quarta-feira, 18 de agosto de 2021

PRECONCEITOS PRECIOSOS E TRANSFERÊNCIA - O AMIGO PERGUNTA

 


“Julgar pela aparência não é muito preconceituoso?”

Francisco Daudt: É, sim. Preconceituoso e necessário.

Julgar pelas aparências engloba nossas duas poderosas fontes de motivação: sobrevivência e reprodução. É verdade que ambas estão a serviço da replicação do DNA, pois é preciso viver até que a reprodução se dê. 

De base, todo estranho é um inimigo: este preconceito vem salvando vidas pela história afora. Imagine-se numa rua escura e deserta, subitamente os sons de passos em sua direção. A adrenalina sobe, você se prepara para luta ou fuga; matar ou correr. 

Em seguida, vê o outro. É preciso detectar traços de guerra ou de paz, e isso rapidamente: “ele pertence a tribo amiga ou inimiga”.

Classificado como amigo, outro escaneamento automático e rapidíssimo, tão rápido que muitas vezes passa despercebido, busca a segunda resposta: “é uma possível parceria sexual ou não?”

Um hétero dirá: “ah, se eu vejo que o outro é  homem, isso nem me passa pela cabeça”. Sim, mas porque, como ele viu que era homem, seu gatilho avaliador de segunda instância não foi ativado. O descarte foi rápido.

O mesmo ele diria se tivesse visto uma vovozinha: a avaliação de parceria sexual se dá por camadas de preconceitos. Eles moram nos arquivos de memória que configuram nosso desejo, em combinação com os arquivos genéticos da valorização erótica.

Algum dos arquivos genéticos do desejo são: beleza, fertilidade, força, saúde, juventude, riqueza, proeminência social. Tudo isso julgado pela aparência. Alguns se aplicam às estratégias sexuais de curto prazo, outros para as de longo prazo.

Os arquivos de memória que compõem o desejo vêm de nossa história erótica/amorosa, sucessos e decepções.

Todo esse conjunto de preconceitos será usado na avaliação sobrevivência/reprodução: eles serão usados como filtros, a partir da primeira vista, aplicados ao outro.

Isso é parte do que em psicanálise se chama de “Transferência”: transferimos ao outro, sem conhecê-lo, toda essa massa de informação que mora em nós, e o julgamos por ela.

A partir das aparências.





CRIADORES, DIVULGADORES, DILUIDORES

 


O panteão dos criadores tem poucos deuses (Copérnico, Darwin, Freud, Einstein p.ex.) que quebraram paradigmas e inventaram novos, mudando assim a maneira de pensar de toda a humanidade.

Os divulgadores estendem o que pegaram dos criadores, mas não só trazem ao público, são capazes de acrescentar - e muito - a partir daquelas bases.

Os diluidores entregam o produto dos criadores, mas ele se estraga na viagem. Poderiam ser chamados de “vulgarizadores”: a diferença entre tornar público e tornar vulgar.

Um amigo que mora na China e tem doutorado em Taoismo e religiões chinesas se vê como criador (realmente, sua contribuição que liga a influência do pensamento chinês com suas religiões é muito original). Ele quer me convencer que minha intervenção na psicanálise é também de criador. Não é. 

Mas é um bom debate:

“Meu caro,
Sobre o dilema criador x divulgador, pensei muito nele. 

Eu me via como criador, com essa coisa de unir psicanálise com psicologia evolucionista (elas têm óbvias complementariedades), com a percepção de o superego ser um programa de sobrevivência na origem, e que ele se torna complexo com os aprendizados da cultura, invadido pelas crenças disfuncionais que evitam o desamparo na infância (já que a criança está nas mãos daqueles pais - necessariamente - incompetentes para a função de criá-la).

Criador, na reconcepção do complexo de Édipo como representante do embate sadomasoquista/domínio/submissão que se deu entre a criança e seus pais, que se eterniza pela vida afora de maneira automática, embate esse que se reencena depois de crescido, como drama (e não como farsa), numa constante tentativa inconsciente de “consertar” o passado, de “converter” pessoas idênticas às iniciais em amorosas considerativas.

Criador, na percepção de que a principal causa das doenças psíquicas é viciosa, e não neurótica, uma continuação do vicio sadomasoquista sutil que se dá entre a pessoa e seu superego. 

Criador, na abordagem terapêutica de diagnosticar esse vício e centrar meus esforços na compreensão/aprendizado do Desejo mais belo/ético de que a pessoa é capaz. E não só diagnosticar, mas conduzi-la ao treino de um caminho novo, ainda que trabalhoso, para seu desejo.

Mas reconheço que estava tudo lá, em Freud e em Darwin. O que me parece fazer de mim um divulgador bacana, que “agrega valor” às teorias. Não mais que isso.”




quarta-feira, 11 de agosto de 2021

ANTROPOMORFIZAR É…


ANTROPOMORFIZAR É…

…atribuir a coisas e animais qualidades, sentimentos e aparências humanas. É um dos mais fortes cacoetes do pensamento: a dificuldade de imaginar o outro com suas características próprias, sem misturá-las com as nossas.

Por isso, a primeira lição para um psicanalista é: “não tire os outros por si; eles são diferentes”.

Na foto, Pluto é um cão sem caninos. Só tem incisivos…




 

DEMOCRACIA MENTAL - O AMIGO PERGUNTA

 



DEMOCRACIA MENTAL

De Douglas Estevam: “O que você faz é uma antropologia filosófica?”

Francisco Daudt: Interessante, você ter nomeado meu assunto de antropologia filosófica.

Eu combino psicanálise e psicologia evolucionista para entender a mente humana. De fato, é uma antropologia, um estudo do homem.

E há uma face filosófica na psicanálise: dela deriva uma amada (filos) sabedoria (sofia), a de que a saúde mental mora no equilíbrio entre os poderes psíquicos, uma espécie de democracia mental em que o Eu (Ego) é o executivo, conhece e ouve tanto o “Algo em mim” (Id), que é o parlamento, o representante do desejo do “povo”, quanto o “Acima de mim” (Superego), que é o judiciário.

É a partir dessa conversa civilizada que o Ego (Eu) se torna gerente dos nossos desejos, sujeito de nossos verbos: Eu quero, Eu ambiciono, Eu sinto desejos, Eu levo as leis em consideração, Eu faço por onde atendê-los.

Para a nossa mente, a democracia é saúde e a tirania é doença.





VONTADE E DESEJO - O AMIGO PERGUNTA

 


VONTADE E DESEJO

De Marcia Pires: “Qual a diferença, em psicanálise, entre desejo e vontade?

Francisco Daudt: É a mesma que entre o oceano (o desejo) e a onda (a vontade). O desejo nasce com a gente, com nossa herança genética, ele é o motor da sobrevivência e da reprodução, ele está na busca do alívio e do prazer.

A fome fala do desejo; o apetite fala da vontade. A sobrevivência pede comida; o apetite pede sorvete de chocolate. A reprodução pede sexo; o tesão pede aquele jeitinho de sorrir.

Essa força oceânica nos faz viver, mas aquela pessoa nos dá a maior onda…





“O orgasmo feminino influencia na felicidade da cria?” - O AMIGO PERGUNTA

 


ORGASMOS

De Guilherme S M Padilha: “O orgasmo feminino influencia na felicidade da cria?”

Francisco Daudt: Não, pelo menos não diretamente, pois como ele influencia na felicidade da mãe, podemos esperar que a cria seja beneficiada por isso.

Mas sua pergunta põe em questão o orgasmo feminino, o mais complexo de todos. Não é que o orgasmo masculino seja simples, mas como a existência da humanidade depende dele, ele tende ao comum, banal e simplório. São poucos os homens que, por não se satisfazerem com o feijão com arroz, buscam delicatessen.

Por que todos os homens conhecem o orgasmo e nem todas as mulheres o conhecem? Porque todos os homens se masturbam, o que não acontece com todas as mulheres.

O orgasmo necessita de um circuito cerebral bem treinado para acontecer, bem como um hardware sensível para desencadeá-lo. O pênis e a glande são expostos, notáveis e inescapáveis no homem, e seus correspondentes femininos (o clitoris e sua glande) são discretos, ocultos mesmo.

De forma que, não há homem que os deixe de lado… e há muitas mulheres que sim. Resulta que o circuito cerebral que leva ao orgasmo é treinadíssimo neles e negligenciado nelas.

Há três tipos de orgasmo: genital, vaginal e anal. Tanto no homem quanto na mulher, o estímulo do pênis/clitoris leva ao orgasmo genital. Sim, o homem pode ter ejaculação sem ter orgasmo, “gozar” sem prazer, mas nosso assunto aqui é o prazer. O orgasmo genital é intenso e breve; mas no caso das mulheres, como não há ejaculação concomitante, ele pode se repetir várias vezes sem período de recesso (lag phase). Sim, há mulheres que “ejaculam” junto com o orgasmo, uma emissão frequentemente confundida com urina. Mas isso não impede que tenham outros orgasmos seguidos, mesmo que o líquido acabe.

Já os orgasmos vaginal e anal curiosamente se parecem, e podem ou não ser acompanhados de orgasmo genital. São longos, convulsivos, espasmódicos, exaustivos, e resultam exclusivamente da penetração (peniana ou artificial).

Não confundir com o orgasmo genital de quem se masturba enquanto é penetrado. A coisa é diferente. Tanto que homens podem ter orgasmo anal sem ereção, sem ejaculação.

Infelizmente, a psicanálise andou aborrecendo as mulheres com a idealização do orgasmo vaginal, como “mais maduro”, superior ao genital. Isso é uma tolice sem tamanho: há mulheres em que o orgasmo é mais fácil, sem correlação com graus de maturidade.

É tudo uma questão de investimento em conhecer e atender o próprio desejo, isso sim é um objetivo da psicanálise.






domingo, 1 de agosto de 2021

“A fase anal, descrita por Freud, tem a ver com homossexualidade?” - O AMIGO PERGUNTA

 


FASE ANAL

“A fase anal, descrita por Freud, tem a ver com homossexualidade?”

Francisco Daudt: Ih, você toca num ponto que traz muita confusão sobre esse conceito…

A melhor resposta curta é não. Mas, você sabe, quando a coisa é complexidade, respostas curtas são sempre insatisfatórias.

Para começar, a fase anal não foi descrita por Freud, mas por Karl Abraham. Freud tomou o conceito e o desdobrou para apresentá-la como símbolo da guerra que travamos entre os nossos interesses primitivos e os da cultura/civilização: fazer cocô de maneira aceitável.

É o típico exemplo de como uma coisa que pode nos ser favorável (ir ao banheiro) pode ser ensinada como uma obrigação imposta, causar birra, choro e ranger de dentes.

É que, por volta dos dois anos, a criança começa a ter controle de eliminação das fezes e da urina (controle dos esfíncteres) e pode ser apresentada ao banheiro, essa preciosa maravilha moderna que tomamos como coisa garantida até que nos falte, num camping selvagem (oh Lord…).

Infelizmente, em vez de mostrá-lo como lucro, muitos pais aflitos resolvem “disciplinar” a criança e apresentam o banheiro como dever. Aí começa a briga, cujo pior resultado é a encoprese (dos nomes mais feios do idioma): um jogo de retenção/liberação das fezes com eventuais escapes, com que a criança se entretém por horas, se escondendo pelos cantos… e levando bronca.

É claro que, junto com essa briga, não são apenas as fezes que têm que ser controladas, mas a raiva contra os pais, e por extensão, contra a cultura. Com isso, a criança com genética para obsessividade pode desenvolver uma tendência para controle de tudo, de seus pensamentos, de sua pureza/limpeza, ela se torna um paladino da cultura, um ser hipercultural cheio de regras e obsessões. (Há também os obsessivos bagunceiros, contraculturais).

E a homossexualidade? Claro, tem a ver com o possível prazer anal decorrente do jogo de retenção. Mas isso é tolice: o erotismo anal não é algo que se aprenda, é sim um dom da natureza, uma loteria genética. Como de resto, todas as zonas erógenas: há quem tenha mamilos cegos, há quem os tenha felizes, o mesmo se aplica ao ânus e ao reto, quer seja hétero ou gay. Uma queixa frequente no consultório é de héteros envergonhados de pedir que suas mulheres deem atenção a suas zonas carentes, “vai que ela ache que eu sou gay…”

Por isso, sempre odiei quando os “psis” falavam “ah, ele é um anal-retentivo”: não elucidava nada e ainda deixava pairando no ar uma alusão de viadagem.





VÍCIOS COMPORTAMENTAIS - O AMIGO PERGUNTA

 


VÍCIOS COMPORTAMENTAIS

“Além do fodão/merda, qual o vício comportamental mais frequente?”

Francisco Daudt: É o “bosta n’água”. Claro, isso não é um nome técnico, nem bonito é. De maneira mais formal se poderia chamar de “ociosidade viciosa”. Eu o apelidei assim por causa da qualidade de se estar à deriva, sem rumo, ao sabor das ondas e da maré… coisa que abala a autoestima e leva a pessoa a não se dar valor, a se sentir um bosta.

Os vícios de comportamento nunca vêm sozinhos, eles abrem a porta para outros, quer de substâncias, quer comportamentais também. Assim, o bosta n’água costuma se acompanhar de muita maconha, mídias sociais, pornografia, sadomasoquismo sutil, álcool, carboidratos, todos esses se retroalimentam.

É praticado sozinho ou acompanhado, pois o vício em companhia também faz parte do quadro geral. É curioso, pois essas companhias são chamadas de “amigos”, mas não o são, são cúmplices no vício.

O bosta n’água pensa que está “matando tempo”. Ledo engano: é o tempo que o está matando…


ANGÚSTIA DE CASTRAÇÃO - O AMIGO PERGUNTA

 


ANGÚSTIA DE CASTRAÇÃO

“Por que Freud chamou de castração essa angústia?”

Francisco Daudt: Porque, acredite ou não, era hábito da época as crianças serem ameaçadas com um “olha que eu corto o seu pinto!”, quando aprontavam. Eu mesmo tenho idade o bastante para ter ouvido uma dessas de um tio.

Mas a ameaça saiu de moda, até por causa de Freud ter chamado a atenção para a crueldade nela implícita. Ela, que era a síntese do poder de fogo do Superego, hoje em dia seria algo como “olha que eu não vou mais gostar de você, olha que eu te desamparo!”

De fato, o desamparo, o cancelamento, o ostracismo, o exílio, o abandono, a expulsão do grupo, o banimento, ser bloqueado, perder seguidores, perder o amor das pessoas queridas, a infâmia, as pessoas virando a cara para você, o esquecimento, a exclusão têm um significado muito mais claro e contundente, uma compreensão muito mais imediata.

O desamparo é a principal ameaça do Superego, a ameaça que mais causa medo (em alemão, “angst”), angústia.

Freud dizia que a castração ganhava sentido verdadeiro a partir do momento em que o menino via o primeiro genital feminino nu: ali estava um castrado e emasculado; tiraram-lhe o pênis. Aquela “pobre criatura” era uma menina; à época, isso significava uma pessoa inferior, de segunda classe: era o medo de se tornar um merda.

Não é à toa que os meninos temiam ser chamados de mulherzinha. É curioso, mas meninos não se xingam de “viadinho”, e sim de “mulherzinha”. A homofobia vem mais tarde; ela começa como misoginia, como ver as meninas como piores.


“AH, SE EU TIVESSE FEITO DIFERENTE…”

 



Do nada, surgiu um cara afobado e disse para ele: “Corre, Manoel, que tua mulher tá passando mal lá em Niterói!!”

Esbaforido, ele pegou a barca, e já estava no meio da baía da Guanabara quando disse: “Ei, espere… eu não me chamo Manoel, não sou casado, e não moro em Niterói… o que é que estou fazendo aqui?!?”

Quando o cliente me diz que podia ter feito diferente, sempre respondo:

“Não podia. Se pudesse, você se chamaria Manoel e moraria em Niterói”.


CAUSAS DA PAIXÃO - O AMIGO PERGUNTA

 


CAUSAS DA PAIXÃO

De Marcio Fagundes: “Por que se idealiza? Por que há paixão?O que vem primeiro?”

Francisco Daudt: Por causa do medo do desamparo e da morte, a idealização é capaz de conceber um Pai Eterno e a Imortalidade: a “solução final”.

Claro, não é só isso, e “solução final” é um termo provocativo que alude ao sublime e ao terror, à salvação e ao extermínio.

Mas como lidar com a complexidade, senão ao pedacinhos? A psicanálise se parece muito com a análise vetorial, da física: para conhecermos a resultante, para onde o ponto se move, estudamos cada vetor, cada força aplicada sobre ele, sua intensidade, sua direção, seu sentido.

A paixão é a um só tempo complexa e simplória. É simplória porque é perfeita: tudo de bom, tudo de lindo, tudo… de tudo. Ela resolve os problemas, ela tira manchas, é imaculada, irretocável, ergue, prende e realça. Perfeito significa obra terminada, acabada. Ela é resultado, nem resultante é…

Mas isso é parte da crença do apaixonado, vamos à complexidade.

a. “passio”, do latim, só tem uma tradução: sofrimento. “Paixão e morte de nosso senhor” não se referia à Maria Madalena, mas ao calvário.

b. A psicologia evolucionista nos mostra que há estratégias sexuais diferentes quando se pensa em parcerias de curto e longo prazo. A paixão é típica da estratégia de longo prazo: estamos desejosos de passar o resto da vida com a pessoa, ter família com ela, nos dedicar a ela. De algum jeito, somos programados para a paixão.

c. Temos desde cedo um conceito de perfeição embutido no Superego. Ele está sempre nos dizendo que somos insuficientes, que devemos almejar mais. A paixão é a momentânea ilusão de que “chegamos lá”.

d. Pense no momento das paixões mais absolutas, a adolescência. É um tempo apavorante em que o Superego reina com suas exigências “sérias”: ser gente grande, entrar no mercado afetivo/sexual, ter que se provar como pessoa, idealização de perfeição, fodão/merda nas alturas. É o momento propício para descobrir aquela pessoa que “será tudo na sua vida”, “seus problemas acabaram”. Parece até o que a maconha promete…

e. No entanto… é preciso não jogar o bebê fora junto com a água do banho: o encantamento romântico pode bem conversar com a ambição de se ter um amor companheiro; o conhecimento do outro, de si mesmo, de seus limites e qualidades pode conversar com o tempero que os hormônios e o confeito de alguma idealização trazem.

Mas, como tempero…

“Et la mer efface sur le sable
Les pas des amants désunis…” (Jacques Prévert)




“Qual a diferença entre luto e depressão?” - O AMIGO PERGUNTA

 


LUTO E DEPRESSÃO

“Qual a diferença entre luto e depressão?”

Francisco Daudt: É uma diferença de vida e de morte. Apesar de o luto ser por algo ou alguém que morreu, pessoa ou amor, ele está muito mais para um processo vital do que a depressão, que é mortiça, apagada e sem vida.

O luto fala de amor, de uma parte doída do amor, mas ele é cheio de afeto, o principal deles a tristeza.

Um luto normal tem beleza, tem a contemplação de memórias, e seu término deixa uma rica herança: contemplar a felicidade de ter vivido uma bela história, o legado de lembranças, como disse Drumond:

“…mas as coisas findas, muito mais que lindas, essas ficarão”.

No entanto, é verdade: o luto pode ser doente e trazer depressão. A depressão resulta de uma linha de montagem de angústias prolongadas: ameaças variadas de desamparo… e sentimento de culpa. Neste último mora o risco depressivo do luto: a ideia de que poderíamos ter salvo o perdido, as auto-acusações que daí partem podem bem resultar em depressão.

Que é um mecanismo de defesa estranho, uma sem-gracice sombria, um recolhimento inerte que, aí sim, se parece com a morte em vida.