambos se afastam sem trocar palavra.

Algumas ocorrências foram assim. Hoje há outras, pela internet.

  1. Não me interesso por imagens pagas, pois seria uma coisa muito feia (diferente do “ele não fez nada”).

  2. Tenho repugnância pelas imagens em que as crianças parecem incomodadas com a abordagem erótica.

  3. Imagens em que a púbere parece interessada, gostando do que está acontecendo, ou melhor, ativa na coisa, são essas que me dão maior prazer.

O paciente é hétero (não olha para homens), mas hoje é impotente, (apesar de só ter 63 anos) incapaz de se masturbar. Sua excitação com as imagens é “difusa”, porém devaneia com o passado, em que meninas de carne e osso interagiam. Supõe que teria orgasmo mesmo sem ereção, mas se contém, “por que é errado”.

Vejo nele uma busca de compromisso entre transgressão e ética, o que não faz dele um psicopata. Primeiro, ao apreciar as púberes com desejo próprio, e não como vítimas de um bárbaro. Depois, que ele nunca as toma e as penetra, mas deixa-se servir como um objeto de desejo delas. Seu desejo é satisfeito porque atendeu ao desejo delas. É semelhante à fantasia que algumas mulheres usam ao se masturbar, de que estão sendo estupradas: elas não fizeram nada, e nada puderam fazer. A possibilidade de negar seus desejos retira suas culpas e libera seus orgasmos.

Depois de muito tempo de investigação, uma pista: aos sete anos, o paciente sofria de oxiuríase (pequenos vermes parecendo linhas se remexem na mucosa anal, provocando coceiras, com ou sem prazer). Sendo os remédios inócuos, seu pai fazia, no quarto, meticulosas operações manuais de retirada dos vermes.

O filho aprendeu. De quando em quando vinha ao pai, e, sem palavras, indicava o quarto com a cabeça. O pai se levantava, sem nada dizer, e, na cadeira do quarto, com o filho desnudo dobrado sobre seu colo, separava-lhe as nádegas com cuidado para retirar com os dedos os oxiúros. Era uma demorada carícia naquela mucosa sensível. Um processo que durou meses.

Chegamos a uma hipótese com que ele concordou. Seu desejo homossexual passivo pelo pai havia encontrado uma saída não neurótica, mas perversa (quando o erotismo se mantém): Hoje ele é o pai. A púbere interessada é ele (já se livrava da homossexualidade e projetava seu desejo na outra). O desejo de entrega ao homem mais forte ficava conservado. A internet, a impotência, a ausência de comércio tornava tudo mais tolerável.

A partir daqui já estoura o tamanho do artigo da Folha, e os comentários estarão no tamanho do meu desejo.

1. O paciente é então, na verdade, homossexual?

Não! Segundo a escala Kinsey*, o paciente teria nascido com um percentual de desejo homo que foi estimulado em sua infância por seu pai. É um percentual baixo, coisa de 20%. Ele é principalmente hétero. Sempre olhou e desejou mulheres, mas sempre teve vergonha de seu desejo, preferindo que elas viessem a ele, que a ele demonstrassem o desejo delas. O seu desejo por meninas púberes mistura a história com seu pai com a vergonha de seu desejo hétero, na verdade, de qualquer desejo seu.

2. O analista fez esta conexão de maneira rápida?

De jeito nenhum. Há um espaço de dez anos entre o relato do “tratamento” da oxiuríase e a ligação com a pedofilia. Simplesmente porque o cliente não queria pôr a pedofilia como assunto de investigação. O problema é que o analista tem uma memória de elefante, e viu semelhanças entre os dois assuntos. A ligação só se deu quando o paciente resolveu investigar seu desejo pedófilo, quando ele se tornou predominante.

3. Podemos suspeitar que toda pedofilia tem sua origem no desejo homossexual?

 Este é um erro comum a partir de um conceito freudiano, o conceito de fetichismo. Fetichismo vem do francês fetiche, que vem do português feitiço, artifício que transforma uma pessoa em uma coisa. O pedófilo seria um fetichista. Seu objeto sexual não é uma pessoa, com todas as suas complexidades e interações, com todas suas necessidades de negociações. É uma coisa. É como disse o Stanislaw Ponte Preta: “a vantagem da punheta é não ter que levá-la em casa depois”. Freud de fato pensou que a homossexualidade fosse um derivado do fetichismo, pois entre iguais não há diferenças, não há trabalho para que o desejo se realize, é como a masturbação.

Realmente, há uma concretização da homossexualidade masculina que é fetichista, que é masturbatória. É só pensar nos quartos escuros das boates gays, nas rapidinhas dos mictórios públicos, onde se vê que o menos importante é o interlocutor. Ele seria um pouco mais do que um retrato numa revista pornô.

Mas o mesmo se poderia dizer da heterossexualidade. O que quer dizer o “ficar”? O quer dizer o “one night stand”? O que quer dizer “a fila tem que andar”? Dos casamentos de dois meses à luz dos holofotes? Por acaso é um trabalho de sintonizar as diferenças? Por acaso é uma vontade de mergulhar com gosto no universo do que é o outro, no interesse pelas diferenças?

O mesmo mecanismo do fetichismo, a defesa medrosa contra o mundo, pode operar na heterossexualidade.

Freud queria dizer que o ser humano tem medo do mundo. Da ameaça de sobrevivência, da perda de proteção.

A criança tem a natureza humana empurrando seu desejo em direção àquela coisa (o mundo), em direção a sair de casa, a entrar em contato com o outro, mas tem o terror de ter que lidar com ele, como ele possa reagir, rejeitar, xingar, desprestigiar, ridicularizar, humilhar, expor…

Angst”. Parece angústia, não é? Pois é a palavra alemã para “medo”. É, para mim, dos melhores descobrimentos de Freud. Porque ele se autocriticou. Começou pensando que era a neurose que causava a angústia. Terminou deduzindo que era a angústia que causava a neurose. Deduzindo que a neurose, assim como a perversão, eram mecanismos de defesa contra o MEDO!

Ter desejo é ter medo. “Eu quero comprar aquele casaco, mas… (quanto ele vai custar?; o que vão pensar de mim?; não será meio jovem para a minha idade?)”.

Ciúme. Ter ciúme é ter medo, por ter desejo. A falta de ciúme só se dá na falta de desejo. Na indiferença. Não importa que tipo de ciúme, se sexual, se de prestígio.

Os homens tendem a ter mais ciúmes sexuais. Também, coitados, correm o risco de criar um filho que não é deles…

As mulheres tendem a ter mais ciúmes de prestígio. Elas têm certeza absoluta de que o filho é delas.

Freud disse que não sabia o que as mulheres desejavam. A psicologia evolucionista descobriu: as mulheres desejam casamento, garantias e prestígio, coisas que as ajudem a criar, enriqueçam e melhorem suas crias, porque temem o horror do abandono (é um desejo genético que elas nem percebem).

Mas eu estou falando de quê? Do “angst”, do medo do mundo que produz os mecanismos de defesa, em mim e em vocês. Quanto maior o desejo, maior o medo. Você não teria um medo da prostituta, nada que se comparasse com o medo da sua deusa da sala de aula. Ela estava em um pedestal muito acima de você. A outra estava numa posição em que o pedestal era você.

Seremos nós muito diferentes do pedófilo? Não estaremos buscando objetos deslocados de nossos desejos que afastem nossos medos? O consumismo que dá um alívio instantâneo e fugaz. O alcoolismo, que faz o mesmo. “Workaholism” e outros vícios, sem número, prometem a mesma coisa.

Quando concebemos o mundo como algo hostil, ameaçador, quando fomos ensinados que assim era, que precisaríamos de munição, armadura e fardão, para que nos respeitassem, para que escapássemos do mundo-dragão ao ponto de que um motorista de taxi nos dissesse “Sois rei?”, deixamos de lado nossa simplicidade, nossa vontade de brincar, nossa desimportância, nossa efemeridade, porque acreditávamos no que nos disseram. “É preciso ser sério, grande e imortal”, e isto foi pesado em nossas vidas.

Pois foi assim que nos apresentaram o mundo: como algo avesso a nossas pessoas e nossas vontades. Como algo que poderia atendê-las por vias transversas e invisíveis. Como no caso do pedófilo, algo a que teríamos sempre nos sentir devedores, transgressores, prestes a ser desmascarados e condenados.

É este o peso que carregamos. É este o peso que não queremos passar adiante. Nós somos formadores de opinião, sabemos o que nos massacra. Vamos retirar este peso das gerações vindouras, em cada ponto em que pudermos atuar. Não agiremos como o idiota da sala de aula que nos deu um cascudo e disse: “Passa adiante, senão vira elefante”. Nós sabemos que não viraremos elefante. E não passaremos adiante.

Mas como fazer isto? A chave toda está na maneira como criamos nossos filhos. Precisamos saber que eles nascem, não como uma tábula rasa, mas com um cérebro cheio de programas operacionais constituídos por sua genética. Meu ídolo da psicologia evolucionista, Stephen Pinker, mapeou que seremos 50% frutos da genética e 50% frutos da criação única. Pois então vamos atender ao desejo secreto e politicamente incorreto da eugenia: procriar com quem não seja psicopata, que seja correto, ético, inteligente e desejoso de cuidar dos filhos. Vamos nos associar a esta pessoa para cuidar dos outros 50%: a criação única.

Se ele nasceu com um software chamado “das über ich”, conhecido como superego, mas em alemão fluente significa “o que está acima de mim”

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Materia publicado na Folha de São Paulo.


Artigos: O Medo Na Cama

 (Publicado em 11 de junho de 2012)

Claramente, este é um artigo dirigido para o leitor. Mas que a leitora poderá tirar grande proveito para seu entendimento. Vamos começar com um exemplo clássico. Uma mulher nunca poderá exigir que um homem a penetre sob a ameaça de uma arma, ao contrário do estupro tradicional. Se o homem pode subjugar a mulher, e fazê-la ceder sob ameaça de morte, o medo que faz uma mulher abrir as pernas jamais produzirá ereção em um homem, eis porque uma mulher não pode estuprar um homem.

Em termos breves: medo subjuga uma mulher; medo incapacita um homem.

Nosso assunto então é o medo. Medo na cama.

1º. Medo no homem

São vários. “Ela é muita areia pro meu caminhão”. Isso quer dizer que eu tenho que ter um desempenho espetacular, uma ereção incrível que produza múltiplos orgasmos, senão ela vai me achar o último dos homens. O resultado mais comum disso será: a) ejaculação precoce (que costuma acontecer em situações incômodas na cama, para que a coisa se resolva rápido); b) impotência (incapacidade ou insuficiência de ereção) independente de desejo, e este foi o sucesso do Viagra e similares, pois conseguiam ereção na presença do desejo. Os únicos artefatos que conseguem ereção na ausência do desejo são as injeções locais de prostaglandinas e as próteses penianas.

Vê-se aí que o homem não está ali para brincar, para se divertir, para partilhar um jogo amoroso com a mulher. Ele está diante de uma banca examinadora, uma prova de masculinidade. Ele está com a inimiga, tal como estávamos diante de nossos examinadores de prova oral.

2º. Medo na mulher

Os velhos tempos em que a mulher se reservava a um papel passivo já se foram. As feministas exigem que elas tenham, não só um desempenho formidável na cama, como também sejam capazes de múltiplos orgasmos, sob pena de fracasso. Elas passaram a ter medo do homem. “Como ele irá me julgar? Será que vai achar que eu sou boa de cama?” Em vez de parceiros, tornaram-se adversários desconfiados. Essa desconfiança se passa em silêncio, sem confidência de suas inseguranças, sem cumplicidades, sem solidariedades, sem simpatia, só aquela mistura de tesão atrapalhado pelo medo.

Por isso imaginei uma cena de um casal que combina, pelo telefone, de ir para a cama depois de ler um desses livros:

— Querida, você leu aquele livro?

— Li, que parte?

— Aquele capítulo… o da cama…

— Ah, eu adorei!

— Eu também! Você acha que tem a ver conosco?

— Tem tudo a ver, mas eu morria de vergonha de te falar… Você é um amor de me contar que achou que se parece conosco…

— Conosco, quem, cara pálida? O problema é todo teu!

— Sua peste! Eu te odeio!

—Tô brincando, amor, eu tava doido pra experimentar com você o que o cara sugeriu…

— Então vamos planejar?

— Você começa, tá?

— Você vai querer que eu esteja completamente… animado desde o começo?

— De jeito nenhum, o que eu quero é chamego, é carinho leve, é beijinho no pescoço, é deitar de conchinha… e você?

— Você sabe que eu tenho vergonha, mas que eu adoro que você faça carinho, bem de leve, nos meus mamilos?

— Ai, amor, que lindo que você confessou, às vezes eu tentava e você me afastava, e só de eu ouvir você no telefone eu tou toda entusiasmada…

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Materia publicado na Folha de São Paulo.


Artigos: Espírito de porco

 (Publicado em 11 de junho de 2012)

Do dicionário Aurélio:

Espírito de porco. Bras.

1. Pessoa que interfere em qualquer negócio ou assunto, criando embaraços ou agravando os já existentes.

 Prezado Sr. Ministro da saúde,

É como médico e como psicanalista que venho alertá-lo de uma epidemia que pode ser tão grave para seu governo quanto a gripe suína, só que não atinge o corpo, atinge a alma (psique, em grego, ou seja, é da minha alçada) que está se alastrando: a do espírito de porco.

Minha observação epidemiológica começou quando Nosso Guia disse que aqueles que criticam o Bolsa-esmola são imbecis.

Entrei em contato com uma quantidade enorme de pessoas que pensam como eu, e que acham o bolsa-esmola um curral eleitoral, que a popularidade do presidente se sustenta no assistencialismo, e este na manutenção da pobreza, um dinheiro sem contrapartida eficiente, que não contribui para a independência financeira das pessoas através da educação.

Percebi que não éramos propriamente imbecis. Estávamos, sim, contaminados pelo vírus da doença. Nós éramos os espíritos de porco. Pelo Aurélio, nós queríamos interferir, criando embaraços em assunto já existente.

Qual assunto? É uma outra doença psicológica, de alto contágio, só que extremamente favorável ao governo.

Trata-se do legado que Lula deixará: de cinismo; de palavras de ontem que não valem hoje; apatia; impotência do cidadão comum; tributos escorchantes que sustentem sua máquina aparelhada de governo, seu assistencialismo, sua vaidade e sua inapetência para governar; esbulho de valores éticos; impunidade aos aloprados, mensalistas e companheiros dos “movimentos sociais”; acusações sobre quem divulga seus erros (a mídia); ensaios de controle autoritário sobre ela; desqualificação do legislativo; subjugação de seu próprio (suposto) partido; divisão do país entre pobres e a “zelite”; entre negros e brancos; apropriação das benfeitorias de outros governos; varrer seus erros sob o vasto tapete da herança maldita; aparelhamento do Estado; clímax do patrimonialismo (apropriação do que é público pelo indivíduo que detém poderes, também chamado furto); desencadeamento da mais deslavada campanha presidencial fora de prazo legal feita com nosso dinheiro (vai ter direito a “O filho da D. Lindu” antes das eleições?); alegação de um desconhecimento de malfeitorias, tão hipócrita quanto impossível; mais impunidade “porque todos fazem o mesmo”, com uma única finalidade: manter-se no poder a qualquer custo. (Ministro, isto não se parece com a doença venezuelana?)

Devo dizer que aqui estou contaminado pelo vírus, em pleno exercício do espírito de porco, querendo atrapalhar o legado de Nosso Guia.

Porque ele é moralmente nocivo ao País.

Pedro Aleixo, vice de Costa e Silva, foi o único a recusar assinatura ao AI-5. “O Sr. teme que o presidente faça mal uso deste instrumento?” Respondeu: “Não. Eu temo o guarda da esquina. Quando a moral se deteriora a partir do presidente, ela contamina até o guarda. E este eu temo”.

Procurei detectar o público-alvo dessa epidemia: são cidadãos trabalhadores; honestos; pagadores de impostos (e que impostos!); respeitadores da lei; construtores da prosperidade do país; cultivadores de coisas tais como honra, probidade e decência; empreendedores;  democratas; defensores dos direitos das minorias, da propriedade privada e dos contratos honrados; respeitadores de plantações de eucalipto (apesar de não comestível, ele é ecológico e bom gerador de empregos); pais que querem seus filhos bem educados, sem catequeses ideológicas financiadas com nosso dinheiro.

Enfim, Sr. Ministro, somos nós, que o seu governo considera secretamente a escumalha da terra, mas que tolera enquanto sustentamos vocês.

Descobri que temos companhias ilustres. A mais notória delas hoje é a ex-secretária da Receita, Lina Vieira, exemplar espírito de porco que arrancou a máscara cirúrgica que disfarçava as feições autoritárias da Ministra (retornaram, apesar da plástica), sem esquecer seus doze demissionários; Marina Silva e o senador Arns, grandes espíritos de porco; até no PT o vírus deu o ar de sua graça, no cartão vermelho do senador Suplicy, e por pouco não pega o pobre Mercadante.

Pois até o reverso pinado da TAM (que tanta alegria deu ao assessor “Top-top-top”) revelou-se um espírito de porco, derrubando o Ministro da Defesa, a diretoria da Anac, reformando aeroportos etc.

Pois é, Sr. Ministro, apesar de velho, nunca imaginei que ser chamado de “espírito de porco” fosse algo de que, como você, leitor não lulista, eu iria me orgulhar.

 

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Artigos: O Confeito e o Bolo

 Artigo escrito para apresentação em mesa redonda da V Jornada Cena de Psicanálise da CENA, psicanálise e cultura RJ

A psicanálise clínica sofre de uma doença perversa de domínio-submissão que tem sido nefasta para sua eficácia terapêutica, seu desenvolvimento teórico e seu instrumental epistemológico. O psicanalista se coloca numa posição superior ao cliente, que, reverente ao senso comum da respeitabilidade da psicanálise, a ele se submete, à sua linguagem estranha se adapta, atropela seu próprio universo cultural para atender ao do psicanalista, formando com ele uma cumplicidade não deliberada por nenhum dos dois que continua a doença perversa de domínio-submissão que já traziam da cultura. Ao se reencenar na psicanálise a doença perversa com a parceria do psicanalista, perde-se o principal fator diagnóstico-terapêutico da perversão: o estranhamento do sintoma. Ao se perder o estranhamento do sintoma, outro critério para a caracterização de um fato psíquico como doença fica igualmente prejudicado: a compulsão deixa de ser desprazerosa, o cliente já não fica mais incomodado com a submissão. E por que ficaria, se o psicanalista também não se incomoda com o domínio?

Aludi a critérios para chamar um fato psíquico de doença porque julgo que essa denominação é ideológica. Dizer que algo é doença psíquica não é nada auto-demonstrativo. Ou pelo menos não é tão auto-demonstrativo quanto dizer que algo é doença física. O critério de doença psíquica varia com a cultura e com a ideologia. Há culturas em que o que chamamos psicose é chamado de iluminação, o que chamaríamos de perversão, como o canibalismo por exemplo, é visto como ritual sagrado. Os seis critérios que proponho para caracterizar um fato psíquico como doença são: estranheza; compulsão; repetição; grande consumo de libido; fixação objetal; satisfação desprazerosa. Isso pode ser bem nítido num ritual da neurose obsessiva, como o lavar as mãos de Lady Macbeth. Ela estranharia sua obsessão, seria mais forte do que ela, teria que lavar-se repetidamente, a impureza de suas mãos ocupava-lhe quase todo o tempo, era sempre o mesmo problema e, ao satisfazer sua compulsão, poderia ter até dor, já que as mãos acabam em carne viva. Ora, no caso da relação de domínio-submissão que acontece na psicanálise clínica, a estranheza e o desconforto que um paciente sente com o domínio do psicanalista vão desaparecendo na medida em que o psicanalista se apresenta como um valor cultural maior do que aqueles da cultura do paciente, diante do qual o paciente deve-se curvar. E ele se curva. É preciso lembrar aqui que o psicanalista já foi paciente um dia, e passou pela mesma diluição de seu desconforto e de sua estranheza frente ao domínio-submissão, mais diluídos ainda se o psicanalista concebeu essa submissão como preço a pagar para ser aceito na profissão. Ele se curvou, perdeu o estranhamento de sua submissão, e agora, infelizmente a está passando adiante, prazerosamente assumindo o papel de dominador. É desta forma que o vassalo, por aspirar a ser tirano, deixa de questionar a tirania.

Estou me dirigindo a psicanalistas em formação, em processo de psicanálise pessoal que alguns chamam de “didática”. Mas esse adjetivo costuma servir como mais um instrumento de domínio: “Meu analista é tão importante que é um didata. Quem sou eu para questioná-lo? Ainda mais que, se ele se irritar comigo, pode barrar minha carreira profissional”. Quando uma situação dessas acontece, eu diria que a tal psicanálise é mesmo didática. Explica didaticamente a perversão que estou querendo demonstrar.

Aqui me vejo na necessidade de definir perversão. Considero essa necessidade como fruto das restrições de natureza teórica que a psicanálise sofre por causa da própria perversão que a acomete, um dos efeitos que citei no início desse artigo. Se eu estivesse mencionando uma doença da esfera da medicina clínica, poderia supor que o leitor estivesse familiarizado com os tratados de patologia e de fisiopatologia, onde tal doença estaria suficientemente descrita em suas características de etiologia, sinais, sintomas e funcionamento, de tal forma que não me veria obrigado a entrar nesses pormenores. Em psicanálise, tais coisas não podem ser chamadas pormenores. São “pormaiores”, dada a nossa deficiência em tratados de psicopatologia psicanalítica, nosso desconhecimento de fisiopatologia das doenças psíquicas. Percebo que a concepção de psicopatologia diverge a tal ponto de psicanalista para psicanalista que me vejo na necessidade de parar a cada citação de doença para explicar o que quero dizer com tal termo.

Proponho uma definição de perversão. Que ela seja entendida como o uso sistemático e compulsivo de uma combinação específica de mecanismos de defesa contra as ameaças do superego: a renegação/cisão do ego (Verleugnung/Ichspaltung – ver as definições no Vocabulário da Psicanálise, de Laplanche & Pontalis), quando o indivíduo recusa, apesar de conhecê-las, as ameaças que o mundo externo (aqui representado pelo superego) lhe faz face a seu desejo de operar algum impulso parcial, e abre um território em seu ego onde, não só as ameaças não funcionem, como ele possa satisfazer dois impulsos condenados ao mesmo tempo: aquele que lhe estiver interessando no momento (no caso, o de domínio-submissão), mais o de se vingar do domínio que seu próprio superego exerce sobre ele. Proponho ainda que se desatrele, como condição necessária, o conceito de perversão do orgasmo ou de práticas sexuais, caso em que se perderia toda uma gama de sutilezas de representação psíquica que esta definição proposta permite. Com esta definição, quero que a perversão possa ser vista como um desdobramento da relação que o indivíduo tem com seu próprio superego, relação sadomasoquista de domínio e submissão, relação esta que está fadada a se repetir dentro da psicanálise clínica, a se manter a maneira em que ela se encontra hoje.

A doença perversa de domínio-submissão se manifesta na psicanálise principalmente através da postura e do comportamento do psicanalista. Em nome da neutralidade, o psicanalista envia sinais comportamentais que a cultura nos ensinou a vida inteira como sendo típicos de quem se arroga superioridade. Aqui precisamos da ajuda da antropologia para entender os atropelos de significados culturais feitos pelo psicanalista em nome de sua ciência. O silêncio do psicanalista elimina sua mais elementar cordialidade, sua “boa educação”. Em nossa cultura, a pessoa que reage às perguntas encarando a outra em silêncio está sendo francamente hostil e arrogando-se uma superioridade, como se dissesse que era importante demais para responder e não tinha dado intimidade à outra para que ela lhe dirigisse a palavra. A imposição do divã é outro desses atropelos. Alguém só aceitará falar pessoalmente de costas para outro em duas situações: porque entende, acata e vê vantagens para si nisso, ou por submissão. Como a decisão de usar o divã não é deixada ao cliente, e não é precedida de nenhuma explicação, o uso do divã costuma se dar por imposição, e costuma ser aceito por submissão. O silêncio continua a atropelar os direitos do cliente quando a ele não é dado nenhum referencial do que consiste a psicanálise, nenhum diagnóstico, nenhum prognóstico, nenhuma explicação de estratégia terapêutica, e nenhum direito de estranhar essas ausências, já que a resposta a qualquer queixa que o cliente tenha em relação ao processo será encarada pelo psicanalista como resistência, e as coisas pioram quando o cliente percebe (por dedução) que o psicanalista entende a resistência como insubordinação, má vontade do cliente, que a resistência é algo de que o psicanalista o acusa, algo de que deve se arrepender, se sentir culpado de ter. É um momento em que as interpretações passam a ter força de desqualificações. Se um cliente se queixa de não entender o processo psicanalítico e ouve do psicanalista que isso é uma manifestação de suas dificuldades habituais no trato com figuras de autoridade derivadas de seu pai, a queixa fica automaticamente desqualificada, e mais, a autoridade do psicanalista, tanto quanto a do pai, se torna algo inquestionável, endossada agora pela autoridade do psicanalista. As manifestações do domínio-submissão estão sintetizadas nesses exemplos. Poderíamos pensar em desdobramentos múltiplos na prática clínica, como comunicações do psicanalista que causam perplexidade ao cliente por serem herméticas, ou feitas em jargão, ou em linguagem para iniciados. Por exemplo, alusões ou interpretações referentes às protofantasias, à angústia de castração, à cena primal ou originária, às seduções sofridas pela criança, ao complexo de Édipo, que certos psicanalistas usam como panacéia, como explicativo de tudo, causam em geral grande estranhamento nos clientes. Esse estranhamento não será manifestado se houver submissão, e o psicanalista perderá a oportunidade de perceber quão alheios à vida comum de seus clientes esses conceitos são, quando em estado bruto. A propósito, chamar devaneios ou fantasias de “fantasmas” é um bom exemplo da causação de perplexidade. O cliente entende fantasma como sendo alma do outro mundo, mas como não é provável que o psicanalista esteja se referindo a espíritos, simplesmente não entende e se cala, envergonhado da sua ignorância, que agora, desgraçadamente tomará como sinônimo de inferioridade, exatamente como fez ao longo de toda sua escolaridade. A vergonha da ignorância é um fato gravíssimo para qualquer processo de aprendizado. Representa um dano sério para a psicanálise, para o paciente e para o psicanalista.

Tal perversão causa na psicanálise quatro tipos de dano: sobre a epistemologia da psicanálise; sobre o processo de transferência; sobre a teoria da investigação psicanalítica; sobre sua eficácia terapêutica.

1. O dano epistemológico.

A proposta de qualquer psicanalista que deseje a psicanálise como uma modalidade de conhecimento confiável é poder conferir seus achados de investigação e saber se eles se aproximam da verdade ou não. Deixemos de lado, neste momento, a questão filosófica da Verdade e ponhamo-nos de acordo com o fato de que não podemos prescindir de um desejo de Verdade. Proponho que adotemos, provisoriamente, em relação a Verdade a mesma definição lusitana que o Barão de Itararé deu para o açúcar: “O açúcar é uma substância que dá muito mau gosto ao café…em se não lho botando”. Ora, a psicanálise tem um sério problema epistemológico. Não podemos repetir seus achados em laboratório, não podemos aplicar testes double-blind como se faz para verificar eficácia de remédios (substância x placebo), e finalmente, não temos como garantir que a resposta que o paciente dá para nossas hipóteses realmente mostra seu erro ou seu acerto. Freud lidou com essa questão epistemológica em dois artigos dramáticos pela sua desconcertante ambivalência: A Negativa (1925) e Construções em Análise (1937). No primeiro afirma que a negativa de um paciente a uma hipótese do psicanalista é uma forma de confirmação de sua hipótese. No segundo, doze anos mais tarde, cai em si e diz que, a se tomar isso como verdade, o psicanalista estaria jogando um jogo em que não poderia perder: par, eu ganho; ímpar, você perde.

O que podemos fazer então, pela epistemologia psicanalítica? Podemos recorrer a um dos critérios propostos por Karl Popper em sua filosofia da ciência: o critério de refutação. Segundo Popper, uma hipótese estará dentro da área do conhecimento científico se for facilmente refutável, se for simples testá-la em sua validade. Desta maneira, o cálculo de um eclipse lunar, por exemplo, será facilmente refutado se não acontecer dentro do previsto. O exemplo oposto poderia ser a previsão de pouso de uma nave extraterrestre em Casimiro de Abreu, feita há alguns anos. Chegada a data, não houve sinal da nave. Questionados, os previsores explicaram que a multidão de espectadores havia afugentado os ETs. A previsão era válida? Era errada? Não se pode dizer, porque sua hipótese não era passível de refutação. Não ser passível de refutação não significa, para Popper, ser falso. Significa apenas ser matéria de fé, significa não estar na área do conhecimento científico. Não proponho que o conhecimento científico seja a única forma de conhecimento válida e confiável – e me oponho mesmo a esse endeusamento da ciência que a tem transformado na nova religião dos outrora céticos – mas concordo que sua metodologia pode ser conveniente em nossa busca da Verdade.

Como podemos utilizar o critério de refutação em psicanálise? Tornando a refutação fácil, formulando hipóteses simples, diretas e transparentes, e reconhecendo no paciente o direito permanente de recusá-las. Uma hipótese psicanalítica pode ser aceita ou recusada pelo paciente. Pode ser aceita porque está correta. Mas, se a refutação é difícil, e isso pode se dar porque a hipótese é muito complexa, obscura, não foi bem entendida pelo paciente, ou porque o psicanalista não tolera estar errado, não responde a pedidos de esclarecimento, acredita que a negativa do paciente é, no fundo, uma confirmação, a hipótese pode ser aceita, mesmo falsa, por submissão e seus desdobramentos: vergonha de não ter entendido; mudez por perplexidade; ou aquela frase patética (quando o psicanalista a aceita como confirmação): “Só se for muito inconsciente…” Pode ser recusada por estar errada. Mas, se a questão entre o paciente e o psicanalista é saber quem manda, a hipótese, mesmo correta, pode ser recusada por tentativa de domínio, por birra, por vingança, para não dar o braço a torcer. Ou seja: os principais falseadores da resposta do paciente são a submissão e o domínio!

Eis aí o dano epistemológico que a perversão de domínio-submissão causa à psicanálise. Se o psicanalista tenta torcer o braço do paciente, se ele se posiciona como superior-dominador, se a psicanálise é uma queda-de-braço, o paciente pode ou não dar o braço a torcer. Em ambos os casos o dano epistemológico está feito.

2. Dano Transferencial.

Tornou-se senso comum a estratégia de fazer com que a investigação psicanalítica se dê dentro da neurose de transferência encenada pelo paciente com seu psicanalista. Ele deveria mesmo induzir gradualmente o paciente a convergir sua neurose para dentro do território da psicanálise, seja através de interpretações auto-referentes (interpretar material de sonhos como dizendo respeito ao psicanalista, por exemplo), seja através de dissimuladas repreensões ao paciente quando sua neurose se encenasse com alguém além do psicanalista. Criou-se até um jargão para esse “pecado” do paciente: atuar fora (uma tradução errada do termo acting out, que significa simplesmente encenar).

Acho necessário questionar tal estratégia de investigação. O que acontece quando a doença em questão não é uma neurose de transferência? A melancolia, a depressão, a hipocondria e as neuroses atuais não se encenam por transferência. Quais serão as conseqüências de um psicanalista tentar induzir uma neurose de transferência no paciente quando nesses casos? Igualmente precisamos pensar a resistência por transferência, a chamada transferência negativa, quando o paciente se cala por um mal-estar surgido nele em relação ao psicanalista. Freud descobriu a riqueza de material inconsciente que essa transferência continha, e a colocou entre as muitas fontes de investigação (junto com os sonhos; devaneios; lembranças encobridoras; chistes; atos falhos e sintomas) que deveriam ser examinadas. No famoso capítulo VII da Interpretação dos Sonhos, Freud nos diz, numa rara e preciosa intervenção epistemológica, que uma hipótese psicanalítica poderia ser considerada correta se fosse confirmada pela investigação de várias dessas fontes, ou seja, se se fizesse o mesmo achado a partir da investigação de sonhos, devaneios, lembranças encobridoras etc. Ora, aqui temos problemas. Primeiro, se o psicanalista só visa a transferência (ou prioriza a indução de neurose de transferência na investigação de outros materiais), como confirmará seus achados a partir de outras fontes? Depois, a postura impositiva de domínio de um psicanalista, sua desconsideração pelos direitos do paciente serão, necessariamente, fonte permanente de mal-estar para o paciente (pelo menos até ele se submeter totalmente). Deve o psicanalista tomar esse mal-estar que ele mesmo causou como resistência por transferência? Deve pensar que o mal-estar vem da neurose do paciente, e que ele, psicanalista, não tem nada a ver com isso? Terá ele o respeito do paciente para investigar de maneira “neutra” um mal-estar que ele mesmo produziu? Não será essa a causa das guerras de silêncio, das sessões mudas em que, mais do que nunca, se evidencia a queda-de-braço entre psicanalista e paciente para saber quem vai falar primeiro, para saber quem está no domínio da situação?

O que penso se tornar nítido nesses casos é um tipo de patologia psíquica da qual nunca ouvi ninguém falar, mas que poderia ser descrita como perversão de transferência, perfeitamente análoga à neurose de transferência: o encontro do dominador com o submisso, do masoquista com o sádico, do exibicionista com o voyeurista, mesmo sabendo que essas relações são dialéticas (o masoquista explícito sendo um sádico sutil em outras horas e assim por diante). Só que, nas perversões de transferências, o objetivo é operar o impulso parcial, e não refletir sobre ele num processo investigatório. Na perversão, ao contrário da neurose, não há conflito íntimo, porque o superego está sendo renegado. Pode um psicanalista refletir sobre uma perversão da qual ele é cúmplice e indutor? Até poderia, se ele reconhecesse sua parte no processo, mas se ele opera a perversão, o mais provável é que isso seja um ponto cego seu.

O mesmo ocorre no chamado amor de transferência. Deveria ser chamado paixão de transferência. O termo latino Passio só admite uma tradução: sofrimento. Esse sofrimento devoto, no qual uma pessoa elege alguém distante, superior e misterioso como foco de sua idealização para venerar, odiar e/ou desejar, encontra no psicanalista tradicional seu objeto mais bem talhado: uma pessoa investida de autoridade, silenciosa, misteriosa, distante e ao mesmo tempo próxima, que se posiciona como superior, a imagem encarnada do superego. Ao tomar essa postura, será que o psicanalista é neutro? É fácil responder esta pergunta: tal postura é violentamente sedutora. Faz parte do be-a-bá elementar da sedução que todos nós aprendemos na escola da vida, e que é a estratégia histérica clássica: parecer difícil e melhor do que se é, distante mas ao mesmo tempo próximo, para despertar a paixão no outro e dizer que o desejo é só dele, que a gente não tem nada a ver com isso. Há psicanalistas que afirmam não existir psicanálise quando não existe a paixão de transferência. Pois podemos fazer aqui a mesma pergunta anterior: pode um psicanalista investigar de maneira “neutra” os conteúdos transferenciais de uma paixão que ele mesmo induziu?

Finalmente quero questionar as chamadas transferências positivas, aquelas que supostamente facilitam o processo de psicanálise e fazem um paciente eleger seu psicanalista. Penso que é função diagnóstica do psicanalista esclarecer os motivos pelos quais o paciente o elegeu. Lembro que elegi meu primeiro psicanalista, já se vão trinta e oito anos, por causa do seu humor sarcástico e irônico. Na época, para mim, isso era sinônimo de inteligência. Hoje, utilizando o que penso sobre psicopatologia, vejo que era sintoma da minha perversão de domínio-submissão encontrando seu parceiro transferencial. Mas não cabia a mim, paciente, entender isso. Cabia ao psicanalista diagnosticar. Não foi diagnosticado nem tratado. Nem poderia: fechou-se um pacto perverso sobre um ponto cego do psicanalista.

3. Dano Teórico.

É claro que, se há dano epistemológico, se há dano transferencial, há dano teórico. Mas meu assunto específico é a relação de domínio-submissão e o dano que ela causa na teoria da investigação na psicanálise clínica. Há quinze anos tive uma conversa intrigante com um amigo. “Gostaria de ir a um psicanalista só para ver se ele conseguia me pegar!”, disse ele. “Como assim, ‘te pegar’?”, respondi, surpreso, “quando você vai a um clínico porque está com uma dor, por acaso vai nessa atitude de desafio, ocultando sintomas para ver se ele consegue ‘te pegar’?” Ele concordou com o absurdo da situação, mas eu não fiquei satisfeito. Havia realmente na psicanálise essa situação de antagonismo, e o psicanalista de fato parecia alguém à espreita, vigiando o menor deslize do paciente para então cair sobre ele dizendo “Ha, ha! Te peguei! Está vendo como você tem monstruosidades ocultas?!” O psicanalista e o paciente ficavam entrincheirados em campos opostos, cada um querendo provar ao outro que ele estava errado, e o psicanalista dispondo de um aparato teórico para “desmascarar” o paciente. O setting psicanalítico era uma praça de guerra disfarçada, e a guerra só visa uma coisa: o domínio de um e a submissão do outro. À desastrosa vergonha de ser ignorante vinha se somar uma outra ainda mais nefasta: a vergonha de errar, de ser pego em erro. O erro, o tão interessante ato falho descoberto por Freud, cheio de possíveis informações sobre as nossas ambivalências, tinha se tornado uma janela para nossos defeitos ocultos, por onde o psicanalista ia olhar para nos “pegar”. Vi gerações de estudantes de psicanálise, psicólogos, analisandos e aculturados atentos para pegar seus colegas em atos falhos que eram imediatamente interpretados, sempre sem material associado, e sempre pelo pior prisma. A vergonha do erro é nefasta para a construção de um conhecimento confiável. E o psicanalista que quer “pegar” o paciente, passará a ter medo de ser ele mesmo “pego” pelo paciente. Passará a ter vergonha e medo de errar, dará excessiva importância negativa ao erro, encarará o erro como fraqueza, e a fraqueza é fatal num jogo de domínio. Pois digo que essa postura em relação ao erro é fatal para a construção de uma teoria confiável. Ela fica melhor num xamã, num feiticeiro ou num papa “infalível” que num psicanalista preocupado com a epistemologia de seu conhecimento.

Já comentei o dano teórico que resulta de centrar a investigação psicanalítica na transferência, e a riqueza de material que se perde ao se subestimar as demais manifestações do inconsciente reprimido. O privilégio da transferência também subestima uma atenção maior que deveria ser dada ao estudo da psicopatologia e da fisiopatologia psíquica. Não vejo uma preocupação maior dos psicanalistas com o diagnóstico nem com estratégias de investigação vinculadas a fisiopatologia da doença diagnosticada. Não entendo porque isso acontece, mas já detectei uma espécie de repugnância classificatória que alguns psicanalistas têm, como se a taxionomia fosse coisa de psiquiatras, e aqueles não quisessem se confundir com estes, pois “a psicanálise estaria muito acima” da psiquiatria. É uma atitude isolacionista danosa para a psicanálise. Os danos teóricos que vêm dessa arrogância de superioridade são imensos. A psicanálise necessita permutar com outras disciplinas (a psiquiatria, a antropologia, a sociologia, a filosofia da ciência, a psicologia evolucionista, a psicologia cognitiva, a epistemologia e a neurofisiologia principalmente) para se tornar um conhecimento confiável.

4. Dano Terapêutico.

O assunto da eficácia terapêutica da psicanálise é extenso e controvertido. Temos recebido críticas, muitas pertinentes, sobre os prazos com que trabalhamos e o pouco efeito de cura que conseguimos. Muitos psicanalistas argumentam em favor de sua falta de compromisso com a eficácia terapêutica, olhando a psicanálise como apenas um instrumento de reflexão sobre a vida dos pacientes. Alguns mesmo advogam seu descompromisso com o alívio do sofrimento dos pacientes, tomando até o critério reverso. Numa expressão típica, um paciente pode afirmar que “hoje a análise foi muito boa: saí rastejando da sessão, aos prantos, arrasado”. Como meu assunto se restringe aqui ao dano terapêutico causado pela perversão de domínio-submissão induzida pelo psicanalista na prática clínica, vamos considerar as relações de causa e efeito nessa área. Como se forma uma doença psíquica? Retomemos as séries complementares de Freud: desejo fixado pela repressão primária + trauma atual (o que despertaria o desejo fixado) + conflito entre o desejo despertado e as proibições superegóicas = formação de uma solução de compromisso, via nova repressão, que atenda em parte o desejo fixado e em parte as exigências do superego: o sintoma neurótico. Qual é a meta habitual de investigação da psicanálise? Tornar consciente o desejo fixado durante o drama do complexo de Édipo e de sua dissolução pela formação do superego. Esse desejo está reprimido pelo horror que causa ao paciente. Quando ouço dizer que a “análise foi ótima porque saí arrasado”, penso que o psicanalista, através de seus artifícios, “pegou” o paciente e revelou-se para ele o desejo fixado com todo seu horror. O motivo do sofrimento do paciente seria “ouvir duras verdades” a respeito de si, e assumir o horror de seu desejo. Assim sendo, o psicanalista está endossando que o desejo fixado é realmente um horror. Isso é semelhante a revelar a Anna O. seu desejo incestuoso em relação ao pai mas não investigar como esse desejo foi construído, quer ao longo de sua infância, quer durante o tempo que se subtraiu da vida de uma menina para atrelá-la à cabeceira de um pai doente. Descontextualizado, o desejo continua horroroso, o potencial de repetição do sintoma segue intacto porque a estrutura do superego continua inquestionada.

É aqui que entra o dano terapêutico da perversão de domínio-submissão: estará o psicanalista, que assume tal postura, em condições de questionar a construção do superego de seus pacientes, se ele próprio é um representante assumido e desejado desse mesmo superego? Um psicanalista que endossa o superego como corregedor de costumes fatalmente pretenderá que, tornados conscientes os desejos, o paciente os abandone, reconhecendo e assumindo a castração, vale dizer, aceitando o que lhe diz seu próprio superego sem questionar a formação de suas leis. Ora, o arrependimento dos pecados sem questionar suas causas e as leis que os chamam de pecados é o mesmo caminho que a Igreja Católica vem tentando para corrigir os pecadores, sem o menor sucesso, há dois milênios. Sem o menor sucesso para o “pecador”, que volta sempre a pecar. Mas com grande sucesso para a instituição religiosa, porque ele volta sempre a confessar.

Não é à toa que Freud se desiludiu com a eficácia terapêutica da psicanálise, chegando no fim da vida a sonhar com um futuro onde drogas bioquímicas deixariam a psicanálise livre da embaraçosa tarefa de tentar curar os pacientes de seus sintomas para que ela pudesse se dedicar aos seus aplicativos mais sublimes, de especulação cultural.

Não é à toa que surgiu, na teoria da investigação psicanalítica, a história da quinta resistência. Essa resistência, chamada resistência do id, ou “leito de pedra”, ou compulsão à repetição, “fruto do irredutível impulso de morte”, consistiria no fato de que, a despeito de o psicanalista ter investigado tudo que podia investigar, escavado até chegar ao tal leito de pedra, sem nada mais a escavar, o paciente continuava a ter sintomas. Tal resistência até pode ser que exista. Mas nenhum psicanalista, que preze a confiabilidade da psicanálise como forma de conhecimento, deveria se valer dela como explicação para seu fracasso terapêutico. Então a psicanálise é perfeita, o defeito é do paciente? O bem-estar da instituição é mais importante que o do paciente? Isso equivaleria a usar o mesmo tipo de explicação ad hoc que os previsores de Casimiro de Abreu usaram para a ausência dos extraterrestres. Não faz da psicanálise um conhecimento confiável. Se um psicanalista quer ser confiável, quer buscar algo próximo da verdade, diante de um fracasso terapêutico precisa ter a humildade de se perguntar onde está seu erro, ou o da psicanálise que aprendeu.

Como essa perversão começou?

A hipótese que faço é que essa perversão começou com Freud. Não por maldade ou má intenção, mas por causa das circunstâncias em que viveu, que é como, de resto, acredito nascerem todas as perversões. A magnífica ambivalência de seu gênio o fez ser um cientista honesto e perspicaz, ao mesmo tempo um tirano institucional; um revolucionário na concepção da alma e um submisso ansioso por aprovação da Academia vienense. Freud era capaz de se questionar, de pensar que estava errado (como no caso da negativa, ou da origem da angústia, que inicialmente pensava ser causada pela repressão e depois descobriu que, ao contrário, era a causadora da repressão – Verdrängung), ou no máximo aceitar algum reparo vindo de Fliess. Mas sabemos como recusou com mão de ferro os reparos vindos de seus discípulos. Adler, Jung, Ferenkzi, Rank e o brilhante jovem Victor Tausk sentiram com maior ou menor intensidade o peso dessa mão. No entanto recuou diante da grita acadêmica contra a etiologia da histeria: o abuso sexual na infância não passaria de “fantasias”. Ponhamo-nos em seu lugar: Freud era um ambicioso judeu de origem pobre, fascinado pela glória acessível de uma das nobrezas mais sedutoras da história: o título de Herr Professor da academia de ciências da Viena do século passado. Dificilmente podemos entender hoje essa sedução. Não há lugar social tão reverenciado, inquestionado e arrogante de grandeza e importância que se lhe compare. Numa época onde a ciência parecia ter chegado para substituir a religião, o Herr Professor era mais que um papa, era um semideus. A relação médico-paciente de um Herr Professor pode ter um símile hoje na de um cirurgião cardiovascular, isso se levarmos em conta que o paciente estará anestesiado, completamente submisso e já de tórax aberto, esperando a entrada triunfal da estrela. Freud, no entanto, deu um passo decisivo para longe do domínio-submissão ao se descobrir mau hipnotizador (onde o domínio-submissão é a base) e ao propor a livre associação de idéias a seus pacientes. Contou, divertido e tolerante, da paciente que o mandou calar-se, porque estava interrompendo sua “limpeza de chaminé”. Um passo em direção ao domínio-submissão ao impor o divã para atender a uma conveniência sua (ele se incomodava com os pacientes a encará-lo). Outro passo na mesma direção ao se irritar com a descoberta das resistências, ao tentar vencê-las com a força de sua autoridade. Um passo extraordinário para longe do domínio-submissão ao entender que as resistências tinham um conteúdo histórico, que eram uma notável fonte de material de investigação, que não eram má-vontade dos pacientes, mas sua história inconsciente codificada, tal como os sintomas.

Assim ia Freud construindo sua teoria, dois para cá, dois para lá em sua valsa com o domínio-submissão. Mas isso é o que acontece com todos nós, afinal, em nossa relação com a cultura. O que poderia ter pesado em direção ao domínio-submissão no caso de Freud e a psicanálise clínica? Penso ter sido sua condição de nouveau. O calouro, o estreante, o aprendiz, o recém-chegado, o pretendente, o nouveau-riche e todos os demais nouveaux precisam de acolhimento e tolerância para sua insipiência, para terem o direito de ser e continuar sendo aprendizes. Freud não teve nada disso. E ele não era apenas estreante entre os acadêmicos. Tinha a ousadia de apresentar um conhecimento estreante. Morria de medo de ser visto como um charlatão, e de sua psicanálise como um reles conhecimento judeu. Tanto que exultou com a adesão de Jung, um cristão respeitado.

O maior risco que um aspirante corre ao não ser bem acolhido, além do de se abater pela humilhação, é o de se tornar um snob. Eram chamados snobs os alunos dos internatos da classe alta inglesa que, por não serem de origem nobre, tinham a abreviatura s. nob. (sine nobilitas = sem nobreza) aposta a seus nomes nos registros da escola. Eram justamente esses que, por insegurança social, exageravam na postura que eles pensavam ser própria da nobreza. Era uma formação reativa ao horror que tinham por sua origem “humilde”.

Penso ter sido isso que acometeu a Freud. Inseguro do conteúdo de seu bolo psicanalítico, temeroso de que ele pudesse ser destruído, exagerou no confeito. Era capaz de lidar sozinho com sua teoria como quem constrói um brinquedo com blocos de Lego: tolerante com sua imperfeição, tirava e recolocava melhor os blocos com facilidade. Foi o que fez, por exemplo, no caso da teoria da angústia. Mas quando tinha que apresentar sua psicanálise para a academia e para os discípulos, atirava sobre seus blocos de Lego baldes de superbonder. Apresentava-a como pronta, perfeita e inquestionável. As críticas pareciam-lhe tentativas de destruição (e muitas provavelmente foram), crimes de lesa-majestade. Criou uma instituição vigilante e poderosa para cuidar de seu bolo. Ora, sabemos com que zelo a IPA vem cuidando para que ninguém mexa nesse bolo e nos documentos originais da psicanálise. Para que ninguém mexa em nada que possa arranhar o pesado confeito com que a psicanálise se cobriu todos esses anos. Exigiu que todos os aspirantes se submetessem à psicanálise pessoal como condição para sua formação.

E aqui chegamos ao final dessa discussão. Tenho claro que me dirijo a aspirantes de psicanálise. Quero que eles tenham claro sua condição de nouveaux e saibam de seu direito à incompletude e à condição de aprendizes. Eles vivem o rito de passagem que é sua psicanálise pessoal, requisito de sua formação. Este é o momento crucial por onde penso ter se perpetuado a perversão de domínio-submissão que tanto dano tem causado à psicanálise. Um paciente comum pode mandar seu psicanalista às favas se achar que ele abusa de poder. Será que um aspirante tem tamanha liberdade? As chances são de que ele morra de medo de discordar e que se submeta. Precisamos partilhar essa responsabilidade, aspirantes e psicanalistas formadores. Precisamos acolher com humildade científica, com certeza de nossa eterna incompletude a ignorância e o erro, o questionamento e a reformulação teórica. A psicanálise viveu o drama de qualquer criança: não poder escolher o pacote cultural que recebe ao nascer e ter que lidar com ele. Posso entender sua insegurança infantil. Mas a grande chance de ter crescido é podermos escolher circunstâncias mais favoráveis para nós, onde a neurose, a perversão e outros mecanismos de defesa não se façam necessários. Isto serve para o indivíduo e serve para a psicanálise. E ela já está bem grandinha e respeitável (às vezes até venerável, o que é danoso para ela) agora para poder se permitir essas alterações.

PS- O palestrante que me seguiu era um psicanalista de renome nacional. A primeira coisa que fez foi me corrigir, pois que Freud nunca havia fundado a IPA, e sim a (e declamou, em alemão, o nome da predescessora da IPA), corroborando assim a minha tese, com sua cereja sobre o topo do confeito.

Rio, 3 de agosto de 1995

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