domingo, 10 de outubro de 2021

MODELOS DE IDENTIFICAÇÃO - O AMIGO PERGUNTA

 


“Você disse que nos formamos na infância através de copiar modelos?”

Francisco Daudt: Não só por copiar modelos, também por nos horrorizar com antimodelos; não só na infância, mas pela vida afora.

Todo o nosso aprendizado se dá inicialmente por imitação. Pense em você aprendendo uma língua estrangeira e terá a caricatura de qualquer aprendizado.

O mesmo se dá com aquilo que nós somos: “Ah, quando eu crescer quero ser igual a ele!”, no caso de nossos modelos de identificação. Ou também: “Tudo, menos ser igual a essa pessoa!”, e você começará uma imitação ao reverso, a fazer o extremo oposto daquilo que seu antimodelo faz… e assim ser comandado por ele, como na música do Chico Buarque, “te adorando pelo avesso”.

Um modelo de identificação pode ser imposto, usando o antimodelo como espantalho: o pai de Donald Trump o avisou desde cedo que não aceitava filho loser (em bom português, filho merda), que ele tinha que ser winner (em tradução livre, filho fodão). 

Mas o bom modelo de identificação se dá por gosto. Quando eu tinha 14 anos, li um livro que mudou minha vida: “To kill a mockingbird” (“O sol e para todos”, Harper Lee, 1961). Lá encontrei o pai que queria ser, quando crescesse. Atticus Finch foi meu modelo de identificação, o pai que fui, o pai que sou, o psicanalista que sou, já que grande parte do trabalho do psicanalista pode ser definida como uma função de pai.

Nossa relação com o modelo de identificação começa como cópia, mas se torna gradualmente autoral, já nem sabemos mais de onde veio a matriz de nosso comportamento.

Mas eu sei…



PSICANÁLISE LACANIANA - O AMIGO PERGUNTA

 


Marcio Fagundes: “O que você acha da contribuição de Lacan à psicanálise?”

Francisco Daudt:  Sérgio Augusto disse uma vez que o livro mais superestimado que conhecia era “Mil Platos”, de Gilles Deleuze e Félix Guattari: “absolutamente ininteligível, logo, uma fraude”.

“Se é ininteligível, tende a fraude”, eis um preconceito para se levar em conta, principalmente em ciências humanas. A física quântica me é ininteligível, mas humildemente reconheço que seus textos pressupõem uma enorme construção de base que me falta, de modo que minha suspeita não vai para ela, e sim para minha insuficiência.

Quando o assunto é psicanálise, o pressuposto é de que ela veio para esclarecer, não para obscurecer. Se o texto psicanalítico é ininteligível, eu suspeito que haja uma proposta perversa em curso: “se você não entendeu, é porque você é burro”. 

Imagino quantos alunos de psicanálise, inseguros de suas capacidades intelectuais, reverentes diante daquilo que iria se tornar seu ganha-pão prometido, temerosos de não fazer clientela amanhã, não sucumbiram a essa chantagem e passaram a fingir que compreendiam, mesmo sem má intenção, mesmo se autoiludindo, posando de sábios para colegas ainda mais inseguros do que eles. E com isso passaram a fraude adiante…

Dei muita sorte na vida: quando quis ser psicanalista, escapei da armadilha então em curso de que a única alternativa para o kleinianismo (um pesadelo teórico) era Lacan. Fui orientado por um freudiano formado na Argentina por Angel Garma, por sua vez formado por Theodor Reik, discípulo direto de Freud.

Como eu entendia tudo o que lia de Freud, e nada do que Lacan escrevia, minha adesão ao primeiro foi proporcional à minha repulsa ao segundo. E, devo confessar, nunca tive muitas dúvidas sobre minha inteligência, de modo que aquela chantagem de que o problema não estava no texto, mas em mim, não colou.

Mais tarde fui informado de que aquilo que se conhece de Lacan já é uma transcrição esforçada de seu genro, Jacques-Alain Miller, em busca de clareza (!). Que quem teve acesso aos “textos selvagens” originais de Lacan, esses sim, sabem de fato o que é ser ininteligível.

De modo que sou hesitante em responder qual foi a contribuição de Lacan à psicanálise. A contribuição teórica, não sei mesmo. 

A contribuição à fama da psicanálise, essa infelizmente eu sei: o desprezo maciço que as ciências e a epistemologia têm por ela.



O OUTRO POSSÍVEL - O AMIGO PERGUNTA

 



“Qual seria o oposto do fetichismo, que anula o outro? A interação total com ele?”

Francisco Daudt: Tal coisa não existe, exceto como ideal do Superego, o que costuma gerar, claro, cobranças internas. Toda a nossa base de prazer é autoerótica, masturbatória mesmo; o outro participará dela em graus variados, que vão do zero a algum percentual, mas sem nunca atingir cem… e que flutua, ora para mais, ora para menos, mesmo durante uma relação sexual com a pessoa que mais amamos.

Pense na nossa história com o prazer: um bebê que mama e cai desmaiado depois, ele estava se “relacionando com o outro”? Ou viajando no seu prazer solitário? Lembre-se, ele acabou de sair do útero, não tem noção de nada do mundo, não tem referências para configurar a existência de ninguém mais.

Nós somos um pouco (um pouco?) como ele: mesmo no devaneio apaixonado que orienta uma masturbação desvairada, onde está o outro, senão em nossa cabeça, fruto de nossa imaginação?

“Ah, mas se for no sexo, o outro está completamente presente”.

Completamente? Olhe para si, pense bem se não há flutuações entre o seu barato solitário e a interação ali ocorrendo. Se não há uma constante verificação dos encaixes e desencaixes dos desejos mútuos. Se a imaginação não voa, mesmo naquele momento.

“Ah, tá certo, a paixão é fruto da imaginação, mas o amor é fruto do conhecimento; e no sexo com amor?” Por certo haverá mais interação. Muita negociação já foi feita para ver onde os desejos se encontram, onde se desencontram.

Mesmo assim, se você se lembrar da teoria dos conjuntos, a zona de interseção dos dois círculos nunca será completa, e estará variando sempre. Espero que você (e o outro) tenha na mão os botões de regulagem dessa variação, ou o prazer fatalmente decairá.