sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

TENTANDO ENTENDER O CAPITÃO

 


(Sobre o artigo “Bolsonaro não é louco”, de Ruth de Aquino)

Ruth defende que ele é psicopata, e não louco. Creio que ela acerta um pouco, mas erra muito, principalmente por simplificação. 

A meu ver, a encrenca do capitão é uma soma, uma mistura de:
a) burrice tosca complexada, dessas que se percebem e se negam de forma agressiva, em permanente atitude de defesa por se sentirem sob permanente ataque/crítica.

b) um atroz e invejoso ressentimento da inteligência e da cultura alheias, ao ponto de ver a razão e a ciência como inimigas, e crer que sua opinião prevalece sobre fatos.

c) perversão sadomasoquista semelhante à do Trump, do tipo fodão-merda, que precisa de constante afirmação/adulação para combater sua insegurança, precisa de uma tribo de seguidores fanáticos para se apoiar, precisa compulsivamente de apontar os outros como merdas para se sentir fodão (com a diferença de que Trump não é burro, é principalmente fodão-merda);

d) sim, algum grau de psicopatia, mas não elevado. Um bom psicopata não se sente ameaçado como ele se sente, basta vê-lo no pronunciamento público ao despedir o Mandetta. Ele parecia vidrado, meio atemorizado mesmo; de jeito nenhum estava frio como um psicopata estaria.

O capitão parece acreditar nas besteiras/inverdades que diz, diferentemente de Trump ou Lula. Ele parece crer que seu passado de atleta o imuniza contra a Covid. Isso faz com que ele soe realmente sincero e autêntico, como seus seguidores dizem. Já Trump e Lula mentem com gosto, com o gozo de quem sabe que está fazendo os outros de idiotas. Isso sim, é coisa de sociopata/psicopata.

Enfim, me esforço por entender a complexidade desse fenômeno da democracia representativa, pois que ele realmente representa um significativo percentual da população, daqueles que sempre se sentiram ressentidos e humilhados pelos inteligentes, e veem no capitão sua revanche.


O AMIGO PERGUNTA - “Qual a importância do diagnóstico, em psicanálise?”

O AMIGO PERGUNTA 
“Qual a importância do diagnóstico, em psicanálise?”

Francisco Daudt: Se a psicanálise praticada acredita em doenças, acredita em tratamento e acredita na busca da cura daquelas doenças, ele precisa começar fazendo um diagnóstico.

Para mim, que vim da medicina clínica, foi inacreditável perceber que alguns psicanalistas não se preocupavam nem com diagnóstico, nem com a busca da cura. Que diabo, então, eles faziam? Continuo sem entender. Ouvi de um que “o objetivo da psicanálise era a busca do inefável”. Entendi menos ainda...

Bem, não era problema meu; o que eu tinha em mente era reproduzir na psicanálise o que fazia na clínica médica: a primeira consulta (entrevista) tem como objetivo fazer um diagnóstico; saber o que atormenta o cliente, a causa próxima de sua busca de ajuda, entender os sofrimentos prementes – hoje eu chamo de “tirar as farpas” – para estender minha compreensão aos problemas de fundo, as personalidades (obsessivas, narcísicas, histéricas), as neuroses, os vícios, os estados depressivos etc.
Sem esse mapa, como iniciar a engenharia reversa, a investigação de como se armaram as doenças e os tormentos de meu cliente? Como pensar a estratégia de seu tratamento. Sim, “psicoterapia analítica” significa “tratamento pela psicanálise”. E tratamento supõe doença.

O problema seguinte era montar uma psicopatologia (estudo e classificação das doenças psíquicas). Tente achar um bom livro de psicopatologia psicanalítica, e vai experimentar um bocado de frustrações. Eu mesmo passei anos achando que o Santo Graal da psicopatologia era um livro esgotado de um argentino, indicado por meu analista formador. Finalmente, um amigo esteve em Buenos Aires, achou o livro numa biblioteca e o xerocou! Outra decepção...

Tive que rastrear a obra de Freud (poxa, professor, o senhor poderia ter feito um livro só de psicopatologia, mas não: teve que espalhá-la ao longo de todos eles, e nos dar um trabalhão...), mas afinal consegui montar uma base.

Ela vem se depurando ao longo desses 45 anos de clínica, e estará no meu próximo livro, “O Amigo Pergunta – a psicanálise em linguagem chocantemente clara” (que aguarda o fim da pandemia para ser lançado).

O AMIGO PERGUNTA - “Há limites para uma autoanálise?

 



O AMIGO PERGUNTA 

“Há limites para uma autoanálise? Por que precisamos de alguém que nos ouça para que entendamos a nós mesmos?”

Francisco Daudt: Quando comecei a estudar psicanálise, ouvia que Freud foi a única pessoa que tinha sido capaz de se auto-analisar. 

Depois entendi que isso era conversa fiada, que a proposta do Freud era que, através do aprendido em suas análises, as pessoas seguissem se analisando pelo resto da vida (em “Análise terminável e interminável”, Freud, 1937). 

É isso: ele queria uma transferência de tecnologia para uso autônomo do cliente.

Toda a psicanálise se baseia na confiança depositada em quem escuta, caso contrário não haverá acesso ao que realmente interessa. 

Ao mesmo tempo, essa confiança pode ser doente: o paciente pode querer ser humilhado por seus “crimes”, e o analista precisa entender que a doença está mais no desejo masoquista do que na tal coisa que ele considera crime:

“Doutor, é... eu morro de vergonha, mas tenho que confessar: eu gosto de Fanta laranja!”

Agora a bola está com o analista, e ele pode tomar um de três caminhos: 

a) ele considera que esse é um gosto pervertido, que há sintoma ali, e endossa o sentimento de culpa de seu cliente; 

b) ele acha que isso é uma bobagem, que cada um pode ter o gosto que quiser, desde que não contrarie as leis; 

c) ao perceber que o paciente se condena por algo que, mesmo bizarro, é de sua singularidade, o analista se propõe a investigar a história de como aquilo se tornou condenável (e os danos causados por essa condenação).

O que diferencia a psicanálise da confissão católica é que nesta há pecado, condenação e, se houver arrependimento, absolvição. As leis já estão prontas, o confessionário simplesmente as endossa.

Na psicanálise, você investiga o que o paciente considera crime (seu desejo adoecido) e como foram feitas as leis que moram na cabeça dele (seu superego).

De modo que há riscos e limites na autoanálise, mas também os há na psicanálise com um profissional. Tudo depende do aparelho leitor: se ele for tirânico e impositivo, juiz severo como o Superego é, haverá problemas tanto num caso quanto no outro.

Mas a autoanálise feita por um cliente será sempre bem-vinda como um trabalho conjunto, se o psicanalista tem como desejável aquilo que Freud propôs: a transferência de tecnologia que fará a psicanálise prosseguir, mesmo depois que o cliente der por terminado o trabalho de consultório.

Afinal, é o que se espera que o próprio analista continue fazendo consigo mesmo, interminavelmente...

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

CENTENÁRIO DE CARLOS ZÉFIRO

 




Para mais de uma geração de brasileiros, ele foi o “inventor” da pornografia. Trouxe complexidade, enredo, hesitação, entrega, drama, comédia, romance com erotismo, tudo isso num território árido onde só havia revistas suecas de naturismo.

Depois dele, já na produção de pornografia audiovisual, retornamos ao simplorismo: o homem da pizza e aeróbicas diversas.

Hoje, no império da internet, dispomos de um vastíssimo cardápio pornográfico. Tão vasto ele é que tornou-se, para seus espectadores, uma ferramenta preciosa de aprendizado do desejo.

Rapidamente se troca de vídeo, tendo o desejo por bússola, para aquele que desperta mais tesão. Até que se forme um padrão individual: que tipo de vídeo a pessoa vê? O que é, e quem é, objeto de seu desejo? Que tipo de enredo o toca mais?

Como exemplo, uma investigação de consultório. Só vou escrever as respostas, separadas por ponto e vírgula, mas elas foram tiradas a conta-gotas por perguntas minhas, que podem ser deduzidas:

“Sou um monstro; sou pedófilo; porque assisto vídeos de pedofilia; homossexuais, um adulto possui um menino; não, não é contra a vontade dele, não há violência, há sedução, e o menino gosta, na verdade, ele adora; quem sou eu no vídeo? Eu sou o menino...”

Expliquei para ele que: não, ele não era um monstro. Monstros não aparecem num consultório de psicanálise, pois não têm conflitos com suas monstruosidades. Ele só descobriu que é gay, querendo se sentir um menino, querendo se entregar a um homem mais velho e poderoso.

Imaginei um livro de autoajuda: “Ajuda-te a ti mesmo pela pornografia”...

O AMIGO PERGUNTA - FUNÇÃO DE PAI E FUNÇÃO DE MÃE

 




“Você escreveu, em seu livro ‘A Criação Original – a teoria da mente segundo Freud’ que nós dependemos de uma ‘função de mãe’ e de uma ‘função de pai’ para crescer bem. O que são essas funções? O que o psicanalista tem a ver com elas?”

Francisco Daudt: A função de mãe é a continuação do que o ventre provê para a criança: calor, nutrição, proteção. São suas necessidades. A função de pai “faz o parto”, traz continuamente a criança para o mundo externo, ao atender suas capacidades.

Função de mãe: atendimento das necessidades. Função de pai: atendimento das capacidades.

Há vários “partos” na vida, que dependem do desenvolvimento e do reconhecimento das capacidades da criança. Por exemplo, o desmame, quando os dentinhos começam a nascer; verbalização, quando o choro vai sendo substituído pela voz; caminhar, quando o colo é substituído pela capacidade articulada de se mover. Por aí trabalha a função de pai, atendendo e reconhecendo as capacidades crescentes da criança.

Agora, atenção: esses nomes são simbólicos: qualquer um que cuide da criança, seja pai, mãe, babá, avó, professora, parentes, pode exercer ambas as funções.

Aliás, deve, e em conversa permanente entre as duas funções. Imagine o aprender a nadar: antigamente, a criança era jogada no lago, e que se virasse. Era um terror. A função de pai foi exercida sem considerar as necessidades de proteção e segurança da criança. Sem considerar a função de mãe.

Por contraste: “Ah, não, meu filho não vai na piscina nunca! É muito perigoso!” É outro terror. A função de mãe foi exercida sem considerar as capacidades de ir para o mundo que a criança tem. Sem considerar a função de pai.

Se a coisa for bem feita, as funções de pai e de mãe vão sendo gradualmente assumidas pela própria criança: ela se protege, se nutre e se aquece; ela se capacita. Os adultos são cada vez menos necessários. Os pais vão deixando de ter papel vital, e podem ir se tornando um luxo amoroso na vida dos filhos.

E o psicanalista? Defendo que ele desempenhe os mesmos papéis de cuidados e capacitações, corrigindo as insuficiências da criação de seu paciente.

Exemplo: como exigir de um depressivo a capacidade de reflexão histórica? Sua inteligência está prejudicada pela doença. O primeiro papel será de acolhimento e “operação de tirar farpa” (antidepressivos, resolução das aflições externas imediatas etc). Isso é função de mãe.

Melhorada a situação, farpas removidas, vamos às capacitações: o uso da inteligência recuperada para a análise dos problemas históricos.

É isso: um psicanalista tem que ser pai e mãe.

sábado, 2 de janeiro de 2021

OS 7 PECADOS CAPITAIS E A PSICANÁLISE - 3º PECADO: LUXÚRIA




“Derivado do latim ‘luxus’, é: viço nas plantas (vegetação luxuriante); incontinência animal; libertinagem; lascívia.” (Antônio Geraldo da Cunha).

Sinônimos: indecência; lubricidade; cupidez; depravação; descaramento; despudor; desvergonha; concupiscência.
É evidente que ela está ligada ao nosso desejo sexual. Mas de uma forma particular: a do excesso, da desmesura, daquilo que os gregos chamavam de “hübris”, o lado “over” da natureza humana. Não à toa, ela vem de “luxo”, que é ostentação também.

É o momento de “estar possuído” por um transe animalesco que é mais forte que a pessoa; é o momento da compulsão. “A cabeça de baixo assume o controle”, “não sei o que deu em mim”, “eu não vi mais nada”, “foi aquela loucura”, e tantas outras expressões correlacionadas.

“Trouxe camisinha?”, “tá tomando pílula?”, “Ah, dane-se, agora é tarde...”

A mãe natureza (o DNA) agradece a contribuição reprodutiva da luxúria, a hora em que o Sapiens deixa de lado a sua (suposta) sabedoria e retorna ao bicho solto que nunca deixou de ser. É o “tesão de bode”.

Novamente, é necessário estabelecer as fronteiras entre o desfrute das alegrias da luxúria (uso); e os vícios que ela pode gerar (abuso). O vício, por definição, não é algo do seu uso, e sim algo que te usa, te aprisiona.

Por contraste, a virtude é uma construção da pessoa, que a exercerá como fruto de sua vontade; o vício é uma desconstrução da pessoa, algo que dela se apossa, e que se exercerá sobre ela a despeito de sua vontade. Você é sujeito da virtude; e é objeto do vício.

Em resumo: a virtude é uma construção da pessoa; o vício é uma desconstrução da pessoa.

Já que a reprodução (em nosso caso, o sexo) é o sentido – biológico – da vida, o principal motivador interno que nos aciona, é preciso entender que ele nos é onipresente: até a sobrevivência serve à reprodução. “Ah, mas tem muita gente que não quer ter filho...” Irrelevante. Nós não estamos “programados para ter filhos”, e sim para ter prazer, uma coisa acaba levando à outra, mesmo que a tecnologia sugira que o prazer, no futuro, será principalmente masturbatório.

Então, é necessário ter carinho e respeito com o que nos causa prazer. Já existe culpa demais associada ao prazer, ao longo de milênios de cultura: “Tudo que é bom, ou engorda, ou é pecado” é a síntese de nossa má consciência ligada ao prazer.

A conversa é, pois, entre dirigir e ser dirigido; o Eu como sujeito (Ego) x Algo em mim me comandando (Id). Todos os exemplos de vício, que serão abaixo mencionados, têm essa complexidade e essa conversa:

Paixão. Do latim “passio”, permite apenas uma tradução: sofrimento. Ela pode/costuma ser um “estado alterado da mente”, pode ser sublime e pode ser origem do crime passional, do stalker, do domínio/submissão, do sadomasoquismo.

Drogas. Falando em estados alterados da mente, a luxúria se serve das drogas, as drogas se servem da luxúria. Lembrando: o álcool continua sendo a mais comum/danosa delas, quando transformado em vício/doença.

Fetichismo/sadomasoquismo/domínio-submissão. São meios de lidar com a luxúria sem ter que lidar com a outra pessoa. O outro não existe, é apenas um fantoche a serviço da desmesura do nosso desejo.

Enfim, se há um território em que o desejo conflita com o Superego, odeia o Superego, ao Superego se submete, ou dele se vinga, ou a ele se aprisiona, esse é o território da luxúria.

(Ilustração: Pieter Bruegel, séc. XVI).
 

OS SETE PECADOS CAPITAIS E A PSICANÁLISE - AVAREZA

 




Sinônimos: pão-durismo, apego, avidez, mesquinhez, sordidez, sovinice, tacanhez, usura.

Controle, é do que se trata.

Freud usou as fases do desenvolvimento do bebê descritas por Karl Abraham, e retratou a fase anal como a primeira grande queda de braço entre um pequeno ser, que já consegue controlar seus esfíncteres, e as exigências impostas pela sociedade: é preciso usar adequadamente o banheiro.

Isso poderia ser o aprendizado de um conforto (reconheça-se, ir ao banheiro, em vez de se sujar todo, é um conforto). Mas não, se os pais o exigem do jeito deles, na hora deles, na quantidade que eles querem...

A rebeldia da criança pode ter uma fase transgressora em que ela prende no vaso e solta na sala (já é uma afirmação de “Eu controlo, e controlo errado, tá bom?”). Digamos que seria uma reação hippie da criança, contracultural.

No outro extremo está a reação hipercultural: “Eu controlo tão bem, mas tão perfeitamente, que ninguém nunca mais precisará mandar em mim, nem sequer me corrigir. Eu sou perfeito! Eu me antecipo!” Estão lançadas as sementes do caráter obsessivo.

O equivalente menos concreto a esse “soltar a merda” seria o “mandar à merda”: o gerenciamento civilizado da raiva.

A raiva é essencial para corrigir as injustiças que sofremos. Mas se a criança aprende, nesta nova queda de braço com a cultura, que raiva é feio, e que ela não deve soltá-la nunca, novamente ela pode ter duas reações extremas: a briguenta contracultural; o bonzinho obediente hipercultural. O primeiro espalha merda (metafórica) por onde passa; o segundo sofre de prisão de ventre (também metafórica, torna-se retentivo).

Poderia parecer que a avareza seria exclusividade do retentivo, mas ela é risco dos dois extremos: eles são prisioneiros da necessidade de controle (o segundo controla onde se descontrolar).

Mais uma vez: nada contra a obsessividade, ela é ótima... quando nos é um instrumento. O problema é quando ela passa a mandar em nós.

Os vícios comportamentais derivados da avareza são todos de excesso de controle. O de domínio/submissão: tanto o tirano que não divide poder com ninguém, que impera sobre seus súditos com mão de ferro, seja em casa, no trabalho ou na política; quanto o dominado, que diante dele rasteja: ambos aprisionados ao mesmo ventre.

Sim, você entendeu bem, domínio/submissão é quase igual a sadomasoquismo, só que diferente.

Mas uma história de consultório une os dois: “Quando eu pagava as putas, mesmo sendo aquela miséria, as desgraçadas estavam me fazendo sangrar, tirando o meu dinheiro! Ah, elas iam me pagar de volta! Por isso, o meu sexo era o mais violento possível, elas choravam de dor, eu as xingava de vagabunda, de ladra. Eu as esculachava... e elas adoravam!”

Repararam a dor da avareza? Ele “sangrava” o dinheiro...

Outro vício derivado da avareza é a acumulação. Nada pode se perder; há uma dor, um sangramento em se jogar fora ou dar alguma coisa. A racionalização é de que “isso pode ter alguma utilidade, mais tarde; nunca se sabe...”

Uma acumulação curiosa é a que une retenção à “bondade”: os acumuladores de cães e gatos. Eles não perdem nenhum, e ao mesmo tempo exercem sua hiperbondade: sentem pena dos bichinhos desvalidos.

Está tudo sob controle. É tudo sobre controle.

(Na foto, Ebenezer Scrooge, “Christmas Carol”, Charles Dickens)