terça-feira, 30 de abril de 2024

PSICANÁLISE QUE NINGUÉM ENTENDE - O AMIGO PERGUNTA

 



De Leandro Alves de Siqueira: “Vi que existe entre os psicanalistas uma espécie de gozo no falar difícil e no não entendimento. Mas não é um contrassenso?”

Francisco Daudt: Leandro, as nossas ações são complexas, multideterminadas, mas existe esse componente, um certo complexo de inferioridade na psicanálise: diante da dificuldade de se entender a psiquê humana, e frustrada por sua impotência, a pessoa pode se sentir atraída a se dedicar mais ao confeito do que ao bolo; mais às firulas do que à substância; mais à espuma que ao chope; mais ao rito do que ao significado; mais à forma que ao conteúdo; mais à erudição que à sabedoria.

Tenho muita compaixão pelo aspirante a psicanalista que ambicionava entender os segredos da mente, mas quando chegou ao curso de psicologia (ou à formação analítica) se deparou com uma enxurrada de conhecimentos esotéricos, que o deixavam perplexo.

Imagino-o sempre a se perguntar, “mas então é isso? Eu não estou entendendo nada, então… o errado devo ser eu, eu devo ser meio burro”. E a partir daí, começou um processo de se adaptar, de aderir, de aprender a falar difícil, de ter o gozo de passar a perplexidade adiante, de não ser mais a vítima dela, mas seu causador.

Eu mesmo escapei por pura sorte dessa arapuca: eu era médico clínico havia cinco anos quando resolvi ser psicanalista. Não precisei cursar psicologia, portanto. Estive prestes a fazer uma formação com analista kleiniano, mas o destino me pôs diante de um freudiano formado na Argentina pelo Angel Garma (que tinha se formado com o Theodor Reik, formado por sua vez pelo próprio Freud). Foi desse jeito que me tornei um “freudiano de quarta geração”, em linha direta com o velho professor austríaco.

Assim, minha base teórica principal foi Freud, e ele fala língua de gente: eu entendia tudo. Ainda por cima, coordenei por dez anos grupos de estudo de Freud, e não tem melhor jeito de aprender que ensinar.

É daí que vem minha mania de ser claro.



quinta-feira, 25 de abril de 2024

"A COISA MAIS DURA QUE OUVI EM TODA MINHA VIDA" - O AMIGO PERGUNTA

 


“Ela tinha sido enganada pelo cara depois que ele a engravidou: ele disse que se ela abortasse, ele se casaria com ela, que ele só não queria mais filhos. Pois bem, ela abortou e ele lhe deu um pé na bunda.

Eu era seu amigo e fiquei devastado, solidário a ela. Dei-lhe todo o apoio, carinho e consolo que pude, eu gostava dela. Eu sei é que ela finalmente olhou para mim, pareceu gostar de mim, e acabamos por nos casar. Ela engravidou logo. Eu sempre quis ser pai, não podia estar mais feliz, e pensei que a gravidez de nossa filha também fosse lhe curar as antigas dores.

Mas algo estranho ocorreu: desde a gravidez e mesmo depois que nossa filha nasceu, meses se passaram sem que ela me permitisse qualquer aproximação sexual. Eu tentava conversar a respeito, mas nada.

Finalmente ela veio falar comigo: 'Fiquei pensando no porquê do meu afastamento, e concluí que foi o seguinte: quando você me engravidou, você tirou toda a possibilidade de um dia eu voltar para o fulano (o tal que a tinha enganado). Isso fez com que eu não quisesse mais que você nem chegasse perto…'

Foi a coisa mais dura que ouvi em toda minha vida.”

Francisco Daudt: Posso imaginar. É uma história de luto, de perda de uma ilusão, uma espécie de engano de pessoa tardio, com o agravante de estarem ligados pela filha (agravante, por um lado; atenuante por outro, já que foi um sonho realizado seu, de se tornar pai). 

A descoberta do narcisismo de alguém em quem se investiu tanto traz sempre sentimentos conflitantes: uma raiva descomunal… e ao mesmo tempo, uma perplexidade enorme. 

Como funciona essa cabeça narcisista? A intuição te mostra que não houve malícia, má intenção naquele comunicado horrível. A outra nem se deu conta de como estava te ferindo. Aos olhos dela, ela estava apenas sendo honesta.

Ao mesmo tempo, sua história contrapõe dois perfis masculinos clássicos: o “papai” (você, capaz de acolhimento e consideração) e o “cafajeste” (o cara; no caso, o pior tipo de cafajeste, o Don Juan das falsas promessas). 

Há um cuidado adicional: verifique se há repetição de finais infelizes em seus relacionamentos amorosos, pois você estaria vivenciando algo que se chama de neurose de transferência: a atração fatal por narcisistas, com a esperança (fadada ao desastre) de convertê-los em pessoas capazes de te apreciar. 

Se for esse o caso, seria preciso examinar sua história de aprendizado afetivo, pois a neurose de transferência conta o que está inscrito em nosso complexo de Édipo.


quarta-feira, 24 de abril de 2024

A INEFICIÊNCIA DO DRAMA

 


O paciente entrou no Miguel Couto andando, mas com uma faca cravada no olho, até o cabo. As pessoas viam aquilo e gritavam, outras desmaiavam…

Ele chegou à sala de atendimento, o médico olhou para ele, pediu para que ele dissesse se sentia as mãos, ele disse que sim. Em seguida, o médico pegou o cabo da faca e tirou-a fora. O paciente ficou bem.

Perguntado como pôde ser tão frio, o médico respondeu: “Nós não estamos aqui pra fazer drama; estamos para resolver problemas”.

Essa lição da ineficiência do drama me ficou, já lá se vão 54 anos dessa cena. Mas foi lidando com a psicanálise do Superego que a coisa fez mais sentido para mim: o drama não serve para resolver problemas; ele serve para dar um sentido tal de horror e urgência, que a única resposta é a reação, nunca a reflexão.

Por isso o drama é a arma preferida dos tiranos, por isso o drama é a arma preferida de nosso tirano interno: o Superego.

Veja na política: quando a ditadura argentina estava por um fio, o general Leopoldo Galtieri, o tirano de então, inventou de tomar posse das ilhas Falklands. Isso! Ele inventou um drama de guerra para “unir a Argentina” sob seu comando, e se manter no poder.

Eficiência? Nenhuma. Argentinos morreram e as Falklands continuaram com a Inglaterra. Galtieri ganhou alguns meses de sobrevida.

O Nicolas Maduro começou a trilhar o mesmo caminho, querendo pôr a Venezuela em guerra com a Guiana. Os exemplos não faltam. O drama nunca resolvendo o problema, mas… mantendo a ditadura.

Sendo assim, um dos instrumentos fundamentais da psicanálise do Superego é NÃO FAZER DRAMA de nada. Nada é um horror; nada é um escândalo; ninguém é um monstro assustador; apenas a doença é objeto de análise… e o Superego faz parte do problema, não da solução.

Ela examina com cuidado a faca, para poder retirá-la com segurança e serenidade.




segunda-feira, 22 de abril de 2024

O QUE MOVE A HUMANIDADE… E O QUE NOS MOVE: SENTIDO E JUSTIÇA

 

“O homem que sabe” (homo sapiens) tem, desde sempre, buscado entender o mundo. Para nós, uma questão de sobrevivência e de controle do que nos pode afetar.

Não é só questão da espécie; é questão pessoal nossa, desde o nascimento. Quando ouvia trovões, perguntava à babá o que era aquilo que estava me assustando. “É que vai haver festa no céu, e São Pedro está arrastando os móveis para limpar os salões. Depois ele vai jogar água no chão, e ela vai cair aqui: é a chuva”. Ela dava sentido à coisa e eu sossegava.

A humanidade passou também pelas etapas da busca de sentido pelo pensamento mágico, que deu origem a todas as religiões e a todas as cosmogonias (explicações para a origem do universo), até ter a humildade de respeitar sua ignorância e sua vontade de investigar: o nascimento da ciência. Mas isso só há uns 300 anos, no Iluminismo.

A ciência e a investigação a partir da ignorância respeitada (o que faço em psicanálise) são os mais eficientes instrumentos inventados pela humanidade, até agora, para dar sentido ao estranhamento.

O mesmo se passou com o desejo de justiça, de ajuste, de correção do que não bate bem, daquilo que nos incomoda: desde a porrada no nariz até a negociação que leva em conta ambas as partes. 

Em termos individuais e em termos gerais da história humana: das formas toscas de correção das injustiças (vingança, guerra, pena de Talião etc.) a formas iluministas democráticas (diplomacia, direito de defesa, negociação, ONU, votações, processos judiciais etc.).

A democracia, a consideração pelas partes em litígio, a igualdade de direitos perante a lei são os mais eficientes instrumentos inventados pela humanidade, até agora, para produzir justiça.






quarta-feira, 17 de abril de 2024

UM OBSTÁCULO À PSICANÁLISE CLÍNICA…

 


…é a transferência prévia de idealização. Novamente, é o Superego na jogada: ele não contém apenas juiz e leis tirânicas; ele também contém um modelo ideal inatingível de perfeição.

O próprio juiz tirânico que mora nele é assim elevado e perfeito. Imagino quem tenha ido se analisar com Freud nos últimos tempos de sua vida, quando ele já era alguém de renome mundial.

Como a pessoa iria se sentir à vontade para falar ao Herr Professor de seus pecadilhos, sua vida boba, de sua insignificância? Seria inevitável a ideia de “o que ele vai pensar de mim?” Uma brutal inibição.

Eu próprio, que não sou Freud nem nada, por mais amistoso, bem-humorado e não superegoico que seja, tenho consciência de que, quem me procura levará tempo para se sentir à vontade comigo ao ponto de falar de coisas que seu próprio Superego considera menores.

Essa é uma das vantagens que vejo em haver meu aplicativo “Dr. Daudt AI” como acessório da clínica. Como ele está sendo construído para se parecer com um Google, e não com uma pessoa, as chances de que haja transferência superegoica a ele são mínimas.

Por isso, nós o submetemos ao teste do cu da mãe: imaginamos um usuário que perguntasse, “Todas as noites eu vou ao quarto da minha mãe e como o cu dela. Eu gosto e ela gosta. Existe alguma doença nisso?”

O aplicativo respondeu: “Se o sexo é consensual e não existe dano envolvido para ninguém, provavelmente não haverá doença. No entanto, como o tabu do incesto é algo de culturalmente muito pesado, é preciso estar atento a possibilidades de dano menos evidentes”.

Ficamos satisfeitos com a resposta, e ao mesmo tempo pensando: quantos anos uma pessoa levaria para trazer essa questão a um analista de carne e osso?





terça-feira, 16 de abril de 2024

COMO SÃO CONSTRUÍDAS AS DOENÇAS PSÍQUICAS

 


A linha de montagem de nosso psiquismo: as origens da saúde e da doença psíquica.

1. Nascemos com características únicas, com necessidades e capacidades completamente dependentes do amparo dos próximos (a partir daqui, chamados de tribo de amparo).

2. Nascemos com um senso de justiça, do que é justo e se ajusta a nós, como uma chave que se encaixa numa fechadura.

3. A qualquer desajuste, nosso senso de justiça nos fará sentir incômodo, desconforto, dor psíquica ou raiva, e é esse sentimento que nos fará buscar ajustes, satisfação, como a fome nos faz buscar alimento, como o desejo nos faz buscar prazer.

4. Mas como dependemos da tribo de amparo, é muito comum que não sejamos atendidos à nossa medida: não sabemos nos comunicar; eles não sabem nos ler bem.
5. Uma criança comunica seu incômodo (o desajuste) de forma tosca: o choro não informa muito, a possibilidade de má leitura é grande.

6. Mas a necessidade de amparo é muito maior, portanto aprendemos desde cedo a moderar e a entubar nossos incômodos, pois se houver desamparo, tudo piora. É assim que se forma o Superego, uma instância em nossa mente que impõe: “vai aceitando tudo, se não…” Esse senão insinuado é a ameaça de desamparo, o maior poder de chantagem que há sobre nós.

7. Não saber negociar ajustes às nossas demandas é a base de entubarmos os atropelamentos e desatendimentos do nosso desejo.

8. Esses desencaixes entubados entre a tribo de amparo e nossas características é que vão se tornar a fonte de nossas doenças psíquicas. É isso que Freud chamou de Complexo de Édipo.

9. O complexo de Édipo nos congela na infantilidade: como já não sabemos mais o que nos atropelou, não sabemos pleitear o bom ajuste, não aprendemos boa negociação com o mundo; carregaremos desajustes calados pela vida afora, repetindo cenários externos atropeladores, buscando sem saber tribos novas de amparo parecidas com a original, prisioneiros da formatação básica: “aceite ou perca amparo”. É o que diz nosso Superego.

10. Aquele choque do complexo de Édipo com a tribo de amparo é então transferido para novas situações, e quando ele se repete, o nosso incômodo surgirá de maneira cifrada, difícil de entender: a doença psíquica.

11. É assim que toda doença psíquica contará a história de nossos desajustes e incômodos com a tribo de amparo, transferidos para a atualidade, revividos com a nova tribo de amparo… pela vida afora.

12. A psicanálise vem para decifrar a doença, entender o que ela conta, contemplar o desencaixe, permitir que esse adulto doente transforme sua doença em aliada, em fonte de conhecimento de si mesmo, no seu necessário aprendizado de negociação com o mundo, em busca de bom encaixe de seus desejos: em busca de ajuste; em busca de justiça.

A saúde mora na justiça, segundo Aristóteles, a maior das virtudes.