domingo, 10 de abril de 2022

DE UM PSICANALISTA PARA NEUROCIENTISTAS E EVOLUCIONISTAS

 



(Eles estudam a espécie; a psicanálise estuda o indivíduo)

A psicanálise que busco construir se vale da psicologia evolucionista e da neurociência (que estudam a mente da espécie) para estudar a mente do indivíduo.

Estudar a mente do indivíduo implica conhecer infinitos vetores, um de cada vez, entendendo como eles interferem na resultante. E assim mesmo só ter uma pálida ideia, pois não há complexidade igual sobre a face da Terra.

Ela começa contemplando o genérico: reprodução e sobrevivência como drives (impulsos) básicos, um buscando o prazer, o outro evitando o desprazer; softwares genéticos, como tipos mentais (orientação sexual, “cabeça de homem”, “cabeça de mulher”, obsessividade, herança para vício, para depressão, inteligências abrangentes ou especializadas, e seus vários níveis, capacidades de reflexão/reação etc.).

Levando tudo isso em conta, volta-se para a pessoa, começa a entender como se deu o embate desejo/cultura naquele indivíduo. Como ele negociou sua busca de prazer frente ao medo do desamparo por desagradar seu ambiente familiar; de que características pessoais ele teve que abrir mão, por conta desse embate; que crenças disfuncionais absorveu, como decorrência do embate; que distorções sofreu seu desejo (a psicanálise que busco não considera a vontade de se drogar como parte do Desejo, senão que a vê como uma distorção, um paliativo do desejo).

Toda essa pesquisa e investigação se dá, em psicanálise, por engenharia reversa: o cliente chega com seu sofrimento, sua doença, seus sintomas. O pressuposto psicanalítico é que esse sofrimento é fruto daquele embate desejo/cultura (quando se fala “cultura” aqui, se supõe o atropelamento que o senso comum produz sobre as singularidades do indivíduo, começando pela família, continuando fora dela). É a partir dessas doenças/sintomas que se vai investigando e deduzindo, tanto o desejo mais autêntico, quanto seus atrapalhadores.

Essa psicanálise que faço define saúde mental como a eficiente negociação com o mundo para a realização dos desejos do indivíduo. Considera como doença todos os atrapalhadores dessa negociação, que levam à distorção de seu desejo.

Não vejo conflito de interesses, portanto, entre as ciências da mente e a psicanálise. O estudo da espécie serve ao indivíduo; o estudo do indivíduo serve à compreensão da espécie. Uma ajuda a outra.



“EU ACHAVA QUE A PSICANÁLISE ERA UMA PSEUDOCIÊNCIA PERIGOSA…” - O AMIGO PERGUNTA

 



Francisco Daudt: E você, Samuel Fernando, tinha/tem muitas razões para achar isso.

Eu próprio também acho que ela vive esse risco. Não conheço muitos psicanalistas que se preocupem com epistemologia, que declarem suas bases para a busca do conhecimento verdadeiro.

Não acredito que a psicanálise venha a ser uma ciência, algum dia. Sua pesquisa é muito pessoal, muito dependente da postura do psicanalista. Mas ela pode se valer dos instrumentos científicos para sua busca de verdade.

No meu caso, escolhi o filósofo da ciência Karl Popper e sua refutabilidade das hipóteses, como meu norte: seja claro no que você propõe ao cliente, e dê a ele toda a liberdade de dizer que você está errado. Só tome como aproximadamente certa a hipótese que for confirmada sem hesitação.

O problema é que a psicanálise requer gente inteligente que também dê valor às ciências exatas, não só às humanas. O culturalismo é uma praga, na psicanálise; a aversão à psicologia evolucionista, a qualquer influência biológica no funcionamento da mente, é uma tristeza.

Acreditar na tábula rasa, que nossa mente é uma folha em branco em que a cultura escreverá tudo, é o maior risco de reducionismo que a psicanálise corre. É deixar de lado um componente crucial da nossa complexidade.

Afora o triste fato da seleção adversa que uma psicanálise obscura, hermética e “poética” promove: gente que não entende o que lê ou ouve, e tem vergonha de admitir isso, passa a se enganar e achar que entende, passa a mistificar e humilhar terceiros com sua suposta sapiência: seleção garantida de crentes do fodão/merda…



ENSINANDO PSICANÁLISE

 



Sempre fiquei intrigado com o termo “análise didática”, que se dizia como fundamental para a formação psicanalítica. Imaginava que o candidato seria analisado, e seu didata lhe explicaria os conceitos analíticos que se aplicavam a seu caso.

Depois, na minha própria formação, descobri que não era nada daquilo. Era uma psicanálise pessoal regular, só que feita por um psicanalista didata (um título outorgado pela sua instituição de origem).

Pois acabei inventando um jeito de ensinar psicanálise muito baseado naquela minha primeira compreensão do termo: meu orientando/aluno tem uma hora semanal para me falar de seus dramas, de seus sintomas, de sua história, e eu, em vez de tratá-lo, mostro como a teoria psicanalítica se aplica a ele e a seus eventos psíquicos. Indico a bibliografia relacionada. Ele aprende psicanálise na própria pele.

Apresento aqui alguns deles, uns interessados em se formar psicanalistas clínicos, outros em conhecer teoria psicanalítica. Seus endereços de Instagram (quando os há) vêm em parênteses, logo a seguir do nome:

Eduardo Affonso (@eduardo_alves_affonso); Renato Capper; Lucas Peccin (@lucaspeccin); Samuel Fernando (@samuel_fernando33); Pedro Buarque Bisaglia (@pedrobisaglia); Guilherme Veiga; Gustavo Wong (@gustavowb_); Claudio Kuyven (@claudiokuyven); Daniel Vicente(@daniel_vicente_psi); Fernanda Wainer (@nacasadananda); Stella Veiga. 





A IMORTAL E A NOSSA MESA DO GUIMAS

 



Eu e o Marco De Bellis temos ido almoçar aos sábados no Guimas quase que mensalmente (pausa pandêmica, claro) nos últimos 30 anos.

Como bons obsessivos, o ritual é sempre o mesmo: chegamos pontualmente às 12h e sempre somos os primeiros a entrar, nos sentando à mesma mesa junto à janela… exceto por uma vez, há uns 15 anos:
quando entramos, nossa mesa estava tomada pela Fernanda Montenegro e um pequeno grupo. Fui até lá:
“Fernanda, você está ocupando a nossa mesa”, disse-lhe eu.

“Oh, desculpe, eu não sabia…”, disse-me ela.

“Mas eu estive pensando, você já me deu tantas alegrias na vida e eu nunca pude retribuir em nada… Bem, chegou a hora então: pode ficar com a mesa!”

Ela sorriu, muito agradecida. Como haviam começado o almoço cedo, terminaram antes de nós. Fernanda veio à nossa mesa e se dirigiu a mim:

“Muito obrigada, outra vez. Sua mesa realmente é ótima.”

E foi assim que consegui fazer alguma coisa pela nova imortal da Academia…



COMO NASCE O SENTIMENTO DE CULPA

 



Através de uma linha de montagem genético-cultural:

1. Nascemos com softwares de sobrevivência, atentos a cobras, escuridão, confinamento, altura, grandes insetos voadores etc., mas principalmente ao medo do desamparo.

2. O medo do desamparo nos torna alertas ao que desagrada a nossos pais, e a prestar muita atenção ao que eles dizem sobre isso.

3. Se eles nos rotulam, ou nos comparam a alguém horrível (“Você está igual ao filho do vizinho, aquela criança malvada”), aprendemos sobre a existência de antimodelos, pessoas ou qualidades que devemos evitar como à peste. Mais tarde serão os outros, a cultura, e sobretudo o senso comum que vão criar antimodelos e nos manipular com eles.

É assim que o Superego se forma: um software genético-cultural que nos cobra perfeição, nos julga e nos ameaça, e que não distinguimos de nós mesmos.

4. Quando essa acusação/comparação, que vinha de fora, começa a vir de nossa própria cabeça, aí começa a vergonha de ser horrível, aí começa o sentimento de culpa.

5. O sentimento de culpa é a arma de manipulação mais eficiente que a humanidade já inventou: alguém pode te pôr de joelhos usando uma arma, e você se levantará quando a arma sumir. Mas se você se sente culpado, é você mesmo que vai implorar perdão… de joelhos, que nem o Fiuk.

Abaixo, o “João Felpudo” (aquela criança horrível inventada pelo alemão Hoffmann, que não corta as unhas nem o cabelo, não toma banho nem escova os dentes), e “Juca e Chico” (duas pestes malvadas, que acabam tendo ‘o que merecem’, invenção do alemão Wilhelm Busch). Personagens muito usados pelas mães de outrora: “Você está igual ao João Felpudo!”


BOM SENSO X SENSO COMUM

 



Uma amiga, estudante dos franceses Deleuze, Guattari, Foucault et.al., costumava se referir ao bom-senso como “bom senso/senso-comum”, como se fossem sinônimos.

Não sei de onde ela tirou isso, mas eles são dois conceitos que não se confundem, apesar de conterem ideias em comum.

O bom-senso fala da lógica contida num conceito; o senso-comum fala da crença comum partilhada por grande número de pessoas, não importa se tenha lógica ou não. É aquilo que “todo mundo sabe que é assim”.

“É melhor fazer alguma poupança, pois não existe destino mais cruel que ser velho pobre” faz parte do bom senso.

“Água mole em pedra dura tanto bate até que fura”, “Deus ajuda a quem cedo madruga”, “mais vale um pássaro na mão do que dois voando” e a maioria das máximas, provérbios e ditados falam do senso comum.

O senso comum é a crença - ou mesmo religião - mais poderosa do mundo, não à toa ele clama que “todo mundo sabe que é assim”. É tão sutil e poderosa que nem reconhecida como crença ele é. Apenas é…

O senso comum nos pensa como rebanho; o bom senso pode ser facilmente contestado pelo indivíduo: “isso não me parece de bom senso”. Ele está mais próximo do senso crítico, dá mais liberdade de estranhamento.

Essas reflexões me vieram quando um amigo me contou de sua viagem à família, que mora em Minas: “Não vai comer arroz? Tá fresquinho, viu!”, “Mas, nem um pouquinho?”, “Vai nos fazer essa desfeita?”

Ele cometera a blasfêmia de não querer arroz. Olha a religião aí, gente… 



A COMICIDADE DO MAL

 


A COMICIDADE DO MAL

A babá da minha irmã caçula, mineira de Ubá, costumava cantar uma música lamentosa e triiiiste... :

“A velha sergipana / vivia na choupana / sem rede e sem cama / no seu velho sofá / ah, ah, ah, ah...
Um dia de madrugada / caiu de uma escada / e com a perna quebrada / jamais ela andará / ah, ah, ah, ah...
Vieram dos arredores / a junta dos doutores / pra lhe curar as dores / mas remédio não há / ah, ah, ah, ah...
Morreu com um sorriso / de quem tivera aviso / de ir ao paraíso / de lá não voltará / ah, ah, ah, ah”.

Tão triste era música, tantas vezes ela a cantava, que um dia começamos a debochar, trocando os “ah, ah, ah, ah” por sádicos “hahahahaha”.

Mais tarde, aos onze anos, eu e a irmã assistimos a “Imitação da vida”, um filme com Lana Turner, em que a protagonista passava por uma tal sequência de infortúnios e situações trágicas, que, se de início contristados, lá para o meio da história, a cada nova desdita, caíamos - nós e toda a plateia - na gargalhada...

Estávamos usando (sem saber) um mecanismo de defesa infantil contra a angústia: a comicidade do mal.

Sim, era algo além do que Hanna Arendt descreveu. Sua “banalidade do mal” falava de quão insensível e acostumado se pode ficar com o excesso de más notícias. A comicidade do mal tem um componente sádico - esse “rir da desgraça alheia”, que é diferente do “rir para não chorar” e do “rir de nervoso”.

Nós estávamos sacaneando a babá, sacaneando a heroína do filme, na tentativa infantil de mostrar que estávamos no comando, que aquela desgraceira não poderia nos afetar.

Essas lembranças me vieram ao assistir aos noticiários, ao constatar como temos estado, como não temos Estado, e o estado a que chegamos...


ANGELA MERKEL FAZ UM DIAGNÓSTICO PRECISO

 



A chanceler alemã sofreu uma tentativa de intimidação por parte de Vladmir Putin: sabedor de que Merkel tem medo de cães, ele chamou seu imenso labrador para se deitar aos pés dela, em sua visita ao Kremlin. Frau Merkel ficou impávida, com um sorriso gélido. Perguntada depois sobre o episódio, comentou: "Só pessoas muito inseguras de si se utilizam de expedientes como esse. O que não faz mais que deixar à mostra suas fragilidades interiores".

Ela descreveu com precisão a síndrome fodão-merda, quando um inseguro quer se afirmar como fodão através de fazer alguém mais se sentir um merda. Nem que para isso tenha que invadir a Ucrânia.





UMA MULHER E SEU LIVRO

 



O livro que mais influenciou a minha vida foi “To kill a mockingbird” (“O sol é para todos”, 1961, tradução do português Fernando Castro Ferro para a Editora José Olympio). Surrupiei o livro da biblioteca do meu irmão, e nunca me arrependi do furto.

O filme de mesmo nome faz jus ao livro, as crianças e Gregory Peck (como o pai, Atticus Finch) estão esplêndidos.

Com ele, aprendi a me conservar criança pela vida afora, e ao mesmo tempo, me transformar no pai que ambicionava ser.

A querida Harper Lee (1926-2016) terá sempre um lugar privilegiado em meu coração.



DRAMA E TIRANIA - O AMIGO PERGUNTA

 



De Bony Schachter: ”Por que somos propensos a fazer drama de tudo?”

Francisco Daudt: O drama é uma arma de poder tirânico: ele dá senso de urgência (majoritariamente desnecessário) e pede uma solução simplória. Ora, a boa justiça pede diálogo e reflexão (acusação e defesa); a justiça sumária que o drama exige elimina o tempo para reflexão, exige reação. O ditador executa, a democracia parlamentar parlamenta antes de o executivo executar.

Eis porque o drama é o combustível perfeito para nosso tirano interno: o Superego.



TRÊS LIÇÕES DE HUMILDADE

 



Copérnico (1473 – 1543) nos mostrou que não éramos o centro do universo: era a Terra que girava em torno do Sol, e não o contrário.

Darwin (1809 – 1882) nos mostrou que não éramos uma criação em separado, acima de todos os outros animais: somos todos parentes, temos instintos como eles. O que nos diferencia é a triste consciência de nossa fragilidade e de que vamos morrer.

Freud (1856 – 1939) nos mostrou que somos manipulados sem saber por nossa biologia e nossa criação. Somos, na maior parte do tempo, um joguete dessas forças inconscientes.

Ou seja, não mandamos nem no nosso próprio quintal…



F.O.M.O. E A LÓGICA DO TIK-TOK/REELS

 



O vício do f.o.m.o. (“Fear of missing out”, medo de estar perdendo alguma coisa mais interessante) encontra nos videozinhos curtos do tik-tok/Reels sua melhor tradução.

A lógica neles contida é excitar, mas não satisfazer. Dessa maneira, mantém aberto o apetite (ou a “f.o.m.e.”) e a compulsão de ver o próximo, e o próximo, e o próximo, sem nunca ter seu desejo saciado.

Ouço relatos de clientes que passam horas correndo os vídeos…


QUER FICAR REALMENTE EMOCIONADO? LEIA ISTO: (Parece que é sobre a guerra, mas é sobre a Natureza Humana)

 



“Por que Vladimir Putin já perdeu esta guerra”
Yuval Noah Harari

“Com menos de uma semana de guerra, parece cada vez mais provável que Vladimir Putin esteja caminhando para uma derrota histórica. Ele pode ganhar todas as batalhas, mas ainda assim perder a guerra. O sonho de Putin de reconstruir o império russo sempre se baseou na mentira de que a Ucrânia não é uma nação real, que os ucranianos não são um povo real e que os habitantes de Kiev, Kharkiv e Lviv anseiam pelo governo de Moscou. Isso é uma mentira completa – a Ucrânia é uma nação com mais de mil anos de história, e Kiev já era uma grande metrópole quando Moscou ainda não era uma vila. Mas o déspota russo contou sua mentira tantas vezes que aparentemente ele mesmo acredita nela.

Ao planejar sua invasão da Ucrânia, Putin podia contar com muitos fatos conhecidos. Ele sabia que militarmente a Rússia supera a Ucrânia. Ele sabia que a Otan não enviaria tropas para ajudar a Ucrânia. Ele sabia que a dependência europeia do petróleo e do gás russos faria países como a Alemanha hesitarem em impor sanções rígidas. Com base nesses fatos conhecidos, seu plano era atingir a Ucrânia com força e rapidez, decapitar seu governo, estabelecer um regime fantoche em Kiev e enfrentar as sanções ocidentais.

Mas havia uma grande incógnita sobre esse plano. Como os americanos aprenderam no Iraque e os soviéticos aprenderam no Afeganistão, é muito mais fácil conquistar um país do que conservá-lo. Putin sabia que tinha o poder de conquistar a Ucrânia. Mas o povo ucraniano simplesmente aceitaria o regime fantoche de Moscou? Putin apostou que sim. Afinal, como ele explicou repetidamente a qualquer pessoa disposta a ouvir, a Ucrânia não é uma nação real, e os ucranianos não são um povo real. Em 2014, as pessoas na Crimeia dificilmente resistiram aos invasores russos. Por que 2022 deveria ser diferente?

A cada dia que passa, fica mais claro que a aposta de Putin está falhando. O povo ucraniano está resistindo de todo coração, conquistando a admiração do mundo inteiro – e vencendo a guerra. Muitos dias sombrios estão por vir. Os russos ainda podem conquistar toda a Ucrânia. Mas para vencer a guerra, os russos teriam que controlar a Ucrânia, e eles só podem fazer isso se o povo ucraniano permitir. Isso parece cada vez mais improvável de acontecer.

Cada tanque russo destruído e cada soldado russo morto aumenta a coragem dos ucranianos de resistir. E cada ucraniano morto aprofunda o ódio dos ucranianos pelos invasores. O ódio é a mais feia das emoções. Mas para as nações oprimidas, o ódio é um tesouro escondido. Enterrado no fundo do coração, pode sustentar a resistência por gerações. Para restabelecer o império russo, Putin precisa de uma vitória relativamente sem derramamento de sangue que levará a uma ocupação relativamente sem ódio. Ao derramar cada vez mais sangue ucraniano, Putin garante que seu sonho nunca será realizado. Não será o nome de Mikhail Gorbachev escrito na certidão de óbito do império russo: será o de Putin. Gorbachev deixou russos e ucranianos se sentindo como irmãos; Putin os transformou em inimigos e garantiu que a nação ucraniana daqui em diante se defina em oposição à Rússia.

Em última análise, as nações são construídas sobre histórias. Cada dia que passa acrescenta mais histórias que os ucranianos contarão não apenas nos dias sombrios que virão, mas nas próximas décadas e gerações. O presidente que se recusou a fugir da capital, dizendo aos EUA que precisa de munição, não de carona; os soldados da Ilha das Cobras que mandaram um navio de guerra russo “vá se foder”; os civis que tentaram parar os tanques russos sentando-se em seu caminho. Este é o material de que as nações são construídas. A longo prazo, essas histórias contam mais do que tanques.

O déspota russo deveria saber disso tão bem quanto qualquer um. Quando criança, ele cresceu com uma dieta de histórias sobre as atrocidades alemãs e a bravura russa no cerco de Leningrado. Ele agora está produzindo histórias semelhantes, mas se colocando no papel de Hitler.

As histórias de bravura ucraniana dão determinação não apenas aos ucranianos, mas ao mundo inteiro. Eles dão coragem aos governos das nações europeias, ao governo dos EUA e até mesmo aos cidadãos oprimidos da Rússia. Se os ucranianos se atrevem a parar um tanque com as próprias mãos, o governo alemão pode ousar fornecer-lhes alguns mísseis antitanque, o governo dos EUA pode ousar cortar a Rússia do Swift, e os cidadãos russos podem ousar demonstrar sua oposição a esse absurdo. guerra.

Todos podemos nos inspirar a ousar fazer algo, seja fazer uma doação, receber refugiados ou ajudar na luta online. A guerra na Ucrânia moldará o futuro do mundo inteiro. Se a tirania e a agressão vencerem, todos sofreremos as consequências. Não vale a pena permanecer apenas observadores. É hora de se levantar e ser contado.

Infelizmente, essa guerra provavelmente será duradoura. Tomando diferentes formas, pode muito bem continuar por anos. Mas a questão mais importante já foi decidida. Os últimos dias provaram ao mundo inteiro que a Ucrânia é uma nação muito real, que os ucranianos são um povo muito real e que definitivamente não querem viver sob um novo império russo. A principal questão deixada em aberto é quanto tempo levará para que essa mensagem penetre nas grossas paredes do Kremlin.”

Yuval Noah Harari é historiador e autor de Sapiens: Uma Breve História da Humanidade



SENTIMENTO DE CULPA

 



1958 - Calouro sofre, e não era diferente quando entrei no Santo Inácio. Os alunos do Admissão sofriam bullying dos veteranos, que nos chamavam de “bebês”.

Entre os veteranos havia um anão, que resolveu entrar na onda e me chamou de bebê. “Olha quem fala…”, debochei de volta. O colega dele me mandou um olhar prenhe de censura, apontando para a condição especial do mini-bully.

Morri de sentimento de culpa. Tanto, que resolvi me confessar. Chegado ao confessionário, não sabia qual mandamento teria transgredido, mas meu crime se parecia muito mais com um pecado mortal do que qualquer dos atos libidinosos que praticava assídua e solitariamente.

Expliquei meu crime ao padre, ele não se impressionou, me despachou com uma merreca de três ave-marias como penitência. Eles só gostavam do 6º mandamento. Só pensavam “naquilo”…



O VÍCIO FODÃO/MERDA: UMA FACE DO SADOMASOQUISMO - O AMIGO PERGUNTA

 



Samuel Fernando: “Por que o vício fodão/merda (f&m) é sadomasoquista?”

Francisco Daudt: É de se esperar, esse estranhamento. Quando se pensa em sadomasoquismo, pensa-se numa prática sexual bizarra, com couro, botas, chicotes e algemas. Nunca se pensa num hábito do dia-a-dia, numa prática comum entre colegas de escola, funcionários de escritório, casais, membros da mesma família, “amigos” de redes sociais.

No entanto, o bullying, o assédio moral, a humilhação, o cancelamento, ou qualquer prática que implique fazer os outros sofrerem (sadismo); ou quando alguém se entrega à vitimização, ao deboche e ao sofrimento autoinfligido (masoquismo), de maneira compulsiva e sistemática, isso também se configura como um vício: o vício sadomasoquista.

Lembrando: sua face fodão/merda (f&m) acontece quando uma pessoa se torna dependente de humilhar terceiros, fazê-los de merda, para se sentir superior, se engrandecer a seus olhos e aos olhos dos espectadores, se sentir fodão.

Até o f&m sofre influência da moda: a atual tendência a mostrar superioridade moral nas tretas das mídias sociais é totalmente f&m. O mesmo vale para os caçadores de ofensas. O ofendido exibe sua virtude ao apontar o crime do ofensor, pede seu cancelamento, seu linchamento público: é o fodão “do bem” humilhando o merda, “em nome de valores elevados que ele possui”.

Esse sadomasoquismo f&m começa dentro da cabeça, numa relação perversa entre nós e nosso Superego. Absorvemos, por humilhação externa, a crença de que somos insuficientes, de que devemos ser, no fundo, uns merdas. Nosso Superego sádico nos acusa, julga e humilha, e nós, passivos e masoquistas desse maltrato interno, buscamos alívio através de nós igualar ao Superego sádico e dizer que “merda são os outros”.

É esta a origem do sadomasoquismo f&m: terceirizamos o maltrato de que um dia fomos vítimas. Nós nos tornamos os agressores, e isso nos parece melhor do que sermos os agredidos. Como naquela brincadeira idiota do colégio, o “passa adiante senão vira elefante”: não questionamos o cascudo que o da carteira de trás nos deu, pois dar o cascudo no da frente nos trouxe alívio…



TÉCNICA PSICANALÍTICA - O AMIGO PERGUNTA

 



Alberto Maia: “Que livro de técnica psicanalítica você sugere?”

Francisco Daudt: Nenhum. Vou te contar como se desenvolveu a minha técnica, e daí tire suas próprias conclusões.

É claro que tive dois modelos principais: Freud e meu analista formador, que era freudiano. Li e olhei o que eles diziam e faziam. Deduzi que Freud construiu sua técnica de acordo com seus propósitos. A coisa do divã e da poltrona por trás vieram da hipnose, somada ao fato de ele querer escrever sem que o cliente visse, e de não gostar de ser encarado pelos clientes.

Quando defini meus propósitos psicanalíticos, construí uma técnica para servi-los. É tudo uma sequência lógica: se meus propósitos são estar a serviço do cliente para sua busca da felicidade, devo saber qual o caminho; se creio que esse caminho é o conhecimento do desejo e dos atrapalhadores à sua realização, quero o melhor meio de investigá-los; se estou convencido de que o Superego faz parte dos atrapalhadores, não posso ser um representante do Superego, não posso estar acima do cliente, não posso julgá-lo, fazê-lo sentir-se culpado, humilhado, envergonhado. Quero ser parceiro dele, olhar com ele seus problemas, conhecer com ele seus desejos.

Isso é um começo de conversa. Que se traduz numa técnica, numa postura: quero ser afável, empático, bem-humorado, não fazedor de drama, não misterioso e nem enigmático, não posso deixar o cliente esperando (pontualidade) e quero ter disponibilidade previsível (tempo certo de sessão).

O atendimento on-line, portanto, não foi nenhuma mudança drástica: já não uso o divã há anos. Além de os clientes não pegarem trânsito nem procurarem vaga.



SEXO, PARA OS HOMENS: O PONTO DE VISTA ECONÔMICO

 



Tudo começa pela natureza: homens não engravidam e são encharcados de testosterona (o hormônio sem o qual não existe desejo).

Isso implica, de saída, baixo custo e alto benefício, para a prática do sexo. Como tudo que fazemos depende de motivação, meios e oportunidades, são eles que vão pautar a quantidade de investimento que um homem fará para obter o prazer do sexo.

Grosso modo, pode-se dividir em três tipos, de investimento crescente, a atividade sexual masculina:
1. Custo zero: masturbação.
2. Custo baixo/médio: putaria.
3. Custo médio/alto: sexo pessoal relevante.

Do tipo 1: a masturbação masculina ainda está ligada à natureza. Como é vital para a procriação que os homens emitam seu sêmen, e como para isso é necessário que tenham orgasmo, a mãe natureza praticamente impôs a que todos eles se masturbassem, em algum momento da vida, ou (mais comumente) pela vida afora. O custo é zero, o benefício é máximo. Mesmo no casamento monogâmico, a masturbação é o consolo de não se ter outras pessoas envolvidas. Tive uma cliente que era enciumada das masturbações do marido; expliquei-lhe como os homens funcionam, e que ela era a maior beneficiária.

Do tipo 2: a putaria, também chamada de malandragem, orgia, pegação, sacanagem, transgressão (a sinonímia é extensa, dado o sucesso que faz), é o sexo casual sem compromisso e de baixa relevância pessoal. Requer alguma negociação, coisa inexistente na masturbação.

Desde as “nights” da garotada, à prostituição e aos aplicativos de encontro, o custo não é zero, mas é baixo - mesmo quando caro, seja em dinheiro, seja em investimento pessoal. Isso costuma ser mal compreendido pelas mulheres, que não entendem a falta de relevância que a putaria tem para um homem, e por isso podem ter dela um ciúme desproporcional.

Do tipo 3: quando a pessoalidade começa a ser envolvida, o custo de investimento dispara… e o retorno em benefícios fica mais crítico. Vai desde o pobre coitado, prisioneiro do senso comum, que entra na linha de montagem social “já se formou, já tem um emprego, tem que entrar para o rol dos homens sérios, se casar e fazer família”…

…até o extremo de complexidade, daquele que é capaz de saber sobre seu desejo, e encontrar parceria que com ele encaixe em vários níveis de interseção, e com isso construir um amor companheiro, uma situação de investimento máximo, custo mínimo (pela parceria recíproca) e retorno/benefício inigualável.





ANTIDEPRESSIVOS - O AMIGO PERGUNTA

 



“Como qualifica sua experiência com os antidepressivos?”

Francisco Daudt: Como ótima. Eles são uma ferramenta preciosa para a psicanálise, pois retiram o sofrimento e assim liberam a inteligência do cliente para que possamos tratar do software, que é o objetivo dela.

Andei vendo que há antidepressivos específicos para modalidades diferentes de depressão. Dois em especial me chamam a atenção: o Bromidrato de Citalopran (nome comercial: Cipramil, e outros) e o Oxalato de Escitalopran (nome comercial: Lexapro, e outros).

O Citalopran brilha em depressões típicas (falta de graça na vida e pensamentos catastróficos), mas é um espetáculo naquelas com uma característica pouco conhecida: a irritabilidade e os ataques de fúria. Já preveni que muitos clientes fossem parar na delegacia, por causa da lei Maria da Penha, porque eles estavam usando Citalopran, e nunca mais tiveram ataques de fúria.

O Escitalopran é ótimo na depressões que se acompanham de fobias, síndrome do pânico e ideias obsessivas invasivas.

Lembro-me sempre de Freud dizendo que, no futuro, ele esperava que houvesse fármacos a produzir nos clientes melhoras que a psicanálise não conseguia.

Querido professor, esse tempo chegou!





PRECONCEITOS

 



Aposto que, quando você leu o título desta postagem, pensou que eu ia falar contra os preconceitos, certo? Pois isso foi um preconceito seu.

É impossível viver sem preconceitos. O simples fato de você achar que está entendendo o escrito aqui, já é um preconceito: você está transferindo seus conceitos do significado das palavras ao texto que escrevo… e eu poderia estar chamando urubu de “meu louro”.

O preconceito mais comum da espécie, aquele que tem salvado a vida de milhões ao longo do tempo, é o que diz “se é estranho, é inimigo”. Você abriria mão desse preconceito ao andar por uma rua deserta à noite, ouvindo passos em sua direção?

Se o estranho começa a aparecer com sinais familiares, o preconceito muda de direção: passa a ser preconceito a favor. Mas continua preconceito.

Qualquer aparição pública minha é cuidadosamente pensada para que eu desperte preconceito a meu favor: maneira de falar, de vestir, de cortar o cabelo e aparar a barba. Ou aqui, meu jeito de escrever, a ilustração que escolho para a postagem etc.

Meu filho trouxe um colega de jiu-jítsu para almoçar. Foi quando me dei conta de que um negro entrava em minha casa como convidado social. Durante o almoço, esqueci que ele era negro, pois virou Samuel.

A criminalização do racismo é necessária, porém não suficiente. A culpabilização do preconceito racial é má estratégia, por conter injustiça (estranho/inimigo). O problema não é ter preconceitos, o problema é tê-los pétreos: quanto mais negros virarem Samuel, mais preconceitos a favor competirão com os outros em nossa cabeça, mais flexíveis nossos preconceitos serão, diante das evidências.

P.S. : Tenho consciência de que meu texto pode despertar uma chuva de preconceitos contra mim, tão delicado é o tema.

Mas corro o risco. Tenho um preconceito sobre a inteligência dos meus leitores: é a favor…

(Na imagem do post: Sidney Poitier, em “Advinhe quem vem para jantar”, 1967. Poucas pessoas fizeram mais para diminuir o preconceito racial do que Sidney Poitier: ele era o Samuel em pessoa!)





DESEJO E PRAZER - O AMIGO PERGUNTA

 



De Bony Schachter: “Qual a diferença entre desejo e prazer?”

Francisco Daudt: Grosso modo, é a mesma que entre tensão e alívio. Mas… estamos falando da espécie humana e seu cérebro, a maior complexidade que existe, portanto é melhor ir somando as simplicidades, ir afinando o “grosso modo”.

Fome é necessidade; causa tensão, desconforto, incômodo, desprazer. Apetite é desejo; pode ser prazeroso sentir apetite… por um tempo. Se sua provocação se prolonga, a coisa começa a incomodar levemente, a funcionar como tensão a buscar ação que o satisfaça, mas ainda continua gostosa.

Mas o prazer só virá quando o objeto desse apetite estiver na boca. Dificilmente alguém chamará esse momento de alívio, tão gostoso ele é.

O ponto central está na ligação entre desejo e seu objeto. Se a fome/necessidade pode passar com mingau de aveia, o apetite/desejo quer sorvete de pitanga. Se um é simplório, o outro é complexo, específico.

O mesmo se passa com o tesão. A própria palavra é derivada de tensão, da busca de alívio. Como no binômio fome/apetite, ele vai do simplório desconfortável ao complexo, específico, gostoso. Do “eu tô na secura, qualquer buraco serve” ao “eu quero a sorte de um amor tranquilo, com sabor de fruta mordida”.

O que nos leva a Santo Agostinho: “É necessário um mínimo de bem-estar material, para a prática das virtudes”. Para se conhecer o desejo e a complexidade, é preciso sair da fome e da necessidade.





CONTROLE E ENTREGA

 



Você já viu criança brigando contra o sono. Ela fica chatinha, resmungona, chorosa… até cair desmaiada.

Existem situações que exigem de nós o desligamento dos controles e a entrega total, caso contrário não acontecem, ou acontecem mais ou menos, assim assim…

Não são só as crianças que brigam contra o sono. Adultos obsessivos que não desaceleram, não conseguem parar de pensar, adolescentes com f.o.m.o., e tantos outros que querem controlá-lo, forçá-lo, qualquer coisa, menos “se entregar nos braços de Morfeu” (filho de Hipnos, o deus grego do sono, Morfeu era o deus dos sonhos). Daí vem o sucesso dos remédios que nos põem para dormir na base da porrada.

As funções intestinais e da bexiga são outro exemplo em que controle e entrega precisam conversar. Freud considerou o aprendizado do controle dos esfíncteres como a principal metáfora do nosso processo civilizatório: a famosa “fase anal”. Existe hora de prender, existe hora de soltar; é preciso atender a cultura (usar o local adequado), é preciso atender às demandas do corpo.

Mas novamente, se na hora não houver entrega, se os controles não se desligarem, haverá prisão de ventre, retenção urinária (ou aquela demora horrível no mictório do cinema, com gente atrás esperando) e, pior das inconveniências, eventuais explosões e escapes…

Com o orgasmo é a mesma coisa. Nas mulheres, a relação entrega/orgasmo é mais evidente. Mas com os homens, o mesmo se passa: o pênis tem ideias próprias, é preciso ouvi-lo, respeitá-lo; de alguma maneira, se entregar a seu comando. Querer impor-lhe comportamentos é receita garantida para sua rebeldia: ou não sobe, ou ejacula rápido, ou não ejacula de todo. Mas orgasmo que é bom, nada…





PLANO DIABÓLICO

 



A cliente me descreveu sua vida de filha única, com uma mãe superprotetora, super interferente, super obsessiva, atormentada por pensamentos catastróficos sobre o que poderia acontecer com sua menina (de 52 anos).

“Vou receitar antidepressivo”, disse eu.

“Mas eu não me sinto deprimida”, respondeu.

“Não é para você, é para sua mãe. Se aliviarmos os tormentos dela, vamos aliviar os seus”.

O sucesso foi tamanho que, tempos depois, recebi uma ligação da mãe: “Doutor, minha filha está viajando, o senhor poderia me passar uma receita daquelas vitaminas maravilhosas que eu tomo?”

Posso, claro. Pois tudo segue meu plano diabólico de fazer felizes meus clientes… e a mim também.