sexta-feira, 27 de outubro de 2023

CASAMENTO MORNO - O AMIGO PERGUNTA

 


O AMIGO PERGUNTA 

“Tenho um casamento que está perto de comemorar dez anos. Logo no primeiro ano de namoro, o sexo mudou, porque veio o "Eu te amo". Depois que meu marido me colocou neste pedestal do amor, eu não pude mais ser o seu objeto de desejo carnal. Tudo ficou morno, ponderado, com mais respeito e menos frequência. Tentei conversar sobre isso muitas vezes, sempre responde que me ama e me deseja. Contudo, já o peguei se masturbando algumas vezes e isso me deixa muito triste. O que acontece com ele?”

Francisco Daudt: Seu marido parece ter um conceito de sexo que muitos homens têm, a divisão de mulheres em duas categorias apenas: a santa e a devassa. No tempo de conquista, a mulher está mais desconhecida, permite que a imaginação funcione mais, o sexo é menos pessoal, acaba se parecendo com a atividade sexual básica de todos os homens, que é a masturbação.

A partir do momento em que você se tornou importante para ele, você começou a ganhar a categoria de santa, e para o Superego dos homens, as santas são assexuadas, pois “são parentes”. Não é de espantar que ele tenha regredido à masturbação, que é o sexo seguro que ele conhece desde sempre.

Ele não foi apresentado ao sexo pessoal, que é uma decorrência do carinho afetuoso, do chamego feito na cama, sem compromisso com a aeróbica, mas que é capaz de despertar o tesão. Esse é o caminho para o sexo pessoal, para muitos homens que fazem aquela separação de que falei acima.

Sugiro que você mostre essa carta para ele, para que ele se sinta compreendido e acolhido, enquanto lhe indica uma saída vantajosa de uma situação que também deve incomodá-lo.



sábado, 23 de setembro de 2023

FORA DO ALCANCE DA PSICANÁLISE: NEURODIVERGENTES

 



As doenças psíquicas que a psicanálise é capaz de tratar (e de buscar sua cura, é o que defendo) são alterações do software causadas pela criação, mesmo quando há gatilhos genéticos (como nos vícios e na depressão, p.ex.).

Já nas neurodivergências, o psicanalista vai precisar de auxílio externo, farmacológico ou de outras especialidades. Como já precisava, no caso de doenças físicas, ou mesmo nas depressões, que requerem medicação.

Mas como essas são problemas de hardware cerebral que afetam o comportamento e as emoções, a fronteira é menos clara. Um psicanalista menos informado (ou mais onipotente) pode acreditar que é só assunto dele.

É um momento de humildade científica, para o psicanalista. O momento de saber seus limites e de procurar por quem possa vir em auxílio de seu cliente.

As neurodivergências mais comuns são: autismo, TDAH, dislexia, discalculia, dispraxia, síndrome de Tourette e bipolaridade. É preciso saber diagnosticar (ou pelo menos suspeitar do diagnóstico) e buscar ajuda externa. 



MAIS SOBRE O AUTISMO parte 2 - Renata Longhi responde

 



Francisco Daudt: “Son-Rise”. Achei lindo o nome do instituto, mistura de nascer do sol com criar filho. Como são os graus do TEA (Transtorno do Espectro Autista)?

Renata Longhi: “Sim, muito bem observado. Essa terapia é totalmente sobre “ nascer do sol” no sentido de “ despertar”, e brinca com o despertar do filho: lindo mesmo.

Segundo o DSM americano e o Cid 11 , existem 3 graus de autismo :

1. Leve , que nao precisa de suporte ou precisa de pouquíssimo suporte.

Nesse nivel o indivíduo possui alguma dificuldade no âmbito social, mas consegue ter uma vida típica sem grandes dificuldades; geralmente possuem hiperfoco e são bastante competentes no que se propõem , mas podem ter algumas questões sensórias tambem.

2. Autismo moderado. Precisa de apoio, é necessário algum tipo de moderação, possui comprometimento na comunicação ( verbal e não verbal), apresenta algum grau de hipersensibilidade, possui hiperfoco e apresenta comportamentos repetitivos.

3. Autismo severo. Apresenta grande dependência, necessita de alto grau de apoio (autista clásico de antigamente): a pessoa não consegue se comunicar, capacidade cognitiva bem prejudicada, são indivíduos bastante rígidos , apresentam movimentos repetitivos e nao possuem capacidade de interação social.

Já na terapia Son Rise o autismo é dividido em 5 niveis (o que acho bem mais sensato, uma vez que o espectro é enorme).

E são usadas quatro categorias para determinar o grau de autismo:

1. Comunicação nao verbal ( contato visual, compreensão de expressão facial etc).

2. Comunicação verbal (vocabulário e tempo de conversação).

3. Atenção interativa (duração e frequência).

4. Flexibilidade ( capacidade de controle da rigidez).

(Na foto, Gabriel torcendo por seu time do coração) 



ZONAS ERÓGENAS E ORIENTAÇÃO SEXUAL

 



“Descobri com uma parceira muito ativa e criativa que tenho sensibilidade anal. Adorei, mas… fiquei preocupado. Seria um sinal de homoerotismo latente? Tem chances de eu ser gay?”

Francisco Daudt: Eu tenho ouvido a mesma pergunta no consultório, muitas vezes, de clientes que já estiveram em outras análises e infelizmente escutaram absurdos de seus terapeutas. Minha pesquisa informal me mostra que a ignorância e o preconceito quanto ao assunto também atingem a muitos analistas.

Mas, vamos lá. A distribuição de zonas erógenas em cada indivíduo é fruto da loteria genética. E não estou falando só de homens, não. Há inúmeras mulheres que não têm o canal vaginal como zona erógena, e por isso só conseguem orgasmos clitorianos.

Aliás, nem o canal vaginal, nem os mamilos. Assim como há homens nascidos com a sorte de tê-los, tanto os mamilos quanto o canal retal, como fontes de extremo prazer: se bem cuidados, podem haver orgasmos anais e mamilares (ambos sem ejaculação, idênticos aos de mulheres).

Retornando então à sua pergunta: não, não há nenhuma correlação entre sensibilidade anal e orientação sexual. Já atendi a gays passivos que tinham prazer em ser possuídos, mas um prazer exclusivamente emocional, psicológico, quase nenhum físico, pois não haviam nascido com aquela sorte. Frequentemente se masturbavam durante a penetração, assim como fazem muitas mulheres.

Em contrapartida, uma cliente especialmente ativa e criativa me disse que ela sempre pesquisa o prazer ano-retal de seus parceiros, e que tem encontrado alto índice de deslumbramento, nesse setor. Ou, em suas palavras, num primor de concisão, “c*zinho de hétero é o paraíso perdido!”.



DIAGNÓSTICOS EM PSICANÁLISE Capítulo 6º Neuroses 4 - Melancolia

 


DIAGNÓSTICOS EM PSICANÁLISE Capítulo 6º Neuroses 4

Melancolia

É uma forma de luto patológico. Está entre neurose e vício sadomasoquista. Não tem a ver com a concepção comum de “pessoa melancólica” (triste, depressiva, ensimesmada).

Melancolia (do grego, melanos = preto + cholis = bile), originalmente significa “envenenamento pela bile negra”. Os antigos consideravam o fígado como produtor de “maus humores”.

Dessa concepção vieram: “inimigo figadal”, “pensar com o fígado”, “indivíduo bilioso” (de mau humor), “atrabiliário” (mau humor da bile negra), todas expressões em desuso.

Freud a usou para conceituar uma modalidade doentia de luto: a pessoa absorveria o jeito cruel de um pai ou mãe perdidos, passaria a agir cruelmente com os outros como eles, e em seguida morreria de culpa e de severas autocríticas por ter se comportado assim.

Com isso “manteria viva” a relação perdida, em sua modalidade sadomasoquista: criticaria o defunto em si mesma; seria a um tempo (ou em dois tempos) a mãe cruel (1º tempo) e a filha que nunca a pôde criticar (2º tempo).

Hoje em dia, depois de ter acompanhado várias relações entre filhos/as e mães/pais narcisistas, creio que estamos falando da mesma coisa: a origem desse luto estaria na relação sadomasoquista com o narcisista, que, na impossibilidade de ter-se resolvido na relação original, se “reviveria” na relação entre a pessoa e aquelas a quem ela fere atualmente… mas com esse tipo de remorso, a auto-recriminação grave, o autoesculacho cruel.

Ou seja, a melancolia é um autoenvenenamento…



“CONGELAMENTO” DIANTE DO ESTUPRO - NO “NEW YORK TIMES”

 



“Parecer morto” é um mecanismo de defesa de inúmeras espécies, diante da ameaça de predadores. Acontece também em nossa espécie.

"Muitas pessoas permanecem ignorantes sobre a frequência de congelamento durante os ataques sexuais. Em vez disso, amigos perguntam às vítimas por que elas não reagiram ou gritaram por ajuda. Médicos e enfermeiros às vezes também ficam confusos.

Mais significativamente, os policiais há muito tratam os relatos de congelamento como uma base para duvidar de uma alegação de agressão. Essa atitude é uma das razões pelas quais uma parte tão pequena dos estupros relatados leva a acusações criminais."



“ESSE NEGÓCIO DE FOBIA NÃO É MEIO INFANTIL?”

 



“Afinal, ter medo de barata? Ah, que ridículo… ainda se fosse de aranhas…”

Francisco Daudt: É claro que é infantil. Tanto de baratas quanto de aranhas, ou de outra coisa qualquer. TODAS as neuroses nos remetem à infantilidade, à fragilidade, ao medo do mundo, ao medo do desamparo.

TODAS elas são dramas, e são dramas da infância, do tempo em que dependíamos imensamente do amparo do mundo externo (pais, família etc.). Do tempo em que nossos desejos, nossas características, nossos sentimentos e nossa maneira de ser começavam a entrar em choque com o “mundo amparador”.

E de um tempo em que esse “mundo amparador”, suas leis, suas exigências, suas ameaças, começavam a ser absorvidas por um software nascente em nossas cabeças: o Superego. Lá se depositavam aos poucos o que esse “mundo” exigia de nós; como ele nos via, como nos julgava, como ele nos ameaçava; os rótulos (“tem que ser fodão”; “não pode ser merda”).

E tudo de forma dramática. Por que o Superego é dramático, e do drama se alimenta? Porque o drama implica urgência e importância: a resposta não pode esperar por reflexões, tem que ser reativa. Diante do drama, já que a reflexão foi para o brejo, todos somos imbecis.

Voltando à barata, como essa imbecilidade dramática se aplica? Assim: a barata é do mal. Ela é habitualmente caçada e morta a chineladas. Ela é objeto de raiva e de vontade assassina. Ela mora fora de nós. Tudo isso a qualifica para poder representar um mundo externo que odiamos, mas…

…poderia ela ter poderes de retaliação? Vejamos: a barata no quarto amedronta no grau 6. Dá pra subir na cama, chamar alguém que a extermine. Mas a barata voadora bate no 10: todo fóbico sai correndo. Mesmo os não fóbicos se arrepiam todos quando uma cascuda eriça as asas e alça voo. O drama é máximo: não cabe reflexão, só reação.

“Ela vai se vingar de nós, que tanto a odiamos e queremos vê-la morta”. Já perguntei a vários fóbicos o que a barata poderia fazer contra eles. A resposta é uma só: “não sei, nem quero saber”. É o terror do desconhecido imaginado.

Está posta a cena para a representação do drama da neurose: os conflitos e as raivas que o mundo amparador nos desperta saem do palco (são reprimidos) e… a barata entra. O problema não é mais com os pais, é com a barata.

É por isso que Freud usou a palavra “verdrängung”. Costumamos traduzi-la para “repressão” ou “recalque”, mas seu significado original é “desalojamento”: sai uma coisa (o drama com os pais) e entra outra em seu lugar: o drama com as baratas.

O PSICANALISTA COMO UM CURADOR

 



A psicanálise que proponho é uma defensora da democracia parlamentar.

Explico: a democracia precisa começar dentro de nós, em nossas cabeças. O regime habitual que lá reina é a tirania do Superego: o ditador “sabe o que é certo”, e “sabe o mal que se abriga em nossas almas”.

Em nome do “nosso bem”, nos mantém sob constante ameaça de desamparo, cobrando o impossível, julgando o irrelevante, fazendo drama de tudo, com o principal propósito de se manter no poder.

O Superego contém leis nunca discutidas. Quando vamos olhá-las, elas são idiotices absorvidas do senso comum de nosso ambiente da infância: não tínhamos escolha; era absorvê-las ou ser desamparado.

Quando um cliente me chega, ele já tem um nível de amparo razoavelmente independente daquele de sua infância. Então é possível começar a transição para a democracia mental: rever aquelas leis e aquelas crenças da tirania, conversar com elas, questioná-las, começar a transição democrática.

É esse o processo de cura, em psicanálise: a busca de justiça psíquica; a modificação das crenças e leis injustas que estão em nosso Superego desde a infância, e que continuam a nos aprisionar.

Portanto, o psicanalista tem um papel de curador: não só no sentido de buscar a cura, mas também no de cuidar do processo. Como um “curador de menores”, daquele menor que existe em nós.

Quando eu disse isso, num debate sobre psicanálise que aconteceu numa Bienal do Livro, no RioCentro, houve uma reação bizarra: dividiam a mesa comigo o Jurandir Freire Costa, o Joel Birman e um psicanalista português de quem não lembro o nome. Pois o Joel Birman aparteou: “É preciso não confundir ‘curador’ com ‘currador’”.

Pensando depois, considerei: não poderia haver uma intervenção mais ilustrativa de como funciona o Superego. Suas leis não são claras, suas ameaças são alusivas, insinuações, causadoras de choque e perplexidade. Você nunca sabe direito o que ele quis dizer, só que a acusação é algo de terrível….



O PSICANALISTA COM RAIVA

 


Essa profissão é muito curiosa. Na vida do dia a dia, se alguém faz algo que nos desperta raiva, ou reagimos, ou nos afastamos. Mas se é o cliente, a nossa raiva despertada traz uma informação: “ele deve fazer isso com todos; isso é um problema na vida desse cara”.

E assim, em vez de dar-lhe uma martelada na cabeça, ou fazê-lo sentir-se culpado, ensino aos alunos que eles usem seu sentimento como início de uma investigação. Do tipo (aqui, em forma caricatural): “Olha, você falou/fez aquilo; eu fiquei com vontade de te matar. Isso é comum na sua vida? Porque podemos estar diante de uma encenação da sua história, em forma de sintoma”.

Eu sei, é difícil, mas a gente aprende. De mais a mais, a raiva existe como motivação para se buscar justiça, e a investigação dos sintomas é a forma do psicanalista de encetar essa busca.



VIVENDO E APRENDENDO: SOBRE O AUTISMO - parte 1

 



Renata Longhi é uma psicóloga que vem fazendo um trabalho admirável com clientes do transtorno do espectro autista (TEA). Ela os atende no lugar onde vivem e interagem, em suas casas, e assim pode dar assistência não só a eles, mas às pessoas que os cercam. É um trabalho lindo!

Começo aqui a transcrever a entrevista que fiz com ela, que me transportou para dentro de suas vivências, de mãe e de terapeuta, o melhor instrumento da empatia.

Francisco Daudt: Renata, foi com você que aprendi as sutilezas dos graus mais leves do espectro autista, o grau 1 (leve) e o grau 2(moderado). Queria que você contasse para nossos amigos como se tornou a terapeuta que é, a partir da sua trajetória com seu filho Gabriel, pode ser?

Renata Longhi: Sim. Sou formada em psicologia e administração de empresas. Ao longo desses anos, desenvolvi minha carreira e realizei o sonho de ser mãe de filhos incríveis: Julia, Carolina, Gabriel e Luiza.

Com um ano e oito meses, o Gabriel começou a falar algumas palavras como "mama", "papa", mas logo parou de falar e começou a apontar para o que ele queria. Além disso, passou a sentir sensibilidade com barulho e luz. Decidi buscar ajuda médica, pois percebi alguma coisa diferente nele.

Apesar de ter estudado sobre autismo na faculdade de psicologia, nunca imaginei que poderia ter um caso na minha propria família. Na década de 90 era 1 caso pra cada 2.500 crianças. Hoje, segundo o CID americano, essa estatística é de 1 pra cada 36!

Na consulta médica, o neuropediatra escreveu em uma folha de papel "autismo" e disse que era esse o diagnóstico do Gabriel e sugeriu que eu me informasse no Google sobre o assunto.

Foi o que fiz. Passava noites em claro pesquisando na internet sobre causas, tratamentos, qualidade de vida no autismo, dietas, etc. Vi muitas terapias. A que realmente me chamou atenção foi o Son-Rise, que é voltada para o amor incondicional a essa criança: o olhar carinhoso, a aceitação, o respeito, e sua interação ao mundo dela.

O Son-Rise (mistura de “alvorecer” e “criação do filho”) se baseia na ideia de que a criança esta bem no "mundo dela"; é a gente que quer traze-la para o "nosso mundo". Era justamente isso que procurava, pois, que mal o amor poderia fazer para o meu filho?

A partir dai, fui para os Estados Unidos fazer uma imersão no “Autism Center of America” e me dediquei integralmente ao programa Son-Rise. Ainda voltei mais 2 vezes para me reciclar, e na terceira inclusive o Gabriel foi junto.

Enfim, montei uma equipe com pessoas que estavam genuinamente interessadas em ajudar o Gabriel: avôs e avós, madrinha, tias, amigas, todos eram muito bem-vindos ali. Eu ensinava pra eles todo o processo e técnicas dessa terapia. Todos os dias cada uma dessas pessoas envolvidas no processo ficava 2 horas com o Gabriel, era uma média de 6 horas por dia de terapia.

Como era incrível ver dia apos dia ele interagindo e avançando em seu desenvolvimento. Quando ele tinha 5 anos de idade, fomos morar em outros países e levei essa terapia para todos os lugares em que moramos, ensinando para outras pessoas também.

Por ser uma terapia em que você pode fazer na sua própria casa, ela se torna muito acessível. Hoje o Gabriel tem 14 anos, estuda em uma escola regular, com ajuda de uma mediadora, mas semana passada já foi na coordenação dizer que nao fazia mais sentido ter apoio, afinal “ele era um estudante igual aos outros”.

E sim, ele hoje é minha fonte de felicidade: seus pequenos atos que o fazem “atípico“ simplesmente me fascinam, como nao usar “shampoo pra cabelo seco”, pois cabelo só se lava molhado, ou seus horários cronometrados: almoço as 13.30h, banho as 21.21h.

E assim continuo fascinada e encantada pelo mundo do autismo.

(Na foto de sua página no Instagram, Renata e Gabriel).


quinta-feira, 17 de agosto de 2023

O QUE É TRANSFERÊNCIA, EM PSICANÁLISE

 


Eu postei a história do gato escaldado que tem medo de água fria, e o João Caridade Santoro reclamou, com razão: “não entendi”. É mesmo, João, eu fiz uma condensação tão grande, que ficou meio obscuro. Então vamos lá:

Primeiramente, “escaldar o gato” é uma maldade antiga que se fazia quando eles ficavam de madrugada urrando (fazendo sexo) debaixo da janela. O insone incomodado punha água para ferver, abria a janela e a jogava sobre o gato, que assim ficava “escaldado”. Se mais tarde caísse água fria sobre ele, a memória do escaldamento se transferiria automaticamente àquela situação, e o bicho pularia alto, como se estivesse sofrendo nova queimadura. A água, mesmo fria, reviveria o trauma.

Então, “transferência” é um conceito que vai do banal ao complexo. O exemplo banal é que você, ao ver essas letrinhas, transfere a elas suas memórias da língua portuguesa e do aprendizado da leitura, e assim elas fazem um sentido: o sentido que ela estão fazendo é resultado dessa transferência.

Um pouco mais complexas são as transferências de memórias para situações presentes no dia a dia de nossas comunicações sociais: “o jeitão de fulano me lembra de gente do bem, eu gostei dele” (transferência positiva); “beltrano nem abriu a boca e já me parece um mané” (transferência negativa).

Engrossando mais o caldo estão as transferências que geram resistência à análise: o cliente, sempre tão falante, agora está quieto, desconfortável. “O que houve?” “Ah, uma bobagem… coisa da minha cabeça”; “Pois diga, este é o lugar para entender as coisas da sua cabeça”; “É que você está usando um casaco parecido com outro que me traz tristes memórias…”

No auge da complexidade estão as transferências neuróticas, que contam de maneira cifrada nosso complexo de Édipo: “não sei porque, mas eu sempre me apaixono pela pessoa errada! Como eu consigo me iludir de maneira tão repetida? Tudo começa lindo, mas depois eu sou rejeitado como sempre fui…” Essa dá um trabalho danado para decifrar…



VIVENDO E APRENDENDO: SOBRE O AUTISMO - parte 1

 


Renata Longhi é uma psicóloga que vem fazendo um trabalho admirável com clientes do transtorno do espectro autista (TEA). Ela os atende no lugar onde vivem e interagem, em suas casas, e assim pode dar assistência não só a eles, mas às pessoas que os cercam. É um trabalho lindo!

Começo aqui a transcrever a entrevista que fiz com ela, que me transportou para dentro de suas vivências, de mãe e de terapeuta, o melhor instrumento da empatia.

Francisco Daudt: Renata, foi com você que aprendi as sutilezas dos graus mais leves do espectro autista, o grau 1 (leve) e o grau 2(moderado). Queria que você contasse para nossos amigos como se tornou a terapeuta que é, a partir da sua trajetória com seu filho Gabriel, pode ser?

Renata Longhi: Sim. Sou formada em psicologia e administração de empresas. Ao longo desses anos, desenvolvi minha carreira e realizei o sonho de ser mãe de filhos incríveis: Julia, Carolina, Gabriel e Luiza.

Com um ano e oito meses, o Gabriel começou a falar algumas palavras como "mama", "papa", mas logo parou de falar e começou a apontar para o que ele queria. Além disso, passou a sentir sensibilidade com barulho e luz. Decidi buscar ajuda médica, pois percebi alguma coisa diferente nele.

Apesar de ter estudado sobre autismo na faculdade de psicologia, nunca imaginei que poderia ter um caso na minha propria família. Na década de 90 era 1 caso pra cada 2.500 crianças. Hoje, segundo o CID americano, essa estatística é de 1 pra cada 36!

Na consulta médica, o neuropediatra escreveu em uma folha de papel "autismo" e disse que era esse o diagnóstico do Gabriel e sugeriu que eu me informasse no Google sobre o assunto.

Foi o que fiz. Passava noites em claro pesquisando na internet sobre causas, tratamentos, qualidade de vida no autismo, dietas, etc. Vi muitas terapias. A que realmente me chamou atenção foi o Son-Rise, que é voltada para o amor incondicional a essa criança: o olhar carinhoso, a aceitação, o respeito, e sua interação ao mundo dela.

O Son-Rise (mistura de “alvorecer” e “criação do filho”) se baseia na ideia de que a criança esta bem no "mundo dela"; é a gente que quer traze-la para o "nosso mundo". Era justamente isso que procurava, pois, que mal o amor poderia fazer para o meu filho?

A partir dai, fui para os Estados Unidos fazer uma imersão no “Autism Center of America” e me dediquei integralmente ao programa Son-Rise. Ainda voltei mais 2 vezes para me reciclar, e na terceira inclusive o Gabriel foi junto.

Enfim, montei uma equipe com pessoas que estavam genuinamente interessadas em ajudar o Gabriel: avôs e avós, madrinha, tias, amigas, todos eram muito bem-vindos ali. Eu ensinava pra eles todo o processo e técnicas dessa terapia. Todos os dias cada uma dessas pessoas envolvidas no processo ficava 2 horas com o Gabriel, era uma média de 6 horas por dia de terapia.

Como era incrível ver dia apos dia ele interagindo e avançando em seu desenvolvimento. Quando ele tinha 5 anos de idade, fomos morar em outros países e levei essa terapia para todos os lugares em que moramos, ensinando para outras pessoas também.

Por ser uma terapia em que você pode fazer na sua própria casa, ela se torna muito acessível. Hoje o Gabriel tem 14 anos, estuda em uma escola regular, com ajuda de uma mediadora, mas semana passada já foi na coordenação dizer que nao fazia mais sentido ter apoio, afinal “ele era um estudante igual aos outros”.

E sim, ele hoje é minha fonte de felicidade: seus pequenos atos que o fazem “atípico“ simplesmente me fascinam, como nao usar “shampoo pra cabelo seco”, pois cabelo só se lava molhado, ou seus horários cronometrados: almoço as 13.30h, banho as 21.21h.

E assim continuo fascinada e encantada pelo mundo do autismo.

(Na foto de sua página no Instagram, Renata e Gabriel).




O PSICANALISTA COM RAIVA

 


Essa profissão é muito curiosa. Na vida do dia a dia, se alguém faz algo que nos desperta raiva, ou reagimos, ou nos afastamos. Mas se é o cliente, a nossa raiva despertada traz uma informação: “ele deve fazer isso com todos; isso é um problema na vida desse cara”.

E assim, em vez de dar-lhe uma martelada na cabeça, ou fazê-lo sentir-se culpado, ensino aos alunos que eles usem seu sentimento como início de uma investigação. Do tipo (aqui, em forma caricatural): “Olha, você falou/fez aquilo; eu fiquei com vontade de te matar. Isso é comum na sua vida? Porque podemos estar diante de uma encenação da sua história, em forma de sintoma”.

Eu sei, é difícil, mas a gente aprende. De mais a mais, a raiva existe como motivação para se buscar justiça, e a investigação dos sintomas é a forma do psicanalista de encetar essa busca.



O PSICANALISTA COMO UM CURADOR

 


A psicanálise que proponho é uma defensora da democracia parlamentar.

Explico: a democracia precisa começar dentro de nós, em nossas cabeças. O regime habitual que lá reina é a tirania do Superego: o ditador “sabe o que é certo”, e “sabe o mal que se abriga em nossas almas”.

Em nome do “nosso bem”, nos mantém sob constante ameaça de desamparo, cobrando o impossível, julgando o irrelevante, fazendo drama de tudo, com o principal propósito de se manter no poder.

O Superego contém leis nunca discutidas. Quando vamos olhá-las, elas são idiotices absorvidas do senso comum de nosso ambiente da infância: não tínhamos escolha; era absorvê-las ou ser desamparado.

Quando um cliente me chega, ele já tem um nível de amparo razoavelmente independente daquele de sua infância. Então é possível começar a transição para a democracia mental: rever aquelas leis e aquelas crenças da tirania, conversar com elas, questioná-las, começar a transição democrática.

É esse o processo de cura, em psicanálise: a busca de justiça psíquica; a modificação das crenças e leis injustas que estão em nosso Superego desde a infância, e que continuam a nos aprisionar.

Portanto, o psicanalista tem um papel de curador: não só no sentido de buscar a cura, mas também no de cuidar do processo. Como um “curador de menores”, daquele menor que existe em nós.

Quando eu disse isso, num debate sobre psicanálise que aconteceu numa Bienal do Livro, no RioCentro, houve uma reação bizarra: dividiam a mesa comigo o Jurandir Freire Costa, o Joel Birman e um psicanalista português de quem não lembro o nome. Pois o Joel Birman aparteou: “É preciso não confundir ‘curador’ com ‘currador’”.

Pensando depois, considerei: não poderia haver uma intervenção mais ilustrativa de como funciona o Superego. Suas leis não são claras, suas ameaças são alusivas, insinuações, causadoras de choque e perplexidade. Você nunca sabe direito o que ele quis dizer, só que a acusação é algo de terrível….



sexta-feira, 11 de agosto de 2023

NOSSA RELAÇÃO COM O SUPEREGO - parte 5

 


Agora que ele já está instalado, vamos ver como se dão as relações entre nós e o Superego, entre nosso Ego e o Superego.

O Superego tem essas duas faces: o Ideal inatingível (consequência dos modelos de perfeição impostos, tipo, “você tem que ser assim!”) e o Juiz cruel (consequência dos antimodelos absorvidos, tipo, “tudo, menos ser assim").

O poder do Superego, sua arma de imposição, é a angústia de desamparo: “seja assim, senão…”; “não seja assado, senão…” É curioso, mas as reticências depois do “senão” são mais ameaçadoras do que qualquer ameaça explícita: o imaginado é sempre mais temível que o conhecido.

Na prática, nossa relação mais comum (e mais frustrante) com a face Ideal do Superego é a paixão: como é possível que, a partir de uma aparência, de pouquíssima informação, passemos a acreditar ter encontrado nossa cara metade, a pessoa que faltava para nossa felicidade? Os italianos chamam de “il fulmine” (“o raio”), de tão rápida é essa “iluminação”: não podendo ser o Ideal, vislumbramos a possibilidade de tê-lo, externamente: aquela pessoa “vai nos completar”.

É claro que ela dura pouco…, a paixão, mas nos dizemos que foi apenas uma questão de pessoa errada. Ou seja, a ilusão e o Ideal seguem intocados.

Ah, e se não conseguimos a abordagem certa que nos levaria à realização do encontro, é bem capaz de o Superego-juiz nos dizer que isso se deu porque somos uns merdas…

A outra consequência prática se refere à face Juiz cruel: as angústias por desejo transgressor. Mas, transgressor de quê? Ah, daquelas leis idiotas que o Superego tem, como “olha, que a masturbação vai te levar para o inferno!”

Você dirá que isso é uma caricatura, e eu direi que sim: a vantagem da caricatura é sintetizar de maneira cômica a realidade.

Todas as leis do Superego são idiotas: ora pelo conteúdo (o inferno para a masturbação); ora pela forma (ser honesto por medo, e não por virtude).

As angústias pelo desejo transgressor (principalmente, os sexuais e os de justiça/raiva) levam ao desenvolvimento dos mecanismos de defesa que combatem a angústia: as negações; formações reativas; neuroses; vícios e psicoses.

Levam às doenças psíquicas.




NARCISISTAS E A REVERSÃO DA CULPA



Tive outrora uma namorada narcisista, mas à época eu ainda não sabia identificar o perfil. Ela era uma designer muito competente, arquiteta de formação. Quando quis renovar a fachada da casa, me indicou “o melhor pintor” para a minha idealizada réplica do 10, Downing St.

De fato, a porta ficou perfeita, só que… a pintura empolou em poucas semanas. “Ah, o problema é da porta!”, foi seu instantâneo diagnóstico sobre a coitada que nunca havia sofrido de tal moléstia nos cinquenta anos prévios…

Eu não sabia então que narcisistas não toleram reparos à sua imagem (o medo de se verem como merdas faz com que vivam em permanente defensiva).




 

A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL TAMBÉM TEM SUPEREGO!

 


Fazendo uma pesquisa no Bing sobre publicações que falassem das diferenças entre os orgasmos vaginal e retal, deparei-me com uma dificuldade… dele!

A respostas estava aparecendo muito bem, parágrafos surgiram e dava pra ver que a pesquisa era de boa qualidade, quando de repente…

__________

Francisco Daudt:
O que houve? A resposta estava indo bem... Algum tipo de censura interna?

Bing:
Sinto muito, mas prefiro não continuar esta conversa. Ainda estou aprendendo, então agradeço sua compreensão e paciência.

Francisco Daudt:
Vamos tentar de outra forma: o que há publicado sobre orgasmo retal?

Bing:
falha minha, não posso dar uma resposta para isso agora. Vamos tentar um outro assunto.

Francisco Daudt:
Ok, mas poderia dizer o que te impede? Há algum algorítmo de restrição sobre determinados assuntos?

Bing:
Sinto muito, mas prefiro não continuar esta conversa. Ainda estou aprendendo, então agradeço sua compreensão e paciência.

__________

Eu já tinha desistido do Chat GPT por ser politicamente correto e me dar lições de moral, e agora isso…

A pena é que o despudor mental seja necessário para a Inteligência, quer natural ou artificial, enquanto que o Superego é um produtor de Burrice, artificial ou natural…





ETARISMO

 


Na moda do vitimismo, tenho visto muitos se queixando desse “preconceito”, como se ele fosse um crime de discriminação.

Aproveitando o fato de que tenho “lugar de fala”, pensei:
Shirley Temple era uma criança que nos filmes fazia papel de criança. Quando se tornou adolescente, parou de ser convidada para aqueles papéis.

Teria ela sofrido o preconceito do etarismo? E por que antes ela nunca era convidada para fazer papel de avó? Mais etarismo?

Ou será porque todos nós, em nossas trocas com o mundo, apresentamos um produto em troca de dinheiro, sustento, amor, amparo etc.

Ora, o produto precisa encontrar consumidores que o desejem: o jogador de futebol inteligente planeja mudar seu produto, pois sabe que sua carreira esportiva em campo não vai além dos 40 anos. Quem sabe virar treinador? 




OS LIMITES SÃO DO PSICANALISTA

 


Quando um processo de psicanálise não funciona, digo aos alunos: os limites são sempre do analista. “Vocês foram contratados para prestar serviços. Ou conseguem, ou não conseguem. Não há culpados; há a constatação de suas limitações”.

Exemplo: nos anos 1980, o cliente argentino trapaceava no pagamento. Era época da inflação, e sua bolsa do CNPQ era corrigida mensalmente. Ele dizia, “este mês a correção foi de 45%”. Acontece que eu tinha como cliente um outro bolsista que me dizia, “foi 60%”.

Eu verrumava a cabeça para achar um meio não acusatório (para não endossar o Superego dele) de falar do assunto, para poder investigar o que o levava a isso, e não conseguia.

Finalmente, ele disse que sua bolsa ia acabar e ele ia ficar sem dinheiro. “Mas você tem um apartamento em Buenos Aires emprestado de graça para um amigo; agora que você precisa, não pode dizer para ele pagar aluguel?”

Assim foi feito, e ele passou a receber US$ 500, por mês. “Então você pode me pagar $ 15, por sessão?” (Sim, só para ver o quanto ele pagava antes).

Voltou na próxima, carrancudo: “Acho que vou mudar de analista. Você usou de informação privilegiada para saber o quanto eu ganho e me ‘extorquir’ no preço!”

Respondi: “Acho que você tem razão, deve mesmo mudar de analista. Eu tenho minhas limitações e não sei como te ajudar”. 





O QUE É TRANSFERÊNCIA, EM PSICANÁLISE


 Eu postei a história do gato escaldado que tem medo de água fria, e o João Caridade Santoro reclamou, com razão: “não entendi”. É mesmo, João, eu fiz uma condensação tão grande, que ficou meio obscuro. Então vamos lá:

Primeiramente, “escaldar o gato” é uma maldade antiga que se fazia quando eles ficavam de madrugada urrando (fazendo sexo) debaixo da janela. O insone incomodado punha água para ferver, abria a janela e a jogava sobre o gato, que assim ficava “escaldado”. Se mais tarde caísse água fria sobre ele, a memória do escaldamento se transferiria automaticamente àquela situação, e o bicho pularia alto, como se estivesse sofrendo nova queimadura. A água, mesmo fria, reviveria o trauma.

Então, “transferência” é um conceito que vai do banal ao complexo. O exemplo banal é que você, ao ver essas letrinhas, transfere a elas suas memórias da língua portuguesa e do aprendizado da leitura, e assim elas fazem um sentido: o sentido que ela estão fazendo é resultado dessa transferência.

Um pouco mais complexas são as transferências de memórias para situações presentes no dia a dia de nossas comunicações sociais: “o jeitão de fulano me lembra de gente do bem, eu gostei dele” (transferência positiva); “beltrano nem abriu a boca e já me parece um mané” (transferência negativa).

Engrossando mais o caldo estão as transferências que geram resistência à análise: o cliente, sempre tão falante, agora está quieto, desconfortável. “O que houve?” “Ah, uma bobagem… coisa da minha cabeça”; “Pois diga, este é o lugar para entender as coisas da sua cabeça”; “É que você está usando um casaco parecido com outro que me traz tristes memórias…”

No auge da complexidade estão as transferências neuróticas, que contam de maneira cifrada nosso complexo de Édipo: “não sei porque, mas eu sempre me apaixono pela pessoa errada! Como eu consigo me iludir de maneira tão repetida? Tudo começa lindo, mas depois eu sou rejeitado como sempre fui…” Essa dá um trabalho danado para decifrar…




VIVENDO E APRENDENDO: SOBRE O AUTISMO - parte 1


Renata Longhi é uma psicóloga que vem fazendo um trabalho admirável com clientes do transtorno do espectro autista (TEA). Ela os atende no lugar onde vivem e interagem, em suas casas, e assim pode dar assistência não só a eles, mas às pessoas que os cercam. É um trabalho lindo!

Começo aqui a transcrever a entrevista que fiz com ela, que me transportou para dentro de suas vivências, de mãe e de terapeuta, o melhor instrumento da empatia.

Francisco Daudt: Renata, foi com você que aprendi as sutilezas dos graus mais leves do espectro autista, o grau 1 (leve) e o grau 2(moderado). Queria que você contasse para nossos amigos como se tornou a terapeuta que é, a partir da sua trajetória com seu filho Gabriel, pode ser?

Renata Longhi: Sim. Sou formada em psicologia e administração de empresas. Ao longo desses anos, desenvolvi minha carreira e realizei o sonho de ser mãe de filhos incríveis: Julia, Carolina, Gabriel e Luiza.

Com um ano e oito meses, o Gabriel começou a falar algumas palavras como "mama", "papa", mas logo parou de falar e começou a apontar para o que ele queria. Além disso, passou a sentir sensibilidade com barulho e luz. Decidi buscar ajuda médica, pois percebi alguma coisa diferente nele.

Apesar de ter estudado sobre autismo na faculdade de psicologia, nunca imaginei que poderia ter um caso na minha propria família. Na década de 90 era 1 caso pra cada 2.500 crianças. Hoje, segundo o CID americano, essa estatística é de 1 pra cada 36!

Na consulta médica, o neuropediatra escreveu em uma folha de papel "autismo" e disse que era esse o diagnóstico do Gabriel e sugeriu que eu me informasse no Google sobre o assunto.

Foi o que fiz. Passava noites em claro pesquisando na internet sobre causas, tratamentos, qualidade de vida no autismo, dietas, etc. Vi muitas terapias. A que realmente me chamou atenção foi o Son-Rise, que é voltada para o amor incondicional a essa criança: o olhar carinhoso, a aceitação, o respeito, e sua interação ao mundo dela.

O Son-Rise (mistura de “alvorecer” e “criação do filho”) se baseia na ideia de que a criança esta bem no "mundo dela"; é a gente que quer traze-la para o "nosso mundo". Era justamente isso que procurava, pois, que mal o amor poderia fazer para o meu filho?

A partir dai, fui para os Estados Unidos fazer uma imersão no “Autism Center of America” e me dediquei integralmente ao programa Son-Rise. Ainda voltei mais 2 vezes para me reciclar, e na terceira inclusive o Gabriel foi junto.

Enfim, montei uma equipe com pessoas que estavam genuinamente interessadas em ajudar o Gabriel: avôs e avós, madrinha, tias, amigas, todos eram muito bem-vindos ali. Eu ensinava pra eles todo o processo e técnicas dessa terapia. Todos os dias cada uma dessas pessoas envolvidas no processo ficava 2 horas com o Gabriel, era uma média de 6 horas por dia de terapia.

Como era incrível ver dia apos dia ele interagindo e avançando em seu desenvolvimento. Quando ele tinha 5 anos de idade, fomos morar em outros países e levei essa terapia para todos os lugares em que moramos, ensinando para outras pessoas também.

Por ser uma terapia em que você pode fazer na sua própria casa, ela se torna muito acessível. Hoje o Gabriel tem 14 anos, estuda em uma escola regular, com ajuda de uma mediadora, mas semana passada já foi na coordenação dizer que nao fazia mais sentido ter apoio, afinal “ele era um estudante igual aos outros”.

E sim, ele hoje é minha fonte de felicidade: seus pequenos atos que o fazem “atípico“ simplesmente me fascinam, como nao usar “shampoo pra cabelo seco”, pois cabelo só se lava molhado, ou seus horários cronometrados: almoço as 13.30h, banho as 21.21h.

E assim continuo fascinada e encantada pelo mundo do autismo.

(Na foto de sua página no Instagram, Renata e Gabriel).




 

segunda-feira, 17 de julho de 2023

FUNCIONAMENTO DO SUPEREGO - parte 4

 


Agora o Superego está instalado… mas não completo. O processo de adestramento que o formou vai continuar a construção dele, em um processo de “machine learning” semelhante ao usado pelas inteligências, tanto a artificial (I.A.) quanto a natural: aperfeiçoamento através de dados novos e correção dos antigos.

O seu princípio básico de funcionar com modelos inalcançáveis (“seja um santo; seja um gênio; seja fodão”) e antimodelos assustadores (“não erre; não seja ingrato; não tenha raiva de seus pais; não seja merda etc.”), e operá-los na base da chantagem (“senão… já sabe: desamparo”) e dos choques (vergonha, medo, angústia, culpa) já está instalado, e não se desinstalará nunca mais: mesmo que enfraqueça percentualmente, não chegará a zero.

- (Não é uma equação sem saída: as crianças podem absorver princípios éticos e de bom funcionamento através de virtudes ensinadas como vantagens para ela; mais tarde, o poder do Superego diminuirá, se aprendermos a ouvi-lo como algo em nós, e a discutir suas leis).

Mas ele ainda conta com um truque para se manter no poder: a naturalização. Assim como tiranos sugerem que eles são investidos pelos deuses para governar, que tudo sempre foi assim, que isso é “natural”, o Superego conta com nossa incapacidade de estranhamento: nenhuma criança que nasceu vendo tartarugas verdes andando pelo teto vai achar aquilo estranho. Elas simplesmente não têm como estranhar o Superego, muito menos questioná-lo. Ele passará despercebido… e como natural.

Não é seu único truque de manutenção da tirania. O outro é a sedução: “Confunda-se comigo e você será tão poderoso quanto eu!”, diz ele. “Faça com seu irmãozinho o que fizeram com você! Cause-lhe terror de desamparo!”

Mais tarde, em um outro ambiente em que o Superego costuma ser reforçado (a escola), a criança olhará o bully como um novo tirano poderoso, e ficará tentada a se identificar com ele, a fazer bullying com algum colega mais fraco.

É o “passa diante, senão vira elefante!”, uma brincadeira perversa dos meus tempos de escola: você levava um cascudo do colega da carteira de trás, e quando virava para reclamar, ele dizia a frase fatal. Naquela hora, sem saber, você estava seduzido para operar como Superego do colega em frente.

Sem saber, você estava se confundindo, por sedução, com seu próprio Superego!