terça-feira, 22 de dezembro de 2020

OS SETE PECADOS CAPITAIS E A PSICANÁLISE



Apesar de serem assim chamados, os pecados capitais não são pecados em si, são tendências viciosas que se tornam “cabeças” (capitis, em latim) de atos pecaminosos, dão origem a eles. 

São eles: soberba; avareza; luxúria; ira; gula; inveja; preguiça. Comecemos pela...

SOBERBA:  imodéstia, afetação, arrogância, atrevimento, convencimento, desdém, egoísmo, empáfia e presunção são alguns de seus sinônimos.

A atitude de alguém que “se acha”, ou pior, que “se tem certeza”, pode ser episódica, ocasional, relativa a um assunto. Será lamentável, mas até aí não houve nem pecado nem vício. Quando não é doença, psicanálise não tratará dela.

Mas quando ela toma conta da pessoa, aí sim, temos um vício, uma doença. Por definição, um vício é um acontecimento mental (com ou sem ato externo) compulsivo (“mais forte do que eu”), repetitivo, alugador da mente, monotemático, que causa satisfação imediata, e dano a si e/ou aos outros em médio/longo prazo.

O principal vício derivado da soberba é o sadomasoquismo, em vários graus de sutileza. Nele, há um que humilha e fere, e outro que é ferido e humilhado. 

Isso vai desde a caricatura sexual de botas, chicotes, algemas etc., até a crítica ferina, demolidora, sarcástica, irônica, que passa o rodo, que achincalha, esculacha, dói, machuca e... humilha.

O sadomasoquismo sutil do fodão-merda (winner-loser) é o vício comportamental mais disseminado em todo o mundo: o daquele compensa a própria insegurança, sua baixa autoestima, através de humilhar os outros. Basta olhar as tretas de internet para vê-lo em ação. Há até presidentes em grandes países que são caricaturas do fodão-merda, em constante necessidade de afirmação de seu poder.

Você dirá que entende isso da parte do sádico, mas... e a do masoquista? É que não há só sádicos ou só masoquistas; uma pessoa é escancaradamente sádica e sutilmente masoquista. E vice-versa. O “masoquista” se envolve no jogo com a secreta nobreza do martírio. Ele, que apanha, é grande, superior; o outro, que bate, é inferior, um merda. Mas jamais ouvirá isso do mártir...

Yuval Harari, em seu “Sapiens”, aventa a hipótese curiosa de que a soberba seja parte da natureza humana: nós somos o único animal que tem consciência de sua fragilidade, e efemeridade; o único sabedor de que a morte o espera. 

Isso nos compele a passar a vida afirmando nossa força e negando nossa morte através de uma grandeza inventada: é a soberba


O DECLÍNIO DA NEUROSE E A ASCENSÃO DO VÍCIO

 



Um dos culpados disso é o próprio Freud.

Mas, vamos por partes. Quando Freud inventou a psicanálise, os costumes eram tais que faziam da neurose a principal doença psíquica. Seus sintomas esquisitos deram a pista de que havia forças se movendo nos infernos da mente. Sua investigação levou à descoberta do inconsciente reprimido, de um Superego, dos desejos proibidos, do conflito interno entre os dois, que resultava na neurose.

A neurose histérica, o exemplo típico: na época, o desejo sexual da mulher era visto como coisa reprovável, impensável mesmo. Os princípios morais que o reprimiam estavam lá, o Superego vigiava... mas não eliminava o desejo. Quando ele aparecia, o horror interno, a culpa, a perturbação e a angústia causados levavam a um mecanismo de defesa automático e involuntário: a repressão (também chamada de recalque; em alemão, “verdrängung”, “desalojamento”).

Anna O. viu o pênis do pai pelo pijama entreaberto; o desejo de tocá-lo se despertou; a mão avançou em sua direção, o conflito desejo/Superego se deu, e... a repressão entrou em cena: a mão travou, o desejo sumiu da consciência, e em seu lugar surgiu o sintoma histérico: aquela mão estendida e paralisada.

Como diz o termo em alemão, houve um desalojamento: o desejo saiu de cena, e em seu lugar entrou o sintoma. Sim, aquela mão paralítica estendida contava um drama, deixava pistas, era a solução de compromisso entre o desejo e a proibição... 

Mas essa é outra história. Nossa questão aqui é sobre como a neurose foi sumindo (já não se veem sintomas histéricos) e foi dando lugar aos vícios.

Os vícios são resultado de outro mecanismo de defesa contra a crítica do Superego. Enquanto na repressão o Superego torna o desejo impensável, nos vícios eles são pensados, reconhecidos como errados, mas a pessoa se afirma rebelde ao Superego e diz “Foda-se, vou fazer!”

Parece melhor que a repressão, mas... não é. Porque mantém o Superego alimentado, desta vez pela rebeldia, mantém a pessoa prisioneira dele, só que pela vingança. Afora o fato de que os vícios, bem, eles não fodem o Superego, quem se fode é a pessoa.

Freud foi um dos culpados, pois ajudou a que se confundisse repressão com opressão; autoritarismo com autoridade. Os analisados não queriam a mesma culpa que eles atribuíram aos pais deles, e passaram a mimar os filhos. Quando os filhos mimados cresceram, entraram em choque com a dura realidade da vida e disseram, “Foda-se, quero o mimo!”, agora via maconha e congêneres.

Além dos vícios de substâncias, vícios comportamentais prosperaram, todos eles vingativos contra o Superego: o fodão-merda (derivado do “winner/loser” americano); o vitimismo (quando a vítima almeja tornar-se tirano, como indenização pelo que sofreu); o bosta n’água parasita (o mimo como direito adquirido) etc.

Os outros fatores do declínio das neuroses, só por registro pois o assunto é longo, são sociológicos, que repudiaram qualquer autoridade (vistas como autoritarismo), as utopias dizendo que “é proibido proibir” etc.

A neurose que ainda resiste é a obsessiva. Mesmo assim, em suas manifestações menos “neuróticas”, como na síndrome do pânico, no terror dos palcos e de performances, e nas depressões.


O AMIGO PERGUNTA - “Qual a diferença entre ansiedade e angústia?”

 


O AMIGO PERGUNTA

“Qual a diferença entre ansiedade e angústia?”

Francisco Daudt: Angústia é medo, sentimento de ameaça; ansiedade é querer que tudo aconteça logo, fazer tudo logo, pra acabar logo, pra ver se deu certo logo. Elas são aparentadas, porém diferentes.

Angústia, na origem, significa aperto, estreiteza. Os médicos chamam de “angina” (angor pectoris) a dor com aperto no peito causada pela insuficiência de oxigenação do miocárdio (conhecida como “ameaça de infarto”). “Angst” é medo, simplesmente medo, em alemão.

De forma que podemos traduzir angústia por medo, é o jeito mais simples. O medo causa um aperto, mais na boca do estômago, e em outras partes anatômicas (daí o “quem tem cu, tem medo”).

Mas, se a casa começa a pegar fogo, sentimos um medo inequívoco que nos faz fugir.

O medo/angústia é mais sutil, ele acontece a partir do que diz nosso Superego: “Vai tudo dar errado, a sifudência te aguarda, ninguém mais vai gostar de você!” Ele pode ser causado por raiva complicada, p.ex.: você está irritado com uma pessoa amada; não é nada simples mandá-la às favas, você não sabe como resolver essa raiva, a ameaça de desamparo aparece... e com ela, a angústia.

É preciso, pois, distinguir uma angústia produtiva de uma inútil. A primeira, como no incêndio, nos leva a tomar providências de correção da causa. A segunda pode ser resultado de um aparelho leitor distorcido: um Superego cruel, uma depressão.

Mas pode ser resultado de uma condição diante da qual estejamos impotentes, pelo menos temporariamente, como a pandemia, enquanto a vacina não vem.

Cabe ao psicanalista fazer a distinção, entender o processo que causa angústia, para torná-la cada vez mais sinal de que providências precisam ser tomadas. Tornar o cliente mais e mais dono de sua vida e de seus processos. Aumentar sua capacidade de resolver seus problemas.

A ansiedade é uma coisa curiosa: pode ser “do bem” (“estou ansioso pelas minhas férias”; “o melhor da festa é esperar por ela”); mas pode ser “do mal”, consequência de um caráter obsessivo perfeccionista que passou de giro e começou a mandar na nossa vida, um querer controlar tudo, resolver tudo com antecipação de anos... Essazinha aí precisa ser tratada.


sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

O AMIGO PERGUNTA - Como a psicanálise trata dos sonhos?

 



O AMIGO PERGUNTA

Como a psicanálise trata dos sonhos?

Francisco Daudt - Sonhos: uma esquisitice que intriga a humanidade desde sempre. Inúmeras tentativas foram feitas para entendê-los, com mais e menos racionalidade; um campo em que o pensamento mágico sempre imperou.

Freud os abordou com espírito científico: observou os mais típicos e os mais rudimentares, os sonhos infantis, alguns sonhos eróticos e os que davam um jeito de nos manter dormindo. 

1. Os infantis realizavam desejos frustrados, como ter ido para cama sem poder comer o doce da sobremesa (castigo da mãe) e se regalar com eles durante o sonho.

2. Alguns sonhos eróticos se parecem infantis: muito tesão na pessoa inalcançável/proibida, sonho erótico com ela, com direito a orgasmo. 

3. Sonhos de comodidade: a bexiga me pressiona para acordar, eu sonho que estou indo ao banheiro, procuro o banheiro, faço um pouco de xixi... e continuo dormindo. O meu predileto é o da ronda noturna: o médico de plantão tinha que fazer visita aos leitores da enfermaria no meio da madrugada.Ele sonha que acordou, se vestiu, fez as visitas de maneira minuciosa... e voltou pra cama.

Foi baseado nesses sonhos primitivos que Freud fez sua hipótese: os sonhos lidam com desejos impedidos durante a vigília. Eles “negociam” com os impedimentos (morais, do superego) e disfarçam os desejos mais complicados, como violência raivosa contra entes queridos: a cliente atormentada com o filho pequeno que chorava sem parar (mãe solteira, ainda por cima), sonhou que um ladrão entrou pela janela e matou o filho com uma machadada na cabeça.

Agora, interpretar sonhos não é coisa fácil. O próprio Freud abandonou o “Freud explica” de interpretações automáticas em favor de investigação cuidadosa feita a partir das associações livres do próprio paciente.

Ele concluiu que, se interpretasse o sonho usando seu conteúdo de memória, estaria pondo coisa dele na história do paciente, e isso conduziria ao erro. 

Os mamíferos sonham. Todos eles tem a fase REM do sono (rapid eyes moviments), que corresponde ao tempo em que os olhos acompanham os estímulos visuais do sonho. É possível ver os cachorros muitas vezes se mexendo e chorando durante o sono. O sonho parece ser um reboot mental estabilizador, feito para preservar o sono. Já o sono é o verdadeiro reboot do supercomplexo sistema cerebral, que se sobrecarrega e “fica lento” ao longo do dia. 

A ideia de dormir começa com “desligar o mundo externo”: descanso muscular, escuridão, temperatura confortável, silêncio. Os cinco sentidos não incomodam, o cérebro vai desligando. Todos os bichos procuram tocas e proteção para dormir (humanos inclusive), justamente pelo período de vulnerabilidade. A exceção são os topos das cadeias alimentares, com as baleias, que flutuam na posição vertical ao dormir, é bizarro. 

Na psicologia evolucionista está acontecendo um triste fenômeno, parecido com o que aconteceu com a psicanálise: o “Darwin explica”. As pessoas estão pirando na maionese com explicações ad hoc para tudo... Oh Lord....

O AMIGO PERGUNTA - Adrilles Jorge: “Caetano disse que seu tempo na prisão apagou sua atração sexual por homens. O meio influencia a orientação sexual das pessoas?”

 




O AMIGO PERGUNTA 

Adrilles Jorge: “Caetano disse que seu tempo na prisão apagou sua atração sexual por homens. O meio influencia a orientação sexual das pessoas?”

Francisco Daudt: Atenção que aí vai spoiler: a resposta é NÃO. Mas vamos aos argumentos, para que esse “não” seja melhor compreendido.

Motivação, meio e oportunidade. Cada ação humana precisa dessas três condições para acontecer. 

A orientação sexual habita o território da motivação. Ela só é conhecida pela pessoa (às vezes, nem tão conhecida assim). Para se transformar em ação, vai depender dos meios e oportunidades que se apresentarem.

É claro que a pergunta se refere ao meio, ao ambiente em que se vive, tanto que Caetano fala da cadeia, como meio inibidor/apagador de UMA orientação sexual dele.

Mas, como assim, UMA orientação? Existem outras? Na mesma pessoa?

Sim, existem. Vamos tomar o caso dos homens, porque suas orientações sexuais são mais fáceis de ler. Como nosso tesão é principalmente visual, a pergunta “para onde vão seus olhos?”, determina sempre a PRINCIPAL orientação sexual de um homem.

O relatório de Alfred Kinsey produziu uma escala de sete tipos (de 0 a 6) de acordo com a resposta dada à seguinte pergunta: você já teve orgasmo com outro homem? As respostas são: tipo 0/nunca ; tipo 1/raramente ; tipo 2/frequentemente ; tipo 3/equivalente ; tipo 4/principalmente ; tipo 5/quase que exclusivamente ; tipo 6/exclusivamente.

É claro, Kinsey era um taxonomista obsessivo, ele não poderia usar critérios subjetivos na pesquisa, eis porque escolheu o orgasmo partilhado.

Mas eu, em 45 anos de clínica, pude adaptar a pesquisa de Kinsey para outra pergunta, desta vez subjetiva: você já se sentiu atraído/teve tesão por outro homem?

Como resposta, a escala Kinsey quase que se repetiu; com a exceção do tipo 3: nunca encontrei um bissexual equivalente. Sempre houve uma predominância na orientação sexual, mesmo que o cara nunca tivesse encostado um dedo em outro homem. Ou numa mulher, pois já pesquisei a coisa em adolescentes virgens de interação erótica. Eles tinham abundante motivação, mas faltaram-lhes os meios e as oportunidades.

Voltando então à pergunta inicial: o meio em que se vive pode perfeitamente determinar a PRÁTICA sexual, mas não vai alterar a motivação, a orientação.

Suponha um tipo 1, hétero com eventual desejo homo. Para ele, é moleza cancelar sua prática homoerótica. Aliás, é o que mais acontece, basta ver a patrulha homofóbica da maior parte das turmas de amigos homens. A pequena sub-orientação de vez em quando vai dar um alô, mas ele a varrerá para debaixo do tapete.

Agora peque um tipo 4, homo com frequente desejo hétero. Faça ele se ordenar padre e ponha-o como professor de apetitosos petizes. Ah, o desejo hétero vai ser facilmente esquecido...

Resulta então que as orientações principais não mudarão, mas o meio em que se está vai pesar fortemente na balança custo/benefício, e vai determinar qual das orientações será levada à prática.

Psicanalista Francisco Daudt diz por que ativos se sentem superiores e passivos inseguros (Observatório G)

 Matéria original do Observatório G

 


sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

O “CONFIÔMETRO”



“Sem noção” veio aposentar a antiga “falta de desconfiômetro”, que designava o problema daquela pessoa desprovida de sensibilidade para perceber que não está agradando, que está invadindo, sendo inconveniente e inoportuna.

Mas... e o “confiômetro”, que ninguém fala nele? No entanto, ele é um poderoso e ativo aparelho cerebral que não desliga nunca. A confiança que temos em algo ou alguém está sempre sendo medida, mesmo que a gente não perceba. Como os papéis da bolsa, ou está em alta, ou estável, ou em queda... ou some completamente, pode reparar.

A mãe do cliente descobriu que ele andava cheirando cocaína e deu-lhe uma dura. Passou meses revistando suas coisas e armários. Um dia ele lhe disse: “Mas mãe, faz um tempão que eu nem chego perto!” E ela: “Ah, meu filho, quando a gente perde a confiança, leva um tempão para recuperar...”

Confiança. Do latim cum + fides, com fé, com crença, com crédito. Olha só a importância dela em nossas vidas: fiança, fiado, fiador, fiel/infiel, confidente, confidência/inconfidência, confiado/desconfiado etc. A lista é enorme.

Reputação é um bem precioso que depende totalmente da confiança. A coisa é tão séria que, diz o ditado americano, “a fama dura quinze minutos; a infâmia é para sempre”.

Esse negócio de “ponho a minha mão no fogo”, desculpe, mas é conversa fiada. É como diz a plaquinha na venda: “Fiado, só amanhã”. Ou como disse o marechal Floriano Peixoto: “É preciso confiar desconfiando”. 

“Fé cega” é um estado alterado da mente, maluquice própria de fanáticos,  que desejam a “morte aos infiéis”. Se você estivesse seguro de sua fé, por que haveria de desejar a morte de quem não crê? Mas... é como disse Beto Guedes: fé cega, faca amolada. É preciso muita amolação para se manter os olhos fechados à desconfiança, para se desligar o confiômetro.

Como era de se esperar, a confiança também é a base da boa psicanálise. Os clientes chegam me dando um “crédito de confiança”, pois fui indicado por alguém em que eles “botam fé”. Eles me dirão (ou não) coisas que nunca ousaram dizer para ninguém, ou até para si mesmos; tudo vai depender de mim e da confiança que neles despertar.

Claro, o contrato de confidencialidade que a psicanálise implica é base de tudo. E eu que esteja atento, pois a cada sessão a confiança está sendo posta à prova.

O psicanalista que chama de “resistência neurótica”, que desrespeita a desconfiança do paciente, está arruinando um dos mais preciosos instrumentos da nossa saúde mental: o confiômetro.

CONSCIÊNCIA DE SI – O APARELHO LEITOR



Há uma estranha espécie de macaco que sabe que existe. Não apenas sabe, mas sabe que sabe: o Homo Sapiens.

Você está lendo este texto, é capaz de olhar para dentro de si e pensar, “Eu sei que existo, que penso, que desejo, que sou pouco mais que um marionete de um DNA que vem se replicando sem interrupção há 3,4 bilhões de anos, feito por ele para tocá-lo adiante, cheio de softwares inatos que a ele servem, ainda por cima sei que vou morrer e ser esquecido, mas... eu tenho uma pequena margem de arbítrio sobre este meu tempo de vida, posso tentar algum sentido próprio para ela. Caramba, que bicho estranho sou eu!”

A consciência de si é mesmo muito estranha. Linæus, o cara que batizou nossa espécie, deve ter tirado o nome dela a partir de seu grupo de amigos intelectualizados. A capacidade de reflexão, de olhar para seus próprios pensamentos, não é – apesar do nome da espécie (o homem que sabe que sabe) – algo comum. Se Linæus fosse mais realista e fizesse uma pesquisa de campo, chamaria nossa espécie de Homerus Simpsonium.

Sim, Homer Simpson retrata a imensa maioria da humanidade de maneira mais fiel e crível. Nossa principal tendência é a reação e o imediatismo, não é a reflexão. 

Imagine um dos nossos ancestrais caçadores-coletores vendo um bando de amigos em desabalada correria, e parando para pensar: “Qual o sentido de se ficar correndo por aí? Por que as pessoas correm, afinal? Tenho eu vontade de correr ou não?”

Esse foi provavelmente devorado e não deixou descendentes. Os reativos da correria, sim. Eis porque eles são maioria.

Ainda assim, todos temos alguma capacidade de reflexão, alguma consciência de nós mesmos, Homer Simpson inclusive.

Mas aí entra a questão principal aqui tratada: como nós nos vemos? Quando alguém diz “eu tenho consciência de que a humanidade caminha para...”, faz isso a partir de um aparelho leitor, usando uma lente variável; não existe essa coisa de “ter visto a verdade definitiva”. A ciência nos ensina que o observador influencia o resultado da experiência, que dirá a leitura dos fatos.

Meu melhor exemplo é a depressão: a mente depressiva olha os fatos (e o destino) com a pior das lentes, com um viés catastrofista. Tudo vai dar errado, tudo está destinado ao fracasso, nada adianta, nós não valemos nada, não há graça no mundo.

Duas semanas de um antidepressivo moderno... e a lente muda. A realidade anterior deixa de ser... real. A consciência de si mesmo ganha uma nova perspectiva, a pessoa entende que ela estava ligada a um problema de hardware, ela se dá conta de que é preciso questionar o aparelho leitor que mora em nós.

Esta é a principal função da psicanálise: mudar o aparelho leitor com que nos vemos e nos julgamos. Permitir uma releitura de nossa história. Buscar justiça, nessa nova visão. 

E com isso, aumentar nosso arbítrio e construir melhor nossa realidade.

Natureza Humana: Raiva injusta



Desde que nascemos, a coisa mais difícil de se gerenciar (além do erotismo) é a raiva. A raiva nos surge em qualquer percepção de injustiça por nós sofrida, e ela é fundamental para que tenhamos força e motivação para corrigir essa injustiça. Sem indignação não há justiça, dessa forma podemos dizer que A RAIVA É MÃE DA JUSTIÇA.


A justiça, por sua vez, vem da avaliação do tipo de troca que estabelecemos com o mundo, e que o mundo estabelece conosco. Se a troca é justa, é acertada, é equivalente, sentimos paz. Se nos tiram, nos subtraem, nos abusam, sentimos raiva. E a raiva busca um acerto de contas, ou seja, justiça. Isso não é aprendido, nasce com a gente.


Uma criança opera sua raiva de forma... infantil: sai batendo, sai gritando, sai chorando, muito devido à sua impotência frente à raiva. Cedo a cultura (i.e., o Superego) lhe ensina que isso é errado. Mas não lhe ensina o que fazer para operar sua raiva de maneira civilizada em busca de justiça. A principal função do Estado, desde que foi inventado após a revolução agrícola, há uns onze mil anos, é exatamente a de mediador de conflitos e promovedor de justiça. O cidadão abre mão do uso da violência em causa própria e entrega ao Estado (a quem sustenta com seus impostos) a mediação de seus conflitos, sua segurança contra o crime e a predação,  a promoção de justiça, enfim. 


Haveria dois lugares onde o gerenciamento da raiva deveria ser ensinado: a casa e a escola. Infelizmente, tal não acontece, nem em uma, nem em outra. Ambas se reúnem para reprimir a raiva, mostrá-la como algo feio e errado, algo a ser suprimido, a ser substituído pela “bondade”. O resultado é isso que vemos: doença neurótica obsessiva, ou transgressão sadomasoquista. A obsessividade funciona sobre dois eixos: pureza e controle. A principal “pureza” que o obsessivo busca é a ausência de maus sentimentos, do rancor, da vingança, da maldade. Seu ideal de controle serve aos mesmos propósitos de busca de pureza: arrumação, pontualidade, higiene e limpeza exageradas, um mundo perfeito de ordem e de paz. Quanto mais raiva a reprimir, mais rejuntes de azulejos a serem limpados com cotonete, mais quadros tortos a acertar. Mas… a injustiça que causou aquelas raivas continua sem ser corrigida.


O sadomasoquismo é também ineficiente. Primeiro porque ele é deslocado: um menino que tortura animaizinhos não está corrigindo a injustiça original, está é arranjando mais encrenca para si mesmo. Depois porque ele vicia, a criança fica apegada a seus jogos malvados (o bullying é um exemplo típico), sendo ativamente cruel, e assim repassando a crueldade que sofreu, perpetuando a injustiça. Quem não se lembra do “passa adiante, se não vira elefante”? O aluno da carteira de trás dava um cascudo no da frente, e o da frente, em vez de corrigir o malfeito, tornava-se malfeitor também.


Mas nem toda raiva é fruto de um clamor justo: há raivas injustas. A mais típica é a inveja. Se fulano tem um carro melhor do que o meu, não é justo que eu acredite que ele está me sacaneando por isso… apesar de o sentimento ser esse. Esta é a principal dificuldade para se chegar a um bom conceito de justiça social, por exemplo: ela é frequentemente concebida como uma igualdade de posses, em vez de se pensar em igualdade de oportunidades, e em igualdade frente às leis, essas sim, os pilares da democracia.

Já os ciúmes, apesar de poderem ser clamor injusto, muitas vezes são raiva justa: se uma criança é completamente negligenciada pelos pais porque nasceu um bebê novo na casa, ela está coberta de razão para sentir raiva da situação.


Meu ponto aqui é que nem toda raiva é coisa feia a ser reprimida, e pode ser olhada com a seguinte pergunta interna: “onde estou sendo injustiçado, e o que posso fazer para corrigir isso?”; mas também que nem toda raiva contém um clamor indiscutível de justiça.



domingo, 29 de novembro de 2020

O AMIGO PERGUNTA - “O que é consciência, em psicanálise?”

 


O AMIGO PERGUNTA 

“O que é consciência, em psicanálise?”

FD: É uma pequena janela por onde nossa atenção olha; aquilo que é visto fica consciente para nós.

Freud fez essa divisão, na primeira vez em que ele esquematizou nosso aparelho psíquico (ou “mente”): havia um enorme arquivo de memórias e impulsos (o jeito como ele chamou o equivalente aos instintos animais, em nós) no INCONSCIENTE. Inalcançável e inatingível pela nossa vontade, mas podíamos deduzir que ele estava lá pelos sinais de sua existência, como os sonhos, p.ex.

Em seguida, outro departamento cheio de memórias: o PRÉ-CONSCIENTE. Esse é relativamente fácil de acessar, basta que nossa atenção se volte para ele. Como exemplo, agora vou falar de algo que estava até então no seu pré-consciente, mas... no momento em que você vir a palavra, sua atenção se voltará para aquele arquivo e a memória se tornará consciente: seu pai.

É, eu sei, você não estava pensando nele, mas um monte de memórias apareceu com as simples letrinhas finais do parágrafo anterior.

Foi por isso que Freud nem deu espaço – no desenho que fez – para o CONSCIENTE: ele é muito pequeno e fugaz, completamente dependente da nossa atenção.

Enquanto você lê este texto, sua atenção pula para fora e para dentro, ligando as palavras lidas a seus sentidos, a suas memórias pré-conscientes (e elas se tornam conscientes nessa hora), a pensamentos e deduções provocados pelo texto etc.

É claro, sua atenção também pode pular para súbitas mensagens que apareceram na tela do celular, para aquela vontade de beliscar alguma coisa na cozinha...

E se ela pular muito, você pode até não ter chegado aqui no texto. Hoje em dia, chamam isso de DDAH (“distúrbio de déficit de atenção e hiperatividade”), mas para ser sincero, a principal razão pela qual nossa atenção é desviada está na chatura dos textos.

O AMIGO PERGUNTA - “O que você faz quando o problema não é do cliente, e sim de alguém próximo a ele?”

 


O AMIGO PERGUNTA 
“O que você faz quando o problema não é do cliente, e sim de alguém próximo a ele?”

Francisco Daudt: Nada... a menos que o problema do outro seja, afinal, um problema do cliente. Inúmeras vezes diagnostiquei e sugeri médico, advogado etc. para problemas que acabavam afetando meus pacientes.

Mas dois casos são cômicos e ilustrativos. A mãe idosa da paciente a estava levando à loucura. Era uma irritabilidade claramente depressiva, e a mãe, autoritária e teimosa, se recusava a ir a médico ou achar que havia algum problema com ela. 

Eu disse à paciente: “Você vai comprar esse antidepressivo”. “Mas eu não estou deprimida”, disse ela. “Não é para você, é para sua mãe. Eu sei que ela não aceita remédios, você diga que é um revitalizante supermoderno para idosos” (o que não é, afinal, uma mentira).

A mãe adorou, a vida da minha paciente mudou significativamente para melhor. Tempos depois, recebo um telefonema da mãe (os telefones funcionavam, na época): “Doutor, minha filha está viajando, o Sr. poderia me dar uma receita daquela vitamina maravilhosa que eu tomo?”

O segundo caso é do marido da cliente, supostamente sofrendo de impotência. Já havia tentado de tudo... e nada. Ele nem chegava perto dela; se se beijavam, logo ele arranjava uma desculpa para se afastar.

Só que aquilo não me parecia impotência, e sim inibição. O marido não era chegado ao pensamento reflexivo, não adiantava “conversar” com ele. A meu ver, ele chegava na cama com uma tonelada de cobranças e culpas, com enormes expectativas de desempenho. Convenhamos, é um conjunto de pensamentos nada inspirador.

Como a coisa se arrastava por meses (em todos os sentidos), expliquei minha impressão à paciente e a instruí. É isso mesmo, fiz um côutchingue sexual para ela.

Na noite seguinte, os dois na cama, ela disse ao marido: “Não quero sexo, quero chamego e beijinho; mesmo se você se animar, eu vou dizer não. Só quero poder usar o vibrador e ter um orgasmo, enquanto a gente se faz carinho”. 

Docemente constrangido, ele concordou... e foi um sucesso. Terminada a função, ele comentou: “Mas é tão simples assim? Que beleza!”

Quando amanheceu, ele lhe disse: “Sonhei que te comia... e foi ótimo; na verdade, eu estou com vontade de te comer agora!”

E comeu.










sexta-feira, 27 de novembro de 2020

O AMIGO PERGUNTA - Clô Franklin: “Qual é a relação entre autoestima e o Superego? É possível ter autoestima quando se tem um Superego cruel?

 




Clô Franklin: “Qual é a relação entre autoestima e o Superego? É possível ter autoestima quando se tem um Superego cruel?

Francisco Daudt: É uma relação fortemente... negativa. Quanto mais cruel o Superego, mais a gente briga com ele, e isso quer dizer ora se submeter às suas críticas (e se achar um merda), ora se identificar com ele e criticar os outros (e posar de fodão, dizendo que merda são os outros).

Só que a doença, o vício fodão-merda passa ao largo, passa longe da autoestima. Quando a pessoa se sente um merda, claro que a autoestima está arruinada. Mas quando ela posa de fodona, também!
Um fodão é um inseguro; ele precisa de afirmação constante para não se sentir um merda. Isso não é autoestima elevada.

O que nos leva a perguntar: afinal, o que é autoestima?

Estimar-se é estar em paz consigo mesmo; é estar “na sua”. Tem a ver com serenidade, não com briga. Não é vaidade nem orgulho, é sim um estado de desimportância que se importa, consigo e com os outros. Uma autoavaliação de que você “é bom o bastante”, um sentimento que não ocupa a sua mente, muito menos a aluga; ao contrário, deixa-a livre para outros assuntos que te interessem. 

A autoestima é como a saúde do seu pé: você confia nele, e ele nem está te chamando a atenção, só pensou nele agora porque eu falei.

É claro que isso não funciona assim o tempo todo, isso é um retrato do ótimo; na verdade, é mais uma meta a se ambicionar que uma situação a que se chegue.

E para se chegar nela, é preciso sim questionar o poder do Superego; entender que ele é um juiz tirano, um caga-regras que tem você como primeira vítima, mas não a única, pois você pode se defender dele criticando os outros. 

Infelizmente, isso só faz fortalecê-lo.

terça-feira, 24 de novembro de 2020

Artigos: Zonas Erógenas

 O Manuel perguntou ao amigo Joaquim:

— Ó Joaquim, tua mulher transa contigo, é pur amore, ou é pur interesse?

Depois de uma pausa pensativa, Joaquim respondeu:

— Ó Manél, deve ser pur amore, pois que ela não mostra o menor interesse…

Quando alguns amigos souberam que eu ia escrever sobre o título, me disseram que ele era batido. Eles têm razão. “Só não contavam com a minha astúcia” para citar o Chavez da TV, por quem tenho admiração. Do outro tenho asco.

Pois minha intenção é pegar o mote para falar sobre o que vai acontecendo na vida dos casais, principalmente depois que vêm os filhos. Sobretudo numa transformação que se passa na mulher, que é origem freqüente das depressões pósparto.

Vamos começar com as mulheres. É freqüente que, ao lhes nascer o primeiro neném, caia-lhes na cabeça uma supraidentidade que as deixa tontas: “Agora eu não sou mais a Mônica, eu sou uma Mãe”. A Mônica era uma garota alegre, sapeca, gostava do esporte, tanto que ela e o Eduardo viveram uma paixão tórrida, do tipo “bicho pega”, até que se casaram e logo engravidaram.

Três meses de enjôo. Ela não queria nem olhar para o Eduardo, quanto mais para o tal do “bicho”. Ainda mais que o obstetra havia dito para eles maneirarem, pois era um tempo delicado, dando assim uma monumentalidade à gravidez e jogando o casal de marido e mulher ainda mais para o segundo plano.

Pois é aí que entram as tais zonas erógenas de que eu queria falar. Quem esperou as tais áreas anatômicas tão batidas vai ficar aliviado. Leia a historinha a seguir:

Há um filme (Sex education) em que os filhos de Ed Harris, preadolescentes, resolvem contratar uma prostituta para que ela lhes ensine os truques eróticos de enlouquecer uma mulher. O filme tem um final feliz, com o pai se encantando pela moça, e os filhos fazendo uma pergunta definitiva: “Existe um ponto na mulher que, se tocado, ela é levada à loucura?”. E Melanie Griffith responde: “Sim, existe”. E aponta o coração.

Eros, assim como a Philia e o Ágape, é uma das formas de amor que os gregos descreveram, tomando o nome de um deus (“graças a ele, os homens conheciam as alegrias da amizade, as doçuras da ternura, os prazeres e as dores que acompanham o amor verdadeiro”- Nova mitologia clássica; Mario Meunier, 1976), portanto as zonas erógenas – geradoras de Eros – de que estarei tratando aqui, são áreas mentais de produção de amor.

Quem salvará Mônica do peso da maternidade? Quem lhe ensinará que a moleca não morreu? Quem dirá ao Eduardo que o casal só precisa de ajuda para continuar um casal?  Que existe transa mais calma que o “bicho pega”, com notas mais ternas, mais carinhosas, talvez mais acolhedoras para o momento de fragilidade. Que a Mônica não virou santa intocável porque está se adquirindo uma nova condição (que não anula as anteriores). Que escola de medicina ensinará o obstetra que ele não é o proprietário da “gestante”, que não deve olhar para o marido como um intruso, mesmo se ele conhece Mônica desde que ela era uma garotinha, e que Eduardo é, sim, mais importante do que ele, e que se houver realmente alguma razão médica que impeça a transa, existe sempre o chamego, e o chamego dá prazer ao coração.

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Material publicado na Folha de São Paulo.

(Publicado em 11 de junho de 2012)


Artigos: Eduardo e Mônica II

 



(Publicado em 11 de junho de 2012)

 

Eduardo e Mônica tiveram um bom aconselhamento de como criar os filhos, fizeram um bom casal e geraram dois filhinhos, Cristina e Rodrigo, com três anos de diferença.

Eduardo deslumbrou-se com a dádiva do feminismo: a paternidade participativa. Acordou de madrugada, trocou fraldas, deu mamadeira, pôs para arrotar, ninou na cadeira de balanço, deixando Mônica dormir, um gesto de amor com filha e mãe.

Quando Cristina cresceu, Eduardo viu-a, aos cinco anos, na banheira, deixando a água da torneira correr sobre seus genitais.

— É uma delícia, não é, filha?

—Como você sabe, pai?

—Porque o pai já teve a tua idade, ora! Mas você já experimentou o chuveirinho do bidê?

—Já…

—E é bom também?

—É…

—Então eu vou te pedir que use o chuveirinho do bidê antes que a água de nossa caixa vá toda embora.

Adoro esta história de Eduardo com sua filha. A aceitação de sua sexualidade com um ensinamento de economia.

O fato é que quando Rodrigo tinha doze anos veio perguntar para o pai se masturbação doía.

— Bem, (disse Eduardo), depois da quinta vez em seguida, dói, sim!

— Ah, bom! disse Rodrigo.

Eduardo e Mônica passaram aos filhos o fato de que sexo era algo agradável da vida: nenhum drama; nenhum vexame; direito ao desejo; algo da natureza; se Deus nos deu, ele não gostaria que nos envergonhássemos dele.

Quando Cristina tinha uns quinze anos, Eduardo “flagrou” ela ficando com um amiguinho numa festa. Ela já tinha explicado para ele a diferença entre ficar, estar ficando, namorar e morar junto (esse negócio de noivar “é para gay, pai”, e casar, bom, pode ser). Eduardo ficou meio perplexo, mas entendeu. Cristina veio falar com o pai, depois.

— Pai, você ficou meio bolado de me ver ficando?

Eduardo foi brilhante:

— Não, minha filha. “Ficar” é como brincar de sexo. E, você sabe, sexo é como dirigir carro: delicioso, mas que envolve riscos graves. 

Você vê que eu tenho feito você aprender a andar de velocípede, de bicicleta, de patins, de cavalo, e tudo para quê? Para que você tenha noção de direção, distâncias, prudência, estabilidade, de responsabilidade, de respeito com o outro, de cuidados com você, e com o outro. Obediência a regras, de exigência que o outro obedeça a regras.

Era tudo uma brincadeira que envolvia um conceito: você está se preparando para uma prática que envolve algo muito mais sério: o risco de morrer, de matar e de ter sua reputação arruinada. Isto vale para a prática da direção de automóveis quanto para a prática do sexo. colocar cinto de segurança, por camisinha, não beber antes de dirigir, não ficar bêbada com alguém que você não confia, e assim por diante.

Cristina abraçou seu pai, grata e com orgulho.

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Material publicado na Folha de São Paulo.


Artigos: Falar sobre sexo

 (Publicado em 11 de junho de 2012)

It’s a puzzlement!”, como diria o Yul Brynner, como rei do Sião (“é uma complicação, uma encrenca”).

Você pode tentar a linguagem de um médico, e ela será engravatada ou/e incompreensível, mas ninguém vai ficar embaraçado.

Você pode tentar ser mais… digamos, pedestre. Todos vão te compreender, mas com rubor nas faces.

Você pode ser infantil, e chamar a genitália feminina de “pipita” e a masculina de “piupiu”, “bilau” e quejandos (se você for ao dicionário, vai encontrar uma extensa sinonímia para ambos – experimente, que é de rolar de rir), todos vão te entender, mas você soará ridículo.

Aliás, tenho uma sobrinha que é bióloga de renome mundial, e me explicou que quando queria se referir a seus próprios genitais, dizia “lá”, acompanhado de um gesto das mãos.

Quando eu dei curso de teoria freudiana (por dez anos, que deus me perdoe), fiz várias vezes um teste com as turmas: “coloquem em ordem anatômica os seguintes itens do períneo feminino, vindo da barriga para as costas:”

  1. ânus

  2. meato urinário (o lugar por onde sai o xixi)

  3. clitóris

  4. canal vaginal

O índice de erro era alto, tanto entre os homens quanto entre as mulheres. Piorava quando a questão era “qual a diferença entre a vulva e a vagina?” ou “o que são os grandes e pequenos lábios”?

Você está entendendo a encrenca em que me meti quando me pediram para escrever um artigo mensal sobre sexo? (a propósito, se você tentou responder à pergunta acima, o correto é 3-2-4-1). Acertou? Duvido.

Quantos homens sabem que seu pênis é um clitóris crescido? Que seu escroto (que me desculpem por usar a palavra mais feia da língua portuguesa, mas ela é precisa, não é um palavrão) são grandes lábios femininos costurados para conter ovários que desceram e se transformaram em testículos? Que nós todos começamos mulheres, e, em 49% dos casos os hormônios nos transformaram em homens, ou, em 51%, nos mantiveram mulheres. É. Vai engolindo esta!

Pega um espelho para ver as costuras, parecidas com uma cicatriz, para descobrir que elas vão do ventre do pênis (é, a parte de baixo é a barriga e a de cima são as costas) e continuam até o ânus, e que tudo isso se chama períneo, como nas mulheres, e sim, que é gostoso como o demo de se acariciar. Morra de vergonha.

Ou você pensava que as mulheres fazem perineoplastia porque só elas tem esse treco? Você também tem.

E o ânus? Ai, ai, ai… ele tem uma mucosa sensível em torno que costuma ser, para ambos os gêneros, uma zona erógena, quer dizer, gostosa de se estimular. Se for com outra mucosa então, como a língua, nem se fala. Aliás, perde-se a fala.

Ele tem dois pequenos esfíncteres, – são músculos de abrir e fechar, como os das íris dos olhos (mais luz, mais eles fecham; menos luz, mais eles abrem), que, além de serem funcionais – por isso é que a gente pode conter as emissões de gases- são também potenciais zonas de prazer.

Como falar dessas coisas? Vou ter que arranjar um palavreado nem tão lá nem tão cá.

Você percebe em que encrenca eu me meti?

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Material publicado na Folha de São Paulo.


Artigos: A Complexidade do Desejo

 



(Publicado em 11 de junho de 2012)

Um cliente me pergunta: “eu sou um pedófilo?” Ou melhor, se seu desejo por púberes femininas (é quando começam a surgir mamas e ancas) seria um desvio patológico, ou uma dessas coisas da natureza, como o desejo homossexual. “Não sei dizer, mas minorias de minorias costumam ser patologias. Precisamos investigar. Vamos fazer o retrato falado de seu desejo”. 

  1. A menina faz contato visual com ele na piscina e se mostra interessada, pois ele retribui, apenas com os olhos. “Ele não fez nada”.

  2. A menina se aproxima e monta em sua coxa, que ele coloca em boa posição. Ela começa a se masturbar, esfregando-se.

  3. Ele tem uma ereção imediata e um orgasmo.

  4. Ambos se afastam sem trocar palavra.

Algumas ocorrências foram assim. Hoje há outras, pela internet.

  1. Não me interesso por imagens pagas, pois seria uma coisa muito feia (diferente do “ele não fez nada”).

  2. Tenho repugnância pelas imagens em que as crianças parecem incomodadas com a abordagem erótica.

  3. Imagens em que a púbere parece interessada, gostando do que está acontecendo, ou melhor, ativa na coisa, são essas que me dão maior prazer.

O paciente é hétero (não olha para homens), mas hoje é impotente, (apesar de só ter 63 anos) incapaz de se masturbar. Sua excitação com as imagens é “difusa”, porém devaneia com o passado, em que meninas de carne e osso interagiam. Supõe que teria orgasmo mesmo sem ereção, mas se contém, “por que é errado”.

Vejo nele uma busca de compromisso entre transgressão e ética, o que não faz dele um psicopata. Primeiro, ao apreciar as púberes com desejo próprio, e não como vítimas de um bárbaro. Depois, que ele nunca as toma e as penetra, mas deixa-se servir como um objeto de desejo delas. Seu desejo é satisfeito porque atendeu ao desejo delas. É semelhante à fantasia que algumas mulheres usam ao se masturbar, de que estão sendo estupradas: elas não fizeram nada, e nada puderam fazer. A possibilidade de negar seus desejos retira suas culpas e libera seus orgasmos.

Depois de muito tempo de investigação, uma pista: aos sete anos, o paciente sofria de oxiuríase (pequenos vermes parecendo linhas se remexem na mucosa anal, provocando coceiras, com ou sem prazer). Sendo os remédios inócuos, seu pai fazia, no quarto, meticulosas operações manuais de retirada dos vermes.

O filho aprendeu. De quando em quando vinha ao pai, e, sem palavras, indicava o quarto com a cabeça. O pai se levantava, sem nada dizer, e, na cadeira do quarto, com o filho desnudo dobrado sobre seu colo, separava-lhe as nádegas com cuidado para retirar com os dedos os oxiúros. Era uma demorada carícia naquela mucosa sensível. Um processo que durou meses.

Chegamos a uma hipótese com que ele concordou. Seu desejo homossexual passivo pelo pai havia encontrado uma saída não neurótica, mas perversa (quando o erotismo se mantém): Hoje ele é o pai. A púbere interessada é ele (já se livrava da homossexualidade e projetava seu desejo na outra). O desejo de entrega ao homem mais forte ficava conservado. A internet, a impotência, a ausência de comércio tornava tudo mais tolerável.

A partir daqui já estoura o tamanho do artigo da Folha, e os comentários estarão no tamanho do meu desejo.

1. O paciente é então, na verdade, homossexual?

Não! Segundo a escala Kinsey*, o paciente teria nascido com um percentual de desejo homo que foi estimulado em sua infância por seu pai. É um percentual baixo, coisa de 20%. Ele é principalmente hétero. Sempre olhou e desejou mulheres, mas sempre teve vergonha de seu desejo, preferindo que elas viessem a ele, que a ele demonstrassem o desejo delas. O seu desejo por meninas púberes mistura a história com seu pai com a vergonha de seu desejo hétero, na verdade, de qualquer desejo seu.

2. O analista fez esta conexão de maneira rápida?

De jeito nenhum. Há um espaço de dez anos entre o relato do “tratamento” da oxiuríase e a ligação com a pedofilia. Simplesmente porque o cliente não queria pôr a pedofilia como assunto de investigação. O problema é que o analista tem uma memória de elefante, e viu semelhanças entre os dois assuntos. A ligação só se deu quando o paciente resolveu investigar seu desejo pedófilo, quando ele se tornou predominante.

3. Podemos suspeitar que toda pedofilia tem sua origem no desejo homossexual?

 Este é um erro comum a partir de um conceito freudiano, o conceito de fetichismo. Fetichismo vem do francês fetiche, que vem do português feitiço, artifício que transforma uma pessoa em uma coisa. O pedófilo seria um fetichista. Seu objeto sexual não é uma pessoa, com todas as suas complexidades e interações, com todas suas necessidades de negociações. É uma coisa. É como disse o Stanislaw Ponte Preta: “a vantagem da punheta é não ter que levá-la em casa depois”. Freud de fato pensou que a homossexualidade fosse um derivado do fetichismo, pois entre iguais não há diferenças, não há trabalho para que o desejo se realize, é como a masturbação.

Realmente, há uma concretização da homossexualidade masculina que é fetichista, que é masturbatória. É só pensar nos quartos escuros das boates gays, nas rapidinhas dos mictórios públicos, onde se vê que o menos importante é o interlocutor. Ele seria um pouco mais do que um retrato numa revista pornô.

Mas o mesmo se poderia dizer da heterossexualidade. O que quer dizer o “ficar”? O quer dizer o “one night stand”? O que quer dizer “a fila tem que andar”? Dos casamentos de dois meses à luz dos holofotes? Por acaso é um trabalho de sintonizar as diferenças? Por acaso é uma vontade de mergulhar com gosto no universo do que é o outro, no interesse pelas diferenças?

O mesmo mecanismo do fetichismo, a defesa medrosa contra o mundo, pode operar na heterossexualidade.

Freud queria dizer que o ser humano tem medo do mundo. Da ameaça de sobrevivência, da perda de proteção.

A criança tem a natureza humana empurrando seu desejo em direção àquela coisa (o mundo), em direção a sair de casa, a entrar em contato com o outro, mas tem o terror de ter que lidar com ele, como ele possa reagir, rejeitar, xingar, desprestigiar, ridicularizar, humilhar, expor…

Angst”. Parece angústia, não é? Pois é a palavra alemã para “medo”. É, para mim, dos melhores descobrimentos de Freud. Porque ele se autocriticou. Começou pensando que era a neurose que causava a angústia. Terminou deduzindo que era a angústia que causava a neurose. Deduzindo que a neurose, assim como a perversão, eram mecanismos de defesa contra o MEDO!

Ter desejo é ter medo. “Eu quero comprar aquele casaco, mas… (quanto ele vai custar?; o que vão pensar de mim?; não será meio jovem para a minha idade?)”.

Ciúme. Ter ciúme é ter medo, por ter desejo. A falta de ciúme só se dá na falta de desejo. Na indiferença. Não importa que tipo de ciúme, se sexual, se de prestígio.

Os homens tendem a ter mais ciúmes sexuais. Também, coitados, correm o risco de criar um filho que não é deles…

As mulheres tendem a ter mais ciúmes de prestígio. Elas têm certeza absoluta de que o filho é delas.

Freud disse que não sabia o que as mulheres desejavam. A psicologia evolucionista descobriu: as mulheres desejam casamento, garantias e prestígio, coisas que as ajudem a criar, enriqueçam e melhorem suas crias, porque temem o horror do abandono (é um desejo genético que elas nem percebem).

Mas eu estou falando de quê? Do “angst”, do medo do mundo que produz os mecanismos de defesa, em mim e em vocês. Quanto maior o desejo, maior o medo. Você não teria um medo da prostituta, nada que se comparasse com o medo da sua deusa da sala de aula. Ela estava em um pedestal muito acima de você. A outra estava numa posição em que o pedestal era você.

Seremos nós muito diferentes do pedófilo? Não estaremos buscando objetos deslocados de nossos desejos que afastem nossos medos? O consumismo que dá um alívio instantâneo e fugaz. O alcoolismo, que faz o mesmo. “Workaholism” e outros vícios, sem número, prometem a mesma coisa.

Quando concebemos o mundo como algo hostil, ameaçador, quando fomos ensinados que assim era, que precisaríamos de munição, armadura e fardão, para que nos respeitassem, para que escapássemos do mundo-dragão ao ponto de que um motorista de taxi nos dissesse “Sois rei?”, deixamos de lado nossa simplicidade, nossa vontade de brincar, nossa desimportância, nossa efemeridade, porque acreditávamos no que nos disseram. “É preciso ser sério, grande e imortal”, e isto foi pesado em nossas vidas.

Pois foi assim que nos apresentaram o mundo: como algo avesso a nossas pessoas e nossas vontades. Como algo que poderia atendê-las por vias transversas e invisíveis. Como no caso do pedófilo, algo a que teríamos sempre nos sentir devedores, transgressores, prestes a ser desmascarados e condenados.

É este o peso que carregamos. É este o peso que não queremos passar adiante. Nós somos formadores de opinião, sabemos o que nos massacra. Vamos retirar este peso das gerações vindouras, em cada ponto em que pudermos atuar. Não agiremos como o idiota da sala de aula que nos deu um cascudo e disse: “Passa adiante, senão vira elefante”. Nós sabemos que não viraremos elefante. E não passaremos adiante.

Mas como fazer isto? A chave toda está na maneira como criamos nossos filhos. Precisamos saber que eles nascem, não como uma tábula rasa, mas com um cérebro cheio de programas operacionais constituídos por sua genética. Meu ídolo da psicologia evolucionista, Stephen Pinker, mapeou que seremos 50% frutos da genética e 50% frutos da criação única. Pois então vamos atender ao desejo secreto e politicamente incorreto da eugenia: procriar com quem não seja psicopata, que seja correto, ético, inteligente e desejoso de cuidar dos filhos. Vamos nos associar a esta pessoa para cuidar dos outros 50%: a criação única.

Se ele nasceu com um software chamado “das über ich”, conhecido como superego, mas em alemão fluente significa “o que está acima de mim”

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Materia publicado na Folha de São Paulo.