domingo, 18 de julho de 2021

SUICÍDIO E GENÉTICA - O AMIGO PERGUNTA

 



De Helena Flávia de Rezende Castelo Branco: “Há muitos casos em algumas famílias. Existe genética para suicídio?”

Francisco Daudt: Helena, não existe hereditariedade para o suicídio, mas… existe para depressão. E para piorar, existem os modelos familiares de identificação, “ah, meu irmão se matou, então…”.

Vamos no ainda pior: o sentimento de culpa face ao suicídio pode ser devastador, e detonador de depressão (se houver gatilho genético, mais ainda). O familiar sobrevivente se sente indigno de ser feliz, e às vezes indigno de viver.

O suicídio pode ser contagioso: quando Goethe publicou “Os sofrimentos do jovem Werther”, no século XVIl, houve uma epidemia de suicídios entre jovens.

O mesmo se deu em várias outras ocasiões, p.ex. quando Rodolfo Valentino morreu e várias “viúvas” não puderam tolerar um mundo sem ele. A imprensa é extremamente cuidadosa sobre o assunto por causa disso.

Pois é: até o modismo influencia suicídios.




SEIS GRAUS DE SEPARAÇÃO

 


A teoria dos seis graus de separação originou-se a partir de um estudo científico desenvolvido pelo psicólogo Stanley Milgram[1], que criou a teoria de que, no mundo, são necessários no máximo seis laços de amizade para que duas pessoas quaisquer estejam ligadas.

Exemplo: eu conheci o engenheiro Eduardo Pederneiras (à esquerda), tio de um amigo de infância. Ele construiu a “Encantada”, casa de Santos Dumont em Petrópolis. E esteve presente à inauguração da Ponte Alexandre lll em Paris. Por causa disso, tenho dois graus de separação, tanto do Santos Dumont, quanto do Czar Nicolau ll, aquele que foi morto pelos bolcheviques.




“Por que mesmo pessoas jovens que ainda não procriaram se suicidam?” - O AMIGO PERGUNTA

 


O PONTO DE VISTA DOS GENES

“Por que mesmo pessoas jovens que ainda não procriaram se suicidam?”

Francisco Daudt: Porque a evolução criou um animal estranho, o único que sabe que vai morrer. O suicida não deseja morrer, ele deseja que seu sofrimento acabe, e vê a morte como um fim de seu tormento. O custo é alto, mas o benefício, a seus olhos, é maior.

Se o psicanalista puder mostrar-lhe alternativas que acabem com o sofrimento, ele quererá viver.






“Por que nós morremos?” - O AMIGO PERGUNTA


O PONTO DE VISTA DOS GENES

“Por que nós morremos?”

Francisco Daudt: Porque nos tornamos descartáveis, uma vez que os genes foram passados à geração seguinte.

Como as efêmeras (ephemeroptera, o bichinho voador), que duram apenas UM DIA em sua forma adulta, o suficiente para alçarem voo, acasalarem e desovarem. O ciclo completo (ovo, larva, pupa, adulta) leva um ano.

P.S. Infelizmente, mesmo que não tenhamos passado os genes adiante, a biologia nos programou para morrer do mesmo jeito…




 

BIOLOGIA É DESTINO? - O AMIGO PERGUNTA

 


“Quando Freud disse que biologia era destino, ele estava se referindo às diferenças anatômicas entre os sexos, certo?”

Francisco Daudt: Sim, e ao implícito medo da castração. Mas ameaçar meninos de castração saiu de moda – por causa do próprio Freud –, de modo que a metáfora meio que se perdeu.

Mas a psicologia evolucionista diz a mesma coisa, que a biologia molda de maneira desigual o cérebro de homens e mulheres, baseada em duas básicas diferenças:

1. Mulheres engravidam; homens não. Portanto, o homem pode engravidá-la e fugir; a mulher não. Mas as mulheres têm certeza de que o filho é delas, e os homens não.

2. O bebê humano é, por anos, totalmente dependente de cuidados.

Por causa dessas dessas singularidades biológicas, as mulheres precisarão de muito auxílio do pai para cuidar dos filhos (a nossa é a ÚNICA espécie de mamífero com investimento paterno)… e o pai precisa ser convencido de que o filho é dele, para fazer esse investimento.

Por isso, homens sentem pressão de se afirmar como fortes e machos; mulheres sentem pressão de se mostrar fiéis. Homens temem a fama de femininos; mulheres temem a fama de promíscuas.

Isso é o “fator biologia” em nossas vidas…




A IRRITABILIDADE COMO SINTOMA


Notou que anda com vontade de matar as pessoas? Está puxando briga com o pipoqueiro? O rosto esquenta a cada besteira que ouve? Eu sei, eu sei, atualmente, não faltam motivos para se irritar, mas…

Duas coisas devem ser consideradas como causa da irritabilidade fora de padrão: hipertensão e depressão. Parecem antíteses, mas uma é arterial e a outra psíquica. E não são excludentes, você pode ter as duas.

A irritabilidade é o sintoma mais despercebido dessas doenças. Já perdi pacientes na entrevista por causa da hipertensão arterial; depois da entrevista, usei neles meu aparelho de pressão… e lá estava: pressão alta. Eu lhes dizia que fossem ao médico para tratá-la; caso a irritabilidade se mantivesse, que voltassem a mim.

Poucos voltaram…



REFLEXIVOS E REATIVOS

 



Homer Simpson, depois de verificar no freezer que cinco embalagens de sorvete Napolitano estavam sem o chocolate (mas com o morango e o creme intactos), gritou: “Margie! Precisamos de mais Napolitano!”

“Não tire os outros por você; eles são diferentes”. Esta poderia ser a primeira lição a ser aprendida por um psicanalista.

Como funciona a mente de uma pessoa principalmente reativa, com muito pouca capacidade de reflexão? Como fazer para que ela possa desenvolver sua reflexividade embrionária?

O sapiens, apesar do nome, é principalmente reativo: condições-limite de sobrevivência sempre o levaram a correr antes e pensar depois. Essa coisa de sentar-se calmamente na Ágora e filosofar é coisa muito nova, de uns 2.400 anos para cá.

Mas a angústia – e a falta dela – é a chave que liga a reatividade: se não pressionarmos a pessoa, se respeitarmos seu tempo, abriremos espaço para que seu software reflexivo entre em ação.

Numa entrevista, me perguntaram se há chances para uma terceira via, “responda simplesmente sim ou não”. Disse-lhe, “responda simplesmente sim ou não: você continua batendo na sua mulher?” “Sim… quer dizer, não… err… mas eu nunca…”

Pois é, cara, tá vendo? A reatividade é simplória. Meu negócio é a complexidade. Não me pressione, e eu serei o que gosto de ser: reflexivo.



BISSEXUALIDADE - O AMIGO PERGUNTA

 


“Os bissexuais existem mesmo, ou são gays disfarçados?”

Francisco Daudt: Existem sim, mas não em orientações de mesma intensidade. O famoso Relatório Kinsey sobre sexualidade (EUA, 1948) descrevia o espectro de orientações sexuais de zero (hétero total) a seis (homo total), em que o tipo 3 seria o bissexual em partes iguais.

Acontece que Kinsey era um taxonomista obsessivo, e nunca iria se pautar por critérios subjetivos tais como desejo. Seu questionário perguntava: “já teve orgasmo com homem? Com mulher? Com que frequência”. Ora, quem respondeu que a frequência homem/mulher era idêntica foi registrado como tipo 3, o suposto bissexual perfeito.

O que se vê em consultório, o reino da pesquisa subjetiva, é que a pessoa nasce “falando uma língua”, e pode ou não, ao longo da vida, aprender uma “segunda língua”. Ora, um brasileiro que aprendeu inglês não deixa de ser brasileiro por isso.

Da mesma forma, haverá o nascido hétero que aprende a “falar homo”, e vice-versa. Sendo que o vice-versa é muito mais comum, já que as pressões sociais são todas para a pessoa aprender a “linguagem hétero”.

No entanto, mesmo na atividade eventual ou rara, um gay pode ter grande prazer em relações hétero, e vice-versa, o que jamais implicará uma “conversão”.

Como então se avalia a “língua nativa” de alguém? No caso dos homens, é fácil, basta que ele responda a pergunta: “para onde vão seus olhos?” Como o tesão masculino é principalmente visual, os olhos serão atraídos com mais frequência pela sua orientação principal.

A relevância da questão inicial é que, até recentemente (isso tem mudado, com a liberação dos costumes), o sintoma de dúvida obsessiva mais comum entre os homens era: “será que, no fundo, eu não sou gay?” Isso acontece porque os obsessivos são, digamos assim, obcecados com pureza: se em algum momento eles deram uma conferida no pau dos outros, “ah, então… aí tem coisa!”

De volta ao Kinsey, e referendado pelo consultório, o que acontece é que a possibilidade de desejo homoerótico num hétero de nascença é mais frequente do que se pensa, daí a homofobia ser tão comum: o medo de dentro se projeta para fora, sob a forma de ódio. Os héteros absolutos não são homofóbicos, a coisa não é nem um assunto, eles não estão nem aí…




CIÊNCIAS EXATAS: HERANÇA ISLÂMICA?

 



Venho escutando esse papo de que devemos aos árabes a matemática, a astronomia e todas as ciências exatas, inclusive os algarismos que usamos se chamam "arábicos", e aposentaram os romanos por sua praticidade. Mas sempre desconfiei da história dele. Consultei meu pesquisador favorito, o advogado brasileiro Hamilton de Freitas, que mora no Porto, Portugal. Abaixo, o resultado de sua pesquisa:

"É besteirol. Os gregos e os hindus fizeram todo o trabalho. Os árabes, na expansão pós-Maomé, em meio aos saques, massacres e catequeses pela espada, pegaram obras, compilaram, traduziram para o árabe. A maioria dos intelectuais que fez esse tipo de descoberta e difusão foi perseguida. Nem os algarismos eles inventaram. Foram os hindus. Os algarismos que HOJE todo o mundo usa (MENOS OS ÁRABES) foi criado por um italiano: o Fibonacci..."



domingo, 4 de julho de 2021

TRANSGRESSÃO E MUDANÇA DE COSTUMES - O AMIGO PERGUNTA

 


TRANSGRESSÃO E MUDANÇA DE COSTUMES
De Adrilles Jorge: “Como distinguir  na “ perversão “ um avanço ou um problema pra civilização ? A civilização nasce da renúncia em alguma medida do desejo , certo ? Como um psicanalista diz a um paciente o que é lícito ou não moralmente dentro da regra social  do seu tempo ? Um pedófilo pode argumentar que tirar a camisa na praia já foi um atentado ao pudor como fazer sexo com criança . Um psicanalista deve se abster de juízos morais sempre ?”

Francisco Daudt: Vamos lá, que a pergunta é complexa. Primeiramente, um reparo: a perversão é uma doença estabelecida, com compulsão, repetição, aluguél mental etc. 

O que eu afirmei ser transformador dos costumes é a transgressão não compulsiva, que se rebela contra regras e costumes que parecem injustos.

Civilização vem de “civis”, aquele que vive na cidade, o cidadão. A cidade surgiu com a agropecuária, há dez mil anos. Com ela, veio uma novidade para a espécie: a convivência com estranhos. Até então, o caçador-coletor vivia em tribos onde todos se conheciam… e todos se vigiavam, para restringir a predação e estimular a cooperação. 

Conviver com estranhos requereu leis, e um governo com monopólio da violência para impô-las. Essas leis derivavam do ethos (a ética, o não causar danos) e do morus (a moral, que contempla os costumes não danosos), e deveriam fazer o que a vigilância da tribo fazia outrora: restringir a predação. Só. Infelizmente, o estímulo à cooperação ficou como a nossa maior perda, na transição.

Esta perda da cooperação estimulada é a principal causa do “mal-estar na civilização”, pois que a vigilância para contenção dos predadores sempre existiu. A dupla anterior era “coibição do vício com estímulo à virtude”; passou apenas a coibição do vício.

Para agravar a coisa, a forma de governo mais “natural” é a tirania: dê muito poder a alguém, e haverá abuso, opressão. Como resultado, o mal-estar era maior, pois as proibições eram tirânicas e atendiam principalmente ao… tirano.

Há 2.400 anos, surgiu uma esquisitice: a democracia. Ela pretendia que as leis surgissem da conversa e do convencimento (parlar, parlamento), e não da simples vontade do governante. Isso gerou leis mutáveis e mais respeitosas com as pessoas. Houve significativa diminuição do mal-estar.

A psicanálise, se quiser ser curativa das doenças e das perversões, não tem saída senão ser engajada na ideologia democrática. Ela própria é uma terapia da palavra, do parlar, do parlamento, do convencimento… e não da tirania.

Ela precisa defender a democracia interna da mente: não haverá tirania; nem do Id, nem do Superego. Eles precisam se conhecer e conversar entre si, para que o Ego exista, e não fique massacrado entre as duas potestades.

Todas, e eu repito, TODAS as doenças vêm da tirania mental, uma instância em guerra de poder sobre as outras, e o Ego (eu, você) no meio, sofrido (nas neuroses) ou abduzido (nas perversões).

Quem aparece no consultório é o Ego sofrido. Ninguém vai se tratar sem conflito íntimo. A pessoa pode até ter perversões, mas não está confortável com elas. Portanto, o psicanalista não precisará ser juiz, nem censor, nem acusador, nem repressor. 

Ele pode exercer bem seu papel de advogado de defesa de seus clientes, para entender seu sofrimento, sua prisão, sua opressão.


“Por que o alcoolismo é considerado doença?” - O AMIGO PERGUNTA

 


De Marta Krieger: “Por que o alcoolismo é considerado doença?”

Francisco Daudt: Vamos lá. O alcoolismo preenche as características que definem uma doença psíquica, a saber: 

compulsão (é mais forte que a pessoa), 
repetição (ocorre todos os dias),
grande aluguel mental (a pessoa só pensa “naquilo”)
redução da capacidade, da liberdade (a pessoa se torna prisioneira),
deterioração/decadência psíquica (e física), 
satisfação imediatista, mas com dano de médio/longo prazo 
(no caso do alcoolismo, além de perda de emprego, acidentes de carro, abusos domésticos, leva a outras doenças e a eventual morte).




VÍCIO OU DOENÇA? - O AMIGO PERGUNTA


VÍCIO OU DOENÇA?
“Você fica falando em vício, mas o alcoolismo não é vício, é doença, certo?”

Francisco Daudt: Os dois, doença e vício. É verdade que, como o vício tem má fama, há quem se ofenda com o termo. Cabe esclarecimento, pois.

O vício é um tipo de doença muito particular. Não se pode fazer nada diante da Covid (exceto a prevenção) ou da apendicite: delas seremos sempre passivos. 

Já com o vício, não: ele contém uma fração de arbítrio, de escolha nossa, ainda que pequena, sobretudo depois de instalado. Ele é uma doença que relutamos em reconhecer como nossa (é muito mais fácil vê-la nos outros).

Tanto que, para combatê-la, é necessário admitir-se portador, é indispensável tomar para si o gerenciamento de sua cura, é mandatório deliberar a cada dia se vamos investir nela ou dela nos afastar.
Essa é a diferença.



 

VÍCIOS E SEUS GANHOS - O AMIGO PERGUNTA

 


VÍCIOS E SEUS GANHOS

“Eu entendo o ganho de prazer em vários vícios comportamentais, mas… qual é o ganho do masoquismo?”

Francisco Daudt: Bem, no masoquismo sexual ele é óbvio: o castigo e a dor liberam da culpa e permitem o gozo. Há uma “satisfação ao superego”, um pedágio pago.

Já no masoquismo sutil, muito comum nas relações familiares (casais, pais e filhos) e no trabalho (assédio moral), há ganhos também sutis:

1. a nobreza do martírio: a cultura judaico-cristã enobrece o sacrifício (o feito sagrado), por aí a pessoa pode se sentir intimamente engrandecida, moralmente superior.

2. A vingança sutil: ao aparecer como a vítima sofredora, o agressor será visto – pelos outros – como um canalha.

3. O culto do coitadismo: ao enaltecer seu sofrimento, a pessoa pode pleitear ganhos indenizatórios. Essa modalidade tem se tornado uma política de grupos minoritários, atualmente. Apesar de haver justiça na base dessa luta, a linha que divide o uso do abuso, o pleito justo e a ambição de se tornar opressor, é também sutil.

4. Mas é preciso lembrar que o primeiro ganho desse masoquismo é ter-se evitado o confronto: por medo, ou pela culpa de se ter raiva de alguém muito importante para nossa sobrevivência (um pai, um patrão et al.)

É por isso que a psicanálise vê o combo sadomasoquismo nunca separado em dois grupos estanques: a pessoa pode ser manifestadamente sádica e sutilmente masoquista… e vice-versa.



“Como se tratam os vícios? Têm cura?” - O AMIGO PERGUNTA

 


VÍCIOS 2

“Como se tratam os vícios? Têm cura?”

Francisco Daudt: Vício não tem cura, mas… pode-se viver muito bem sem eles.

É preciso saber que a predisposição ao vício de substâncias é genética. Os filhos devem ser avisados de que herdaram o gatilho, que se cuidem bem.

Uma senhora de setenta anos quis se divorciar: “Meu marido é alcoólatra e me bate”. “Quantos anos a sra. tem de casada?”. “Cinquenta”. O marido, filho de alcoólatras, passou a vida evitando o álcool. Aposentado, foi convencido pelos amigos que “agora ele podia se dar a esse direito”. Desenvolveu alcoolismo em dois anos…

Seja de substâncias, seja de comportamento, os vícios são tratados com um princípio geral (reconhecimento de se ter a doença, para poder gerenciá-la) e duas estratégias básicas: desinvestimento/abstinência do vício; investimento nas virtudes.

Sobre o princípio geral: não adianta acusar, nem vigiar, nem punir; se a própria pessoa não se reconhece dominada pela doença, nada, NADA vai adiantar. Nem vergonha, nem culpa, nem internação, nem remédios. Nada. A pessoa precisa ser a gerente de seu vício, da busca de sua cura, é sua única chance.

Sobre as estratégias: reconhecida a doença, vem a pergunta: que perspectivas de vida virtuosa (ética, bela, construtiva, autônoma, independente) tem a pessoa? É preciso que as haja. Se não estiverem à vista, é preciso buscá-las.

A saída de um vício deixa um buraco na alma, uma falta de sentido, um vazio social/afetivo, pois que os cúmplices se parecem muito com amigos. É necessária a substituição de uma coisa por outra; outros círculos sociais, outras companhias, outras amizades que não se baseiem no vício.

A abstinência: todo viciado em substância passa um tempo verificando se realmente tem que ir para o “substância-zero”, ou se pode “usar um pouquinho”. Ele próprio precisará descobrir a resposta, mesmo que na enorme maioria das vezes o “substância-zero” seja o destino.

Já no caso dos vícios comportamentais, a abstinência é mais difícil. Como todos eles se baseiam numa ilusão de superioridade, numa crença na ideologia fodão/merda, numa tentação de se sentir fodão a cada momento, o cultivo da virtude precisa ser simultâneo. Que virtude? A humildade. O saber-se falho, o aceitar-se incompleto. O apreciar-se em construção. O ter metas de se fazer melhor (melhor, veja bem; não “superior”).

O papel do psicanalista: nunca acusar, nunca humilhar, nunca culpar. Apoiar a luta, ser seu parceiro, descobrir capacidades e potenciais virtuosos do cliente. Entender e investigar as circunstâncias históricas e as circunstâncias-gatilho.

Mostrar como seu cliente foi envolvido e seduzido por elas. Ajudá-lo a identificá-las e previni-las.



“O vício é falta de vergonha na cara?” - O AMIGO PERGUNTA

 


VÍCIOS

“O vício é falta de vergonha na cara?”

Francisco Daudt: Não é. O vício é uma doença, e a tentativa de fazer com que a pessoa o abandone através do sentimento de culpa ou de vergonha é o maior tiro no pé que se pode dar. A culpa/vergonha são tão incomodas, que levam o viciado a eliminá-las… com mais uma dose.

Chama-se de vício à repetição compulsiva (“mais forte do que eu”) de algum ato que dá satisfação imediata, mas que se sabe errado, ou prejudicial aos nossos principais interesses. Quando há uma momentânea restrição interna, a pessoa diz, “ah, foda-se, vou fazer!”.

Há os vícios óbvios de substâncias que dão prazer imediato, e infelizmente entre elas estão os carboidratos. O que separa o uso do abuso, o hábito do vício, é o dano (daí o “dane-se”) aos principais interesses da pessoa.

E há os vícios comportamentais, como a hipocondria, a cleptomania, e o mais comum de todos: o fodão/merda.

O f&m é uma variante sutil do sadomasoquismo. É curioso, porque enquanto o sadomasoquismo, aquele sexual das botas e chicotes, é bem raro, já esses maltratos entre casais, com um humilhando o outro em público (em privado também, claro), são muito frequentes.

Eu os tomo como o exemplo mais claro do jogo fodão/merda: um parceiro, inseguro em sua autoestima, intimamente se achando um merda, encontra alívio momentâneo posando de fodão ao humilhar o outro, ao dizer que “merda é ele”.

Mas esse comportamento não se restringe aos casais. De jeito nenhum, ele é a praga psicológica que mais se espalha na atualidade. A compulsão de apontar os defeitos dos outros para se engrandecer, para obter alívio de sua condição de merda, atinge até presidentes da república: pense no Donald Trump…