terça-feira, 22 de dezembro de 2020

OS SETE PECADOS CAPITAIS E A PSICANÁLISE



Apesar de serem assim chamados, os pecados capitais não são pecados em si, são tendências viciosas que se tornam “cabeças” (capitis, em latim) de atos pecaminosos, dão origem a eles. 

São eles: soberba; avareza; luxúria; ira; gula; inveja; preguiça. Comecemos pela...

SOBERBA:  imodéstia, afetação, arrogância, atrevimento, convencimento, desdém, egoísmo, empáfia e presunção são alguns de seus sinônimos.

A atitude de alguém que “se acha”, ou pior, que “se tem certeza”, pode ser episódica, ocasional, relativa a um assunto. Será lamentável, mas até aí não houve nem pecado nem vício. Quando não é doença, psicanálise não tratará dela.

Mas quando ela toma conta da pessoa, aí sim, temos um vício, uma doença. Por definição, um vício é um acontecimento mental (com ou sem ato externo) compulsivo (“mais forte do que eu”), repetitivo, alugador da mente, monotemático, que causa satisfação imediata, e dano a si e/ou aos outros em médio/longo prazo.

O principal vício derivado da soberba é o sadomasoquismo, em vários graus de sutileza. Nele, há um que humilha e fere, e outro que é ferido e humilhado. 

Isso vai desde a caricatura sexual de botas, chicotes, algemas etc., até a crítica ferina, demolidora, sarcástica, irônica, que passa o rodo, que achincalha, esculacha, dói, machuca e... humilha.

O sadomasoquismo sutil do fodão-merda (winner-loser) é o vício comportamental mais disseminado em todo o mundo: o daquele compensa a própria insegurança, sua baixa autoestima, através de humilhar os outros. Basta olhar as tretas de internet para vê-lo em ação. Há até presidentes em grandes países que são caricaturas do fodão-merda, em constante necessidade de afirmação de seu poder.

Você dirá que entende isso da parte do sádico, mas... e a do masoquista? É que não há só sádicos ou só masoquistas; uma pessoa é escancaradamente sádica e sutilmente masoquista. E vice-versa. O “masoquista” se envolve no jogo com a secreta nobreza do martírio. Ele, que apanha, é grande, superior; o outro, que bate, é inferior, um merda. Mas jamais ouvirá isso do mártir...

Yuval Harari, em seu “Sapiens”, aventa a hipótese curiosa de que a soberba seja parte da natureza humana: nós somos o único animal que tem consciência de sua fragilidade, e efemeridade; o único sabedor de que a morte o espera. 

Isso nos compele a passar a vida afirmando nossa força e negando nossa morte através de uma grandeza inventada: é a soberba


O DECLÍNIO DA NEUROSE E A ASCENSÃO DO VÍCIO

 



Um dos culpados disso é o próprio Freud.

Mas, vamos por partes. Quando Freud inventou a psicanálise, os costumes eram tais que faziam da neurose a principal doença psíquica. Seus sintomas esquisitos deram a pista de que havia forças se movendo nos infernos da mente. Sua investigação levou à descoberta do inconsciente reprimido, de um Superego, dos desejos proibidos, do conflito interno entre os dois, que resultava na neurose.

A neurose histérica, o exemplo típico: na época, o desejo sexual da mulher era visto como coisa reprovável, impensável mesmo. Os princípios morais que o reprimiam estavam lá, o Superego vigiava... mas não eliminava o desejo. Quando ele aparecia, o horror interno, a culpa, a perturbação e a angústia causados levavam a um mecanismo de defesa automático e involuntário: a repressão (também chamada de recalque; em alemão, “verdrängung”, “desalojamento”).

Anna O. viu o pênis do pai pelo pijama entreaberto; o desejo de tocá-lo se despertou; a mão avançou em sua direção, o conflito desejo/Superego se deu, e... a repressão entrou em cena: a mão travou, o desejo sumiu da consciência, e em seu lugar surgiu o sintoma histérico: aquela mão estendida e paralisada.

Como diz o termo em alemão, houve um desalojamento: o desejo saiu de cena, e em seu lugar entrou o sintoma. Sim, aquela mão paralítica estendida contava um drama, deixava pistas, era a solução de compromisso entre o desejo e a proibição... 

Mas essa é outra história. Nossa questão aqui é sobre como a neurose foi sumindo (já não se veem sintomas histéricos) e foi dando lugar aos vícios.

Os vícios são resultado de outro mecanismo de defesa contra a crítica do Superego. Enquanto na repressão o Superego torna o desejo impensável, nos vícios eles são pensados, reconhecidos como errados, mas a pessoa se afirma rebelde ao Superego e diz “Foda-se, vou fazer!”

Parece melhor que a repressão, mas... não é. Porque mantém o Superego alimentado, desta vez pela rebeldia, mantém a pessoa prisioneira dele, só que pela vingança. Afora o fato de que os vícios, bem, eles não fodem o Superego, quem se fode é a pessoa.

Freud foi um dos culpados, pois ajudou a que se confundisse repressão com opressão; autoritarismo com autoridade. Os analisados não queriam a mesma culpa que eles atribuíram aos pais deles, e passaram a mimar os filhos. Quando os filhos mimados cresceram, entraram em choque com a dura realidade da vida e disseram, “Foda-se, quero o mimo!”, agora via maconha e congêneres.

Além dos vícios de substâncias, vícios comportamentais prosperaram, todos eles vingativos contra o Superego: o fodão-merda (derivado do “winner/loser” americano); o vitimismo (quando a vítima almeja tornar-se tirano, como indenização pelo que sofreu); o bosta n’água parasita (o mimo como direito adquirido) etc.

Os outros fatores do declínio das neuroses, só por registro pois o assunto é longo, são sociológicos, que repudiaram qualquer autoridade (vistas como autoritarismo), as utopias dizendo que “é proibido proibir” etc.

A neurose que ainda resiste é a obsessiva. Mesmo assim, em suas manifestações menos “neuróticas”, como na síndrome do pânico, no terror dos palcos e de performances, e nas depressões.


O AMIGO PERGUNTA - “Qual a diferença entre ansiedade e angústia?”

 


O AMIGO PERGUNTA

“Qual a diferença entre ansiedade e angústia?”

Francisco Daudt: Angústia é medo, sentimento de ameaça; ansiedade é querer que tudo aconteça logo, fazer tudo logo, pra acabar logo, pra ver se deu certo logo. Elas são aparentadas, porém diferentes.

Angústia, na origem, significa aperto, estreiteza. Os médicos chamam de “angina” (angor pectoris) a dor com aperto no peito causada pela insuficiência de oxigenação do miocárdio (conhecida como “ameaça de infarto”). “Angst” é medo, simplesmente medo, em alemão.

De forma que podemos traduzir angústia por medo, é o jeito mais simples. O medo causa um aperto, mais na boca do estômago, e em outras partes anatômicas (daí o “quem tem cu, tem medo”).

Mas, se a casa começa a pegar fogo, sentimos um medo inequívoco que nos faz fugir.

O medo/angústia é mais sutil, ele acontece a partir do que diz nosso Superego: “Vai tudo dar errado, a sifudência te aguarda, ninguém mais vai gostar de você!” Ele pode ser causado por raiva complicada, p.ex.: você está irritado com uma pessoa amada; não é nada simples mandá-la às favas, você não sabe como resolver essa raiva, a ameaça de desamparo aparece... e com ela, a angústia.

É preciso, pois, distinguir uma angústia produtiva de uma inútil. A primeira, como no incêndio, nos leva a tomar providências de correção da causa. A segunda pode ser resultado de um aparelho leitor distorcido: um Superego cruel, uma depressão.

Mas pode ser resultado de uma condição diante da qual estejamos impotentes, pelo menos temporariamente, como a pandemia, enquanto a vacina não vem.

Cabe ao psicanalista fazer a distinção, entender o processo que causa angústia, para torná-la cada vez mais sinal de que providências precisam ser tomadas. Tornar o cliente mais e mais dono de sua vida e de seus processos. Aumentar sua capacidade de resolver seus problemas.

A ansiedade é uma coisa curiosa: pode ser “do bem” (“estou ansioso pelas minhas férias”; “o melhor da festa é esperar por ela”); mas pode ser “do mal”, consequência de um caráter obsessivo perfeccionista que passou de giro e começou a mandar na nossa vida, um querer controlar tudo, resolver tudo com antecipação de anos... Essazinha aí precisa ser tratada.


sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

O AMIGO PERGUNTA - Como a psicanálise trata dos sonhos?

 



O AMIGO PERGUNTA

Como a psicanálise trata dos sonhos?

Francisco Daudt - Sonhos: uma esquisitice que intriga a humanidade desde sempre. Inúmeras tentativas foram feitas para entendê-los, com mais e menos racionalidade; um campo em que o pensamento mágico sempre imperou.

Freud os abordou com espírito científico: observou os mais típicos e os mais rudimentares, os sonhos infantis, alguns sonhos eróticos e os que davam um jeito de nos manter dormindo. 

1. Os infantis realizavam desejos frustrados, como ter ido para cama sem poder comer o doce da sobremesa (castigo da mãe) e se regalar com eles durante o sonho.

2. Alguns sonhos eróticos se parecem infantis: muito tesão na pessoa inalcançável/proibida, sonho erótico com ela, com direito a orgasmo. 

3. Sonhos de comodidade: a bexiga me pressiona para acordar, eu sonho que estou indo ao banheiro, procuro o banheiro, faço um pouco de xixi... e continuo dormindo. O meu predileto é o da ronda noturna: o médico de plantão tinha que fazer visita aos leitores da enfermaria no meio da madrugada.Ele sonha que acordou, se vestiu, fez as visitas de maneira minuciosa... e voltou pra cama.

Foi baseado nesses sonhos primitivos que Freud fez sua hipótese: os sonhos lidam com desejos impedidos durante a vigília. Eles “negociam” com os impedimentos (morais, do superego) e disfarçam os desejos mais complicados, como violência raivosa contra entes queridos: a cliente atormentada com o filho pequeno que chorava sem parar (mãe solteira, ainda por cima), sonhou que um ladrão entrou pela janela e matou o filho com uma machadada na cabeça.

Agora, interpretar sonhos não é coisa fácil. O próprio Freud abandonou o “Freud explica” de interpretações automáticas em favor de investigação cuidadosa feita a partir das associações livres do próprio paciente.

Ele concluiu que, se interpretasse o sonho usando seu conteúdo de memória, estaria pondo coisa dele na história do paciente, e isso conduziria ao erro. 

Os mamíferos sonham. Todos eles tem a fase REM do sono (rapid eyes moviments), que corresponde ao tempo em que os olhos acompanham os estímulos visuais do sonho. É possível ver os cachorros muitas vezes se mexendo e chorando durante o sono. O sonho parece ser um reboot mental estabilizador, feito para preservar o sono. Já o sono é o verdadeiro reboot do supercomplexo sistema cerebral, que se sobrecarrega e “fica lento” ao longo do dia. 

A ideia de dormir começa com “desligar o mundo externo”: descanso muscular, escuridão, temperatura confortável, silêncio. Os cinco sentidos não incomodam, o cérebro vai desligando. Todos os bichos procuram tocas e proteção para dormir (humanos inclusive), justamente pelo período de vulnerabilidade. A exceção são os topos das cadeias alimentares, com as baleias, que flutuam na posição vertical ao dormir, é bizarro. 

Na psicologia evolucionista está acontecendo um triste fenômeno, parecido com o que aconteceu com a psicanálise: o “Darwin explica”. As pessoas estão pirando na maionese com explicações ad hoc para tudo... Oh Lord....

O AMIGO PERGUNTA - Adrilles Jorge: “Caetano disse que seu tempo na prisão apagou sua atração sexual por homens. O meio influencia a orientação sexual das pessoas?”

 




O AMIGO PERGUNTA 

Adrilles Jorge: “Caetano disse que seu tempo na prisão apagou sua atração sexual por homens. O meio influencia a orientação sexual das pessoas?”

Francisco Daudt: Atenção que aí vai spoiler: a resposta é NÃO. Mas vamos aos argumentos, para que esse “não” seja melhor compreendido.

Motivação, meio e oportunidade. Cada ação humana precisa dessas três condições para acontecer. 

A orientação sexual habita o território da motivação. Ela só é conhecida pela pessoa (às vezes, nem tão conhecida assim). Para se transformar em ação, vai depender dos meios e oportunidades que se apresentarem.

É claro que a pergunta se refere ao meio, ao ambiente em que se vive, tanto que Caetano fala da cadeia, como meio inibidor/apagador de UMA orientação sexual dele.

Mas, como assim, UMA orientação? Existem outras? Na mesma pessoa?

Sim, existem. Vamos tomar o caso dos homens, porque suas orientações sexuais são mais fáceis de ler. Como nosso tesão é principalmente visual, a pergunta “para onde vão seus olhos?”, determina sempre a PRINCIPAL orientação sexual de um homem.

O relatório de Alfred Kinsey produziu uma escala de sete tipos (de 0 a 6) de acordo com a resposta dada à seguinte pergunta: você já teve orgasmo com outro homem? As respostas são: tipo 0/nunca ; tipo 1/raramente ; tipo 2/frequentemente ; tipo 3/equivalente ; tipo 4/principalmente ; tipo 5/quase que exclusivamente ; tipo 6/exclusivamente.

É claro, Kinsey era um taxonomista obsessivo, ele não poderia usar critérios subjetivos na pesquisa, eis porque escolheu o orgasmo partilhado.

Mas eu, em 45 anos de clínica, pude adaptar a pesquisa de Kinsey para outra pergunta, desta vez subjetiva: você já se sentiu atraído/teve tesão por outro homem?

Como resposta, a escala Kinsey quase que se repetiu; com a exceção do tipo 3: nunca encontrei um bissexual equivalente. Sempre houve uma predominância na orientação sexual, mesmo que o cara nunca tivesse encostado um dedo em outro homem. Ou numa mulher, pois já pesquisei a coisa em adolescentes virgens de interação erótica. Eles tinham abundante motivação, mas faltaram-lhes os meios e as oportunidades.

Voltando então à pergunta inicial: o meio em que se vive pode perfeitamente determinar a PRÁTICA sexual, mas não vai alterar a motivação, a orientação.

Suponha um tipo 1, hétero com eventual desejo homo. Para ele, é moleza cancelar sua prática homoerótica. Aliás, é o que mais acontece, basta ver a patrulha homofóbica da maior parte das turmas de amigos homens. A pequena sub-orientação de vez em quando vai dar um alô, mas ele a varrerá para debaixo do tapete.

Agora peque um tipo 4, homo com frequente desejo hétero. Faça ele se ordenar padre e ponha-o como professor de apetitosos petizes. Ah, o desejo hétero vai ser facilmente esquecido...

Resulta então que as orientações principais não mudarão, mas o meio em que se está vai pesar fortemente na balança custo/benefício, e vai determinar qual das orientações será levada à prática.

Psicanalista Francisco Daudt diz por que ativos se sentem superiores e passivos inseguros (Observatório G)

 Matéria original do Observatório G

 


sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

O “CONFIÔMETRO”



“Sem noção” veio aposentar a antiga “falta de desconfiômetro”, que designava o problema daquela pessoa desprovida de sensibilidade para perceber que não está agradando, que está invadindo, sendo inconveniente e inoportuna.

Mas... e o “confiômetro”, que ninguém fala nele? No entanto, ele é um poderoso e ativo aparelho cerebral que não desliga nunca. A confiança que temos em algo ou alguém está sempre sendo medida, mesmo que a gente não perceba. Como os papéis da bolsa, ou está em alta, ou estável, ou em queda... ou some completamente, pode reparar.

A mãe do cliente descobriu que ele andava cheirando cocaína e deu-lhe uma dura. Passou meses revistando suas coisas e armários. Um dia ele lhe disse: “Mas mãe, faz um tempão que eu nem chego perto!” E ela: “Ah, meu filho, quando a gente perde a confiança, leva um tempão para recuperar...”

Confiança. Do latim cum + fides, com fé, com crença, com crédito. Olha só a importância dela em nossas vidas: fiança, fiado, fiador, fiel/infiel, confidente, confidência/inconfidência, confiado/desconfiado etc. A lista é enorme.

Reputação é um bem precioso que depende totalmente da confiança. A coisa é tão séria que, diz o ditado americano, “a fama dura quinze minutos; a infâmia é para sempre”.

Esse negócio de “ponho a minha mão no fogo”, desculpe, mas é conversa fiada. É como diz a plaquinha na venda: “Fiado, só amanhã”. Ou como disse o marechal Floriano Peixoto: “É preciso confiar desconfiando”. 

“Fé cega” é um estado alterado da mente, maluquice própria de fanáticos,  que desejam a “morte aos infiéis”. Se você estivesse seguro de sua fé, por que haveria de desejar a morte de quem não crê? Mas... é como disse Beto Guedes: fé cega, faca amolada. É preciso muita amolação para se manter os olhos fechados à desconfiança, para se desligar o confiômetro.

Como era de se esperar, a confiança também é a base da boa psicanálise. Os clientes chegam me dando um “crédito de confiança”, pois fui indicado por alguém em que eles “botam fé”. Eles me dirão (ou não) coisas que nunca ousaram dizer para ninguém, ou até para si mesmos; tudo vai depender de mim e da confiança que neles despertar.

Claro, o contrato de confidencialidade que a psicanálise implica é base de tudo. E eu que esteja atento, pois a cada sessão a confiança está sendo posta à prova.

O psicanalista que chama de “resistência neurótica”, que desrespeita a desconfiança do paciente, está arruinando um dos mais preciosos instrumentos da nossa saúde mental: o confiômetro.

CONSCIÊNCIA DE SI – O APARELHO LEITOR



Há uma estranha espécie de macaco que sabe que existe. Não apenas sabe, mas sabe que sabe: o Homo Sapiens.

Você está lendo este texto, é capaz de olhar para dentro de si e pensar, “Eu sei que existo, que penso, que desejo, que sou pouco mais que um marionete de um DNA que vem se replicando sem interrupção há 3,4 bilhões de anos, feito por ele para tocá-lo adiante, cheio de softwares inatos que a ele servem, ainda por cima sei que vou morrer e ser esquecido, mas... eu tenho uma pequena margem de arbítrio sobre este meu tempo de vida, posso tentar algum sentido próprio para ela. Caramba, que bicho estranho sou eu!”

A consciência de si é mesmo muito estranha. Linæus, o cara que batizou nossa espécie, deve ter tirado o nome dela a partir de seu grupo de amigos intelectualizados. A capacidade de reflexão, de olhar para seus próprios pensamentos, não é – apesar do nome da espécie (o homem que sabe que sabe) – algo comum. Se Linæus fosse mais realista e fizesse uma pesquisa de campo, chamaria nossa espécie de Homerus Simpsonium.

Sim, Homer Simpson retrata a imensa maioria da humanidade de maneira mais fiel e crível. Nossa principal tendência é a reação e o imediatismo, não é a reflexão. 

Imagine um dos nossos ancestrais caçadores-coletores vendo um bando de amigos em desabalada correria, e parando para pensar: “Qual o sentido de se ficar correndo por aí? Por que as pessoas correm, afinal? Tenho eu vontade de correr ou não?”

Esse foi provavelmente devorado e não deixou descendentes. Os reativos da correria, sim. Eis porque eles são maioria.

Ainda assim, todos temos alguma capacidade de reflexão, alguma consciência de nós mesmos, Homer Simpson inclusive.

Mas aí entra a questão principal aqui tratada: como nós nos vemos? Quando alguém diz “eu tenho consciência de que a humanidade caminha para...”, faz isso a partir de um aparelho leitor, usando uma lente variável; não existe essa coisa de “ter visto a verdade definitiva”. A ciência nos ensina que o observador influencia o resultado da experiência, que dirá a leitura dos fatos.

Meu melhor exemplo é a depressão: a mente depressiva olha os fatos (e o destino) com a pior das lentes, com um viés catastrofista. Tudo vai dar errado, tudo está destinado ao fracasso, nada adianta, nós não valemos nada, não há graça no mundo.

Duas semanas de um antidepressivo moderno... e a lente muda. A realidade anterior deixa de ser... real. A consciência de si mesmo ganha uma nova perspectiva, a pessoa entende que ela estava ligada a um problema de hardware, ela se dá conta de que é preciso questionar o aparelho leitor que mora em nós.

Esta é a principal função da psicanálise: mudar o aparelho leitor com que nos vemos e nos julgamos. Permitir uma releitura de nossa história. Buscar justiça, nessa nova visão. 

E com isso, aumentar nosso arbítrio e construir melhor nossa realidade.

Natureza Humana: Raiva injusta



Desde que nascemos, a coisa mais difícil de se gerenciar (além do erotismo) é a raiva. A raiva nos surge em qualquer percepção de injustiça por nós sofrida, e ela é fundamental para que tenhamos força e motivação para corrigir essa injustiça. Sem indignação não há justiça, dessa forma podemos dizer que A RAIVA É MÃE DA JUSTIÇA.


A justiça, por sua vez, vem da avaliação do tipo de troca que estabelecemos com o mundo, e que o mundo estabelece conosco. Se a troca é justa, é acertada, é equivalente, sentimos paz. Se nos tiram, nos subtraem, nos abusam, sentimos raiva. E a raiva busca um acerto de contas, ou seja, justiça. Isso não é aprendido, nasce com a gente.


Uma criança opera sua raiva de forma... infantil: sai batendo, sai gritando, sai chorando, muito devido à sua impotência frente à raiva. Cedo a cultura (i.e., o Superego) lhe ensina que isso é errado. Mas não lhe ensina o que fazer para operar sua raiva de maneira civilizada em busca de justiça. A principal função do Estado, desde que foi inventado após a revolução agrícola, há uns onze mil anos, é exatamente a de mediador de conflitos e promovedor de justiça. O cidadão abre mão do uso da violência em causa própria e entrega ao Estado (a quem sustenta com seus impostos) a mediação de seus conflitos, sua segurança contra o crime e a predação,  a promoção de justiça, enfim. 


Haveria dois lugares onde o gerenciamento da raiva deveria ser ensinado: a casa e a escola. Infelizmente, tal não acontece, nem em uma, nem em outra. Ambas se reúnem para reprimir a raiva, mostrá-la como algo feio e errado, algo a ser suprimido, a ser substituído pela “bondade”. O resultado é isso que vemos: doença neurótica obsessiva, ou transgressão sadomasoquista. A obsessividade funciona sobre dois eixos: pureza e controle. A principal “pureza” que o obsessivo busca é a ausência de maus sentimentos, do rancor, da vingança, da maldade. Seu ideal de controle serve aos mesmos propósitos de busca de pureza: arrumação, pontualidade, higiene e limpeza exageradas, um mundo perfeito de ordem e de paz. Quanto mais raiva a reprimir, mais rejuntes de azulejos a serem limpados com cotonete, mais quadros tortos a acertar. Mas… a injustiça que causou aquelas raivas continua sem ser corrigida.


O sadomasoquismo é também ineficiente. Primeiro porque ele é deslocado: um menino que tortura animaizinhos não está corrigindo a injustiça original, está é arranjando mais encrenca para si mesmo. Depois porque ele vicia, a criança fica apegada a seus jogos malvados (o bullying é um exemplo típico), sendo ativamente cruel, e assim repassando a crueldade que sofreu, perpetuando a injustiça. Quem não se lembra do “passa adiante, se não vira elefante”? O aluno da carteira de trás dava um cascudo no da frente, e o da frente, em vez de corrigir o malfeito, tornava-se malfeitor também.


Mas nem toda raiva é fruto de um clamor justo: há raivas injustas. A mais típica é a inveja. Se fulano tem um carro melhor do que o meu, não é justo que eu acredite que ele está me sacaneando por isso… apesar de o sentimento ser esse. Esta é a principal dificuldade para se chegar a um bom conceito de justiça social, por exemplo: ela é frequentemente concebida como uma igualdade de posses, em vez de se pensar em igualdade de oportunidades, e em igualdade frente às leis, essas sim, os pilares da democracia.

Já os ciúmes, apesar de poderem ser clamor injusto, muitas vezes são raiva justa: se uma criança é completamente negligenciada pelos pais porque nasceu um bebê novo na casa, ela está coberta de razão para sentir raiva da situação.


Meu ponto aqui é que nem toda raiva é coisa feia a ser reprimida, e pode ser olhada com a seguinte pergunta interna: “onde estou sendo injustiçado, e o que posso fazer para corrigir isso?”; mas também que nem toda raiva contém um clamor indiscutível de justiça.