quarta-feira, 26 de maio de 2021

Calos - A NATUREZA FALA

 


Os calos são um bom exemplo de conversa entre natureza e cultura. Nosso DNA instalou no corpo um programa para engrossar a pele como resposta ao atrito repetido. Assim se formam os calos. 
Sabendo disso, quem não gosta de ter calos nos pés (natureza) escolhe sapatos mais confortáveis (cultura).

(Do livro de David Buss, “Evolutionary Psychology - the new science of the mind”).



 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD




“GASLIGHTING”

 



O termo “gaslighting” (“manipulação psicológica”) vem sendo usado quando alguém sofre um processo de desnorteamento/enlouquecimento proposital promovido por outros, necessariamente pessoas próximas.

Ele saiu do título de um filme (“Gaslight” / “À meia-luz”, George Cukor, 1944) em que a heroína sofre uma manipulação psicológica feita pelo marido para que ela deixe de acreditar em suas percepções e comece a achar que enlouqueceu.

Infelizmente, existe na vida real. Acompanhei um caso em que minha cliente ouvia de sua família insinuações, comunicações cifradas, alusões, indiretas, sarcasmos, falas a terceiros na sua frente que pareciam se referir a ela. Quando tentava esclarecer as coisas, era ridicularizada, “é tudo da sua cabeça, ninguém estava falando de você”, “não se pode brincar mais com você?”, “tá maluca?”, “que paranoia” etc.

Deu um trabalho detetivesco enorme, recolhendo manifestações mais consistentes, evidências esparsas, até que delineássemos o processo sádico de gaslighting que ela sofria.

A segunda parte foi fazer com que ela visse que havia se metido num vício sadomasoquista com eles, e que ela acabava estimulando o bullying na medida em que se encolhia (a lei do bullying é “quem se encolhe apanha mais”).

Quando ela começou a não entrar no jogo, a cuidar mais de sua vida, a síndrome de abstinência atingiu seus familiares (“Como assim? Ela vai deixar de ser a louca da família?”), eles se tornaram mais agressivos e evidentes, fazendo-a ver que não podia confiar mais neles.

Isso lhe deu sentimentos ambivalentes: alívio, pois viu que não estava louca; mas também grande tristeza e um luto pela perda do investimento afetivo que tinha neles.

Por mais duro que seja, é melhor ver o câncer, ou ele não será tratado.



 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD



REPRESENTAÇÃO PSÍQUICA: A LUA, E COMO A VEMOS


A princesinha queria a lua de presente. O rei seu pai nunca lhe havia negado nada, mas dessa vez... Chamou os sábios da corte. “Impossível”, disseram-lhe eles, “ela é enorme e distante”.

Mas o bobo da corte foi perguntar à princesa: “Como é a lua?”
“Ai, bobo, como você é bobo! Todo mundo sabe que a lua é uma medalha de ouro colada no céu! É só ir lá e pegar!”

O rei ficou feliz, e numa noite sem lua a princesinha ganhou seu presente, a lua de ouro presa a uma correntinha.

Mas no dia seguinte a pergunta apareceu: e quando a lua ressurgir no céu? Convocados, os sábios deram sugestões inviáveis: “uma cortina de veludo negro cercando o palácio!” “Fogos de artifício todas as noites, daqui por diante!”

Debalde. Na noite seguinte, a lua nova despontava, o rei se atormentava, e o bobo foi perguntar à princesinha: “Mas você está com a lua, como é que ela reaparece no céu?”

“Ai, bobo, como você é bobo! Todo mundo sabe que a lua é como a unha: você corta e ela nasce de novo. Não está vendo a unhinha já crescendo?”

Esse bobo da corte é o meu psicanalista favorito: ele não tira onda de sabichão, ele não interpreta; quer saber o que o cliente vê, quer se pôr na pele dele para entender seu ponto de vista, sua representação psíquica das coisas.



 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD



 

O DESEJO E O MÉTODO MICHELÂNGELO DE ESCULPIR - O AMIGO PERGUNTA

 


“Como se aprende a conhecer o próprio desejo?”

Francisco Daudt: Começando pela definição de desejo, em psicanálise: ele vai além daquela coisa de grávida de comer doce de leite com pimenta. O desejo é o jeito singular de como a vida moldou nosso impulso animal de buscar prazer.

O que você está lendo aqui, portanto, é uma expressão do meu desejo: eu tenho prazer na escrita e tenho prazer de imaginar a apreciação do leitor.

E o Michelângelo? Conta-se que perguntaram a ele como havia conseguido esculpir o Davi. “Bem, eu vi o cubo de mármore, sabia que o Davi estava dentro, e fui tirando as sobras”, foi sua resposta.

De fato, para aprender sobre o próprio desejo, é muito mais fácil eliminar o que não é do que saber direto o que é.“Que faculdade eu vou escolher? Matemática? Nem pensar, eu me interesso mais por humanas”, e assim por diante.

Foi como eu me tornei psicanalista. E como sei que isso se encaixa no meu desejo? É simples: porque tenho prazer na profissão.

Há perguntas-chave nesse processo: “Eu quero? Ou eu tenho quê...?” O treino na autoconsulta servirá como bússola.

Mas, e aquele cliente que disse ser a vingança o que o motivava na vida? A vingança era o desejo dele?

Não. A vingança era a doença do desejo dele. Ele era prisioneiro de uma busca compulsiva (quer dizer “mais forte do que ele”) pela vingança. O desejo legítimo não aprisiona, a doença e o vício sim.

Mas a vingança era, ainda que vício, um distante representante de seu desejo. Como a vingança é uma forma primitiva de justiça, ele tinha, de fato, desejo legítimo de justiça.

Quando entendemos a injustiça original que o aprisionava, aquela lasca de pedra foi jogada fora.

Não era o Davi.




 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD


FREUD ENCONTRA DARWIN (subtítulo do meu livro “Natureza Humana 2”)



Freud baseou sua teoria dos impulsos na de Darwin: o que nos guia é sobrevivência e sexo; busca de prazer e evitação de desprazer.

O Eros de Freud é uma síntese do desejo sexual com o zelo de sobrevivência. A história do Impulso de Morte é mais complicada (e tardia, na obra freudiana, muito influenciada pela 1ª Grande Guerra).




 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD



 

“Como a psicologia evolucionista contribui para a psicanálise?” - A NATUREZA FALA

 


“Como a psicologia evolucionista contribui para a psicanálise?”

Francisco Daudt: Porque ela é de esplêndida ajuda para se entender como a mente funciona.

Há, nas ciências humanas, a tendência forte a ver o ser humano como um produto exclusivo da cultura, como se nascêssemos uma página em branco (tábula rasa) onde o meio iria escrever tudo o que somos.

A proposta da psicologia evolucionista é mostrar como o nosso lado “bicho” opera em nós, e como ele interage com a cultura (em inglês, “nature and nurture”).

Espinoza disse que a liberdade consiste em conhecer os cordéis que nos manipulam. A psicanálise visa aumentar nossa margem de liberdade de escolhas (já que o “livre arbítrio” não é tão livre assim). Ela contempla os cordéis da nossa criação, os embaraços e enredos de quem nos criou, e como ficamos enrolados neles.

Mas isso não é suficiente. A psicologia evolucionista estuda os cordéis genéticos, a influência da natureza.
Precisamos conhecê-los. Um exemplo forte? Homens e mulheres têm naturezas diferentes, a seleção natural desenvolveu neles comportamentos especializados, só porque mulheres engravidam e homens não.

Dificilmente alguém das humanas dirá que o fato de a gravidez ser exclusiva das mulheres é uma determinação cultural, e não genética. A partir desse exemplo simples, podemos aprofundar o estudo de como a natureza influencia nosso comportamento, nossas alegrias e nossos problemas.

Começo aqui uma série nova, sobre psicologia evolucionista: A NATUREZA FALA. São pequenos exemplos tirados do meu livro de referência sobre o assunto: “Evolutionary Psychology - the new science of the mind”, de David Buss. (David Buss é o “cara”!).

A foto na capa do livro é do jovem Charles Darwin.



 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD



LEANDRO KONDER, UM COMUNISTA GENTIL

 



Só não era um aristocrata porque não pretendia comandar nada (aristocracia significa o comando dos melhores), nem carro dirigia, mas foi um dos melhores seres humanos que tive a ventura de conhecer.

Há coisas muito boas que vêm com o casamento. Meus dois filhos encabeçam a lista, claro, mas esse amigo da mãe deles seguramente não está longe.

Entre 1986 e 1989 foi nossa rotina passar as noites de sábado imersos na atmosfera inteligente e acolhedora de sua casa, aberta aos amigos comunistas, entre jornalistas e professores, todos a debater com a costumeira ferocidade, enquanto ele aguardava uma brecha para intervir com uma palavra sábia de lucidez desapaixonada.

Era interrompido, claro, e se calava, esperando uma nova chance de ser ouvido. Eu ali, um estranho no ninho, democrata liberal que desistiu de se meter na conversa depois que ousei dizer que o PRI (Partido Republicano Institucional do México, que já se mantinha no poder havia sessenta anos) era uma ditadura disfarçada, só para ser rechaçado por um jornalista que me calou para sempre com um “Não é!” furibundo. Tornado espectador, aprendi muito sobre dialética. Da rasa e da complexa.

Meu comunista querido era o oposto da definição que José Serra fez do PT, “o bolchevismo sem utopia”, diabo de frase que me tomou uns minutos para entender (“o poder totalitário sem idealismo”).

Ele era um utópico sem tirania. Seu ídolo era o francês do século 19, pai do socialismo utópico, Charles Fourier. Já havia se afastado do “socialismo real” quando Khrushchev denunciou Stalin e seus “malfeitos”. Migrou para o eurocomunismo. Aderiu ao PT até o mensalão vir à tona, quando foi para o PSOL. Ainda bem que morreu sem se dar conta do petrolão…

Não santificava o proletariado, o que ficou claro quando me mostrou orgulhoso um bilhete crítico de seu filho de cinco anos sobre a empregada: “Pai, a Creuza é bura”, e rimos juntos da inteligência do menino, a despeito do “burra” com um “r” só (ou por isso também).

Foi responsável pelo primeiro artigo que escrevi, que ele fez publicar na revista do partidão, “Novos Rumos”, vejam vocês! Eu havia argumentado que a AIDS era talvez a primeira praga que derrotava a tendência histórica de arranjar culpados para explicá-la (no final dos anos 1980 já se sabia que ela não era um castigo contra os gays). “Você tem que escrever isso”, incentivou-me. Foi assim que partejou este escriba.

Partilhava comigo a desdita dos professores que odeiam os olhos vácuos dos alunos. “Francisco, eu sou uma prostituta, faço qualquer coisa em classe para despertar o brilho neles”. Há inúmeros depoimentos do fascínio que suas aulas despertavam.

Revisou com carinho meu primeiro livro (“A Criação Original”), e fez-me um elogio inesquecível: “Você escreveu a versão psicanalítica de ‘A democracia como valor universal’ (livro muito valorizado de Carlos Nelson Coutinho).” Como se não bastasse, enviou um exemplar a seu amigo Paulo Francis, que me deixou nas nuvens ao escrever em sua coluna, “afinal um psicanalista que escreve limpo”.

Há um verbete no dicionário feito para ele: “indivíduo cujos atos e maneiras demonstram fidalguia e distinção de sentimentos; elegante; garboso; formoso; bem apessoado”. O verbete: gentleman. Obrigado para sempre, querido Leandro Konder.

(E ainda por cima não era só bonito de coração).



 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD



“CONTRA ARGUMENTOS, NÃO HÁ FATOS”

 



Aqui vai minha modesta contribuição para suavizar as relações entre familiares e amigos, nesses tempos polarizados:

Se a pessoa é, ao mesmo tempo, terraplanista e querida, desista de convencê-la diferentemente e converse sobre outro assunto em que exista encontro prazeroso.



 
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domingo, 9 de maio de 2021

PSICANÁLISE E FÉ . 2 - O AMIGO PERGUNTA

 


PSICANÁLISE E FÉ . 2

Há outras pistas para se saber se uma fé é amorosa ou é extensão do Superego: 

Uma fé amorosa não se diz superior aos outros, não produz “superioridade moral”, nunca diz “morte aos infiéis”. 

Uma fé amorosa não cultiva o sofrimento e a privação como meios de agradar a seu deus; não aposta na “nobreza do martírio”.

Uma fé amorosa não se orgulha de fazer de seus seguidores párias da humanidade.
Uma fé amorosa não fomenta o ódio.

Uma fé amorosa traz paz e acolhimento contagiosos, não divide amigos nem familiares por sua crença, não leva à guerra.

Enfim, a fé superegoica tende a ser uma forma de sadomasoquismo, da modalidade fodão/merda, em que o crente se une ao seu deus (não importa se místico ou mítico) para triunfar, vencer sobre os outros. 

Vencer; nunca convencer.


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FRANCISCO DAUDT

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PSICANÁLISE E FÉ - O AMIGO PERGUNTA

 


PSICANÁLISE E FÉ

Rodrigo Vaz: “Se a crença em Deus é resultado de uma projeção externa do Superego, a análise bem sucedida leva ao ateísmo?”

Francisco Daudt: A complexidade da mente humana é tal que estamos aqui frente a duas questões possivelmente não excludentes: a fé e o Superego. 

A análise bem sucedida conduz a que valores, antes monopolizados pela tirania do Superego, sejam examinados pela pessoa e, se considerados aceitáveis, trazidos para a esfera do Eu (Ego). 

Assim, “Eu não sou honesto por medo do Superego, Eu/Ego sou honesto porque endosso esse valor”.

Igualmente, existirá a fé que deriva do desejo amoroso do Eu. Para além daquela que leva ao “temor a Deus”, esta sim, superegoica.


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“MÃE É MÃE”

 


“MÃE É MÃE”

Consulta: Obrigação de Gostar dos Pais
(Publicado em 01 de fevereiro de 2012)

PERGUNTA: “Vou lhe dizer uma coisa que tenho medo de dizer até para mim mesma: descobri que não gosto de minha mãe. Eu sou uma pessoa horrível?”

“Você é! Afinal, mãe é mãe, a pessoa que te presenteou com a vida e é merecedora de eterna devoção, não há nada de mais sagrado!”

Esqueça tudo o que escrevi até agora, pois foi apenas uma caricatura da mais poderosa religião que existe: o senso comum. Essa religião não tem nada escrito, como a bíblia, mas tem tudo aludido de forma sutil. E, por ser sutil, não tem como ser contra-argumentado.

Experimente dizer por aí que você não gosta da sua mãe e as pessoas não dirão nada. Apenas fecharão a cara, suspirarão, revirarão os olhos e… pronto: tudo está dito, e da pior maneira.

O que está dito é que você é horrível, que sua mãe é perfeita, que você está contrariando as leis de deus e da natureza ao mesmo tempo, e que você merece o fogo do inferno.

Mas, vamos pensar com racionalidade. A mãe natureza não está nem um pouco interessada em nossa felicidade, apenas em que procriemos. Por causa disso, pessoas, sem a menor vocação para pais, procriam à vontade.

Levitt, em seu “Freakonomics”, demonstrou que filhos indesejados se destinam à marginalidade, sejam dos pobres ou dos ricos, e que o direito de aborto desses filhos foi fundamental para a redução da criminalidade nos EUA.

Ou seja, você pode ter constatado a incompetência de sua mãe para a função de mãe, e não deve ter a menor culpa por isto.

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“Como a psicanálise vê a paixão?” - O AMIGO PERGUNTA

 


PAIXÃO

“Como a psicanálise vê a paixão?”

Francisco Daudt: Como um estado alterado da mente em que a pessoa pensa que está se relacionando com outra, mas – apesar de a outra realmente existir – a relação se dá com um ser ideal imaginado, com uma idealização do outro, uma espécie de “outro enfeitado” por todas as maravilhas que moram no nosso Superego.

Lembrando: Freud chamou o Superego de “O que está acima de mim” (“das Überich”). Esse software se construiu sobre uma base dos nossos programas inatos de sobrevivência: lá moram os nossos medos e tudo que nos ameaça; desde o escuro e as cobras até o abandono e o desamparo.

Mas também mora o “Ser ideal perfeito” que, desde esse pedestal, nos cobra permanentemente a estar à altura dele. O truque é: “seja perfeito e você estará imune às ameaças”, ou “as ameaças só existem porque você não é perfeito”.

Por isso é tão fácil para a humanidade imaginar um ser perfeito, todo-poderoso, onisciente, onipresente, completamente bom e justo, que até a morte vence. É o Superego externo, presente em todas as culturas: os deuses.

Esses deuses são o Salvador, o Redentor, aqueles que corrigirão todas as nossas misérias, nos protegerão de todos os nossos males. Basta... adorá-los em troca.

O que nos remete à paixão. Gosto muito de caricaturas, elas nos ajudam a entender coisas difíceis. Pois pego agora a paixão adolescente como caricatura de todas as paixões. Quando ela acontece, a pessoa é presa da agonia e do êxtase. Parece que todos os seus problemas acabaram, que você “chegou lá!” Não à toa, as musas dessa paixão são chamadas de “minha deusa”. “Ela é tudo para mim; eu serei tudo para ela”.

Essa é a parte do êxtase. A agonia começa com o significado original de paixão: sofrimento! O latim “passio” só permite essa tradução. Eis porque se diz “a paixão e morte de Nosso Senhor Jesus Cristo”. É isso: aquela paixão dele não tinha nada a ver com Maria Madalena...

Você imagina o tamanho da ameaça que é imaginar perder o objeto de sua paixão? Por isso o assunto dos adolescentes apaixonados é um só: ciúme/posse. Ciúmes sexuais e ciúmes de prestígio. Entendeu agora o “crime passional”?

A ironia final: o latim “passio” equivale ao grego “patos”, portanto “patologia” pode ser traduzido como “o estudo das paixões/sofrimentos”...

O próximo capítulo, portanto, contemplará os vários níveis da paixão: do normal ao doentio, ao patológico.

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terça-feira, 4 de maio de 2021

O FIM DA ANÁLISE - O AMIGO PERGUNTA

 



Clô Franklin: “Quando é que a análise termina? Como saber essa hora?”

Francisco Daudt: Ih, esse assunto já foi fonte de muita encrenca. Uma cliente me contou que, nos anos 70, teve que assinar um termo de responsabilidade para poder largar sua análise, pois o analista disse que ela corria risco de suicídio, se saísse.

Essa era uma arapuca perversa da psicanálise daquela época: não era incomum que as pessoas fizessem cinco sessões semanais. Ora, se ela largasse, o analista perderia uma fração substancial de seus proventos, donde – mesmo sem má intenção – ele poderia se seduzir com a ideia de que as análises deveriam ser intermináveis.

Sou favorável a que o analista desarme para si possíveis seduções de desonestidade/abuso de poder. Se ele tem muitos clientes de uma sessão por semana, por exemplo, não fará drama se o cliente quiser sair. O mesmo se aplica ao tempo de sessão: uma duração contratada de tantos minutos removerá a tentação de despachar logo o cliente.

Se o psicanalista tem claro para si que ele é um prestador de serviços, se ele faz diagnóstico e busca a cura, não ficará seduzido pela ideia da psicanálise como coisa monumental, que visa rever toda a vida do paciente, e levar anos com isso. Poderá aceitar que também há objetivos terapêuticos mais limitados (como o tão atual tratamento do luto, causado pela Covid).

De qualquer modo, tomei como política nunca, NUNCA objetar à vontade do cliente de interromper a análise. Entender, sim; objetar, não. Mesmo porque, cabe ao cliente dizer quando está satisfeito. Eu nunca “dou alta”, porque não dou “atestados de cura”, nem me concebo com esse poder.

Agora, entender sim, porque às vezes a vontade de interromper é uma expressão de que algum mal-estar com a análise se despertou no cliente, e ele não achou outra maneira de expressá-lo.

Mas eu quero que a saída do cliente seja simples, descomplicada. É claro que aquele exemplo lá no início tem uma função de antimodelo, de tanto horror a atitude do analista me despertou.

Mas não é só isso. É que eu não quero que a psicanálise seja algo de monumental. A monumentalidade pertence ao reino do Superego, daquilo que está “Acima de mim”, e o Superego faz parte do problema, não da solução. Portanto, um cliente que interrompe hoje, pode bem querer voltar amanhã, ele precisa saber que as portas estarão sempre abertas.

Além disso, é parte do meu trabalho a “transferência de tecnologia”, de modo que um cliente possa cumprir as duas etapas do tratamento inventado por Freud: a análise terminável (a de consultório), e aquela que ele será capaz de fazer sozinho, com sua introspecção.

Essa sim, interminável.



 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD




F.O.M.O. E INSÔNIA

 



Gostei de terem inventado o conceito de F.O.M.O. (“Fear of missing out”), o medo de estar perdendo alguma coisa melhor, a compulsão de se divertir, de ter permanente excitação, uma praga contemporânea da geração mimada com vício de companhia e das mídias sociais.

Por que praga? Pelo cultivo do imediatismo como valor indiscutível, o prazer incessante como direito adquirido e inalienável.

“Abaixo o natal com data marcada; natal pode ser a qualquer hora! Nós queremos Monareta AGORA!”, assim cantava uma propaganda dos anos 80, anunciando a chegada dos “entitled” (“aqueles que têm direito”, um aperfeiçoamento dos “spoiled”, estragados”, mimados, em inglês).

Mas, qual é o problema de se querer prazer? Nenhum, em princípio. O problema está no tipo de prazer: há o prazer de alívio e o prazer de realização. O de alívio mais caricatural e extremado é heroína na veia. Dizem que não existe prazer maior e mais imediato. É pena que não se repita, pois depois do vício instalado (bastam duas doses, é como crack), a nova injeção só serve para tirar a síndrome de abstinência.

O prazer de realização requer investimento: conhecimento do próprio desejo, capacidade de reflexão e construção. Isto serve para uma relação amorosa, para encontrar uma profissão que dê sustento e seja bonita de fazer, tanto quanto para o prazer que tenho ao escrever este texto, já que ele é fruto de tudo o que enumerei antes.

O cultivo do imediatismo que leva ao F.O.M.O. emburrece, pois incapacita para a reflexão, já que ele é fruto de pura reação. Depois do pequeno barato que vem de se checar pela enésima vez as últimas postagens das mídias, vem a fissura de fazer mais uma, ver mais outra, numa aceleração que leva à... insônia.

O dormir requer ritual de desacelaração. Você já deve ter visto aquelas crianças hiperativas que não dormem, e sim desmaiam de exaustão. Pois o F.O.M.O. funciona igual. O dia não termina, pois “eu ainda posso ver mais uma coisa, fazer mais outra”.

Dificilmente alguém estará imune ao F.O.M.O., pois ele já se instalou no espírito do tempo atual. Minha intenção aqui é, como faz a psicanálise, tornar consciente as armadilhas que nos aprisionam, buscar liberdade, independência e autonomia.

E depois, dormir o sono dos justos...



 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD




OS LIMITES DO “PODE”



Um bom corrimão de escada é uma tentação permanente para uma criança. Temos essa “questão” aqui em casa. Podíamos dizer aos nossos filhos: “Não, vocês não podem escorregar nele. É perigoso!”. E eles iam escorregar escondido.

Preferimos ensinar a escorregar com segurança. Primeiro, depois da curva de 180º, que é o ponto crítico. Depois, já bem treinadas, desde lá de cima.

Foi assim que o corrimão entrou no crescente rol dos direitos delas: os limites do “pode”.

Poxa, nós crescemos ouvindo que criança precisa de limites, e a lista enorme do que não podíamos e de nossos deveres. Ninguém nos informava sobre nossos direitos, a gente ia se virando por transgressões...

A psicanálise visa nos apossarmos do direito ao nosso desejo.

(Do meu livro “O Aprendiz do Desejo - a adolescência pela vida afora”, Editora 7Letras - Disponível em: https://7letras.com.br/livro/o-aprendiz-do-desejo/).



 
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AUDÁCIA E ZELO



“Vai lá, otário, chega nela!”

“Ah, mas... e se ela me der um passa fora?”

Em toda ação humana, audácia e zelo conversam, mesmo sem que percebamos. Igualmente ignorado é o fato de que eles respondem pelos nossos dois instintos animais básicos: sexual (reprodução) e sobrevivência.

Freud os chamou de “Princípio do Prazer” e “Princípio da Realidade”: “Sim, eu quero comer muito pão com manteiga!”; “Ai, meu Deus, isso vai me custar um baita aumento de peso...” 

O princípio do prazer termina em exclamação! O da realidade, em reticências...




 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD






 

A PSICANÁLISE E O PRÉ-CONSCIENTE

 



O que você comeu ontem no jantar? Lembrou-se? Até eu perguntar, o registro dessa memória estava no seu pré-consciente. Agora, com sua atenção chamada, ela se tornou consciente, como é consciente o fato de você estar lendo este texto.

A consciência depende da nossa atenção. De início, antes de falar do Ego, Id e Superego, Freud descreveu o aparelho psíquico dividindo-o em Consciente, Pré-consciente e Inconsciente. 

No Inconsciente ficam os arquivos de memória inalcançáveis: os que servem de “fundações” do prédio mental a ser construído (como por exemplo, o nosso aprendizado do português) e aqueles reprimidos pelo horror de vê-los. São esses últimos o objeto da pesquisa psicanalítica.

Mas eu sou encantado pelo pré-consciente. Ao ponto de considerar a nostalgia meu esporte favorito. O prazer que me dá tirar da prateleira arquivos antigos, intocados há décadas, como anúncios de TV dos anos 60 (“Quem bate? É o frio! Não adianta bater...”) e mostrá-los para “companheiros de carteira de identidade”... É uma delícia. Quanto mais antigos e surpreendentes, melhor.

Outro exercício fascinante é tornar consciente o número de informações que nos traz uma simples olhadela em alguém desconhecido. Experimente: veja a pessoa na rua por cinco segundos e depois fale sobre ela. Você vai ficar pasmo de ver quanta percepção pré-consciente recolheu: escolaridade, classe social, orientação sexual, sinais hostis ou amistosos, tipo de tribo etc.

Você já se imaginou como sendo um computador cujo HD comporta infinitos gigabytes de memória? Eles são registros do que captamos por todos os sentidos, de modo que, remontados num sonho, constroem verdadeiras superproduções cinematográficas. Cenários, pessoas, tramas, cidades, ambientes, sons, tudo tirado dos nossos arquivos e roteirizado por nossos desejos.

O psicanalista lida com esses arquivos. Não é que você vá recuperar arquivos inconscientes, mas a memória pré-consciente vai ser vista por ângulos novos:

“Édipo, você se lembra da sua mãe, antes de se casar com ela? Claro que não! Você foi criado pelos reis de Corinto, nunca conheceu a rainha de Tebas. Ela só te gerou, sua mãe foi a outra. Afinal, você se sente culpado de quê?”

Nunca me conformei de o Édipo não ter tido um bom psicanalista para ajudá-lo a reler seus arquivos de memórias...



 
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