terça-feira, 24 de novembro de 2020

Diversos: Centenário (Texto em homenagem a Fabio Penna da Veiga)

 (Publicado em 11 de junho de 2012)

Dr. Fabio,

“A alcantácea túrcupe emana, cingindo, púcara, os zimbóreos de Altamana”.

Assim começavam os bons discursos na época em que você nasceu. Mas os tempos são outros (graças a Deus), de modo que o meu discurso não é desses. Então vamos lá:

Um brasileiro perguntou a seu amigo português:

— Você quer ir comigo a uma festa de 15 anos?

E o português:

— Escusas, mas não posso me ausentar por tanto tempo.

Pois estamos aqui, numa festa de 100 anos. Convido vocês a me acompanharem numa viagem pelo tempo:

 O que é ser centenário em 2005:

  • É ter nascido apenas quatro anos depois da morte da Rainha Victória

  • É já andar de velocípede e comer bife quando o Oscar Niemeyer e a Dercy Gonçalves nasceram

  • É ter um ano quando Santos Dumont voou com o 14bis

  • É ter 4 anos quando Carmen Miranda nasceu e 50 quando ela morreu

  • É ter 12 anos quando Kennedy nasceu, e 58 quando ele foi assassinado

  • ter sido governado por 36 presidentes da república, 3 juntas militares e 4 primeiros ministros.

  • ter sido contemporâneo de 9 papas

  • ter  12 anos quando Caruso se apresentou no Rio, e 16 quando ele morreu

  • ter nascido no ano em que Sarah Bernhardt quebrou a perna no teatro Lyrico do Rio, e 18 anos quando ela morreu

  • ter quatro anos quando o teatro Municipal foi inaugurado

  • ter esperado 16 anos para ver seu primeiro cinema falado

  • ter andado de tílburi, landau, victórias e outros veículos de tração animal, como meios de transporte comuns, e não turísticos

  • ter escapado com vida da epidemia mundial de gripe espanhola de 1918 que matou mais de 20 milhões

  • ter presenciado o nascimento do avião, da geladeira; do rádio, do raio X, do ar-condicionado; da televisão, do computador; ter passado do gramofone movido à corda, do cilindro gravado para o disco de um lado só, chamado chapa, ao 78 de dois lados, já tocado na victrola elétrica, ao LP de vinil de 33 rpm, ao surgimento do estereofônico, da fita cassete; do CD; do vídeo e do DVD, e ter desfrutado de cada um deles

  • ser centenário é ter visto o Brasil passar por várias crises, que fazem a atual não assustá-lo. Viu os 18 do forte com 19 anos, o tenentismo. Viu o golpe de Vargas acabar com a República Velha de seu avô, quando os presidentes saíam do poder mais pobres do que quando entravam; viu uma guerra civil em que brasileiros matavam brasileiros, a revolução constitucionalista de 1932; viu Plínio Salgado dizendo anauê para imitar Hitler; viu o mar de lama que fez Getúlio se suicidar; viu duas ditaduras: a de Vargas durando 15 anos, a dos militares durando 21; viu a renúncia de Jânio; viu a tentativa de Jango de transformar o país numa república sindicalista aos moldes de Perón; viu Sarney conduzindo uma economia de 80% de inflação ao mês; viu Collor seqüestrando a poupança dos brasileiros (a dele, inclusive); viu Zélia Cardoso de Mello conduzindo a economia; viu o impedimento do Collor; e last, but not the least, viu a eleição e o governo de Lula

  • ser centenário é ter 16 anos quando a princesa Isabel morreu

  • Ter 49 anos quando Getúlio Vargas se suicidou

  • Ter 21 anos quando nasceu Fidel Castro

  • Ter 22 quando Charles Lindenberg cruzou o Atlântico

  • Ele tinha 12 anos quando aconteceu a revolução soviética e 13 quando o czar e sua família foram assassinados

  • 9 anos quando eclodiu a 1a guerra mundial e 40 quando a segunda guerra terminou

  • é ter nascido no mesmo ano que Sartre; Greta Garbo e Howard Hughes

  • É ter sido contemporâneo, por exemplo:
    Dos escritores Julio Verne; sir Arthur Conan Doyle; Rudyard Kypling; Machado de Assis; Euclides da Cunha; Anatole France; Fernando Pessoa; Franz Kafka e Bernard Shaw;
    Dos políticos Ruy Barbosa; Teddy Roosevelt; Joaquim Nabuco; Pinheiro Machado e de Lenin;
    Dos pintores Claude Monet; Cézanne; Renoir; Degas; Pedro Américo; Gustav Klimt e Modigliani;
    Dos compositores Puccini; Elgar (de Pompa e Circunstância); Debussy; Chiquinha Gonzaga; Ravel e Rachmaninof;
    E de gente como o Dreyfus (a favor de quem Zola escreveu o “j’accuse”), o xerife Wyatt Earp e Buffalo Bill.

Quando ele nasceu:

  • O império brasileiro havia terminado 16 anos antes. Em termos atuais, um fato tão antigo quanto a eleição do Collor

  • Dom Pedro II havia morrido 6 anos antes

  • No caso específico do Dr. Fabio, ser centenário é ser o mais antigo dos ex-alunos do Sto. Inácio, o decano dos sócios do Fluminense, e o mais idoso engenheiro no Brasil em atividade.

  • Ele estaria com sete anos, e seria provavelmente salvo do naufrágio do Titanic.

  • Por fim, ser centenário é ter sobrevivido a amigos e colegas de colégio e vê-los transformados em placas, como a da  Rua Editor José Olympio, do Viaduto Haroldo Poland ou da Rodovia Amaral Peixoto, e ver seu melhor amigo da vida inteira, seu irmão de coração, o Feliciano, virar a Rua Engenheiro Penna Chaves, transversal da Lopes Quintas. Nas palavras de Machado de Assis, “Os amigos que tenho são novos. Os antigos estão estudando a geologia dos campos santos”.

Entro aqui na segunda parte desse petit mot, que por sorte é a última, antes que ele deixe de ser petit

O HUMOR NA VIDA DO DR. FABIO

Se  há alguma coisa além da genética que pode ter contribuído para meu pai se tornar centenário, essa foi seu humor afiado. Às vezes involuntário. Quando pequeno, e morava no palácio do Catete, divertia-se atirando seus brinquedos pela amurada do terraço, em direção à rua Silveira Martins. Pouco mais tarde, filho do ministro-chefe  da Casa civil (que na época era um cargo ocupado por gente honrada), estava já acostumado às modernidades, como andar de automóvel. Foi quando um mendigo bateu pedindo esmola à porta de sua casa em Petrópolis. Reparando no sapato furado do pedinte, saíu-se com uma solução brilhante: – Por quê o senhor não anda de carro, para poupar os sapatos?

Quando depois que seu primo, o Almirante Penna Botto, desistiu de bombardear Copacabana do destroier em que abrigava o pretendente à presidência, Carlos Luz, deu-se o seguinte diálogo:

Meu pai: Mas almirante, por que o senhor não atirou?

Penna Botto: Ah, Fabio, eu poderia matar inocentes.

Fabio: Almirante, para matar inocentes o senhor iria precisar de muita mira.

Na década de 20 Fabio foi infectado pela epidemia de trocadilhos que assolava o país, considerados então como o máximo da presença de espírito. Os líderes desse movimento eram os freqüentadores da Confeitaria Colombo, entre eles, Bastos Tigre, Emílio de Menezes e Olavo Bilac, protagonistas de um repente que ficou célebre como o “trocadilho dos cereais”: cansado, Emílio levanta-se para se retirar. E aí começa a pândega: “Emílio, não consinto que se evada” diz Bastos Tigre. “Se o fazes, contigo me intrigo!”. Bilac, dando a volta na mesa, empurra Emílio de volta à cadeira, e exclama, exultante: “Sentei-o”. Conformado, Emílio arremata: “Vocês hoje estão com a veia!” Este episódio ganhou recentemente o infame título, derivado da mesma doença da época: “Cereal serial” .

Pois dr. Fabio ficou contaminado para sempre, e toda vez que houve oportunidade, lá vinha ele transformando qualquer assunto pesado numa boutade, o que foi uma grande contribuição para que nós não nos levássemos a sério. Uma crise no congresso que despertou sectarismos e intransigências, fez com que ele dissesse: “Isso é estranho, pois o congresso sempre foi conhecido como uma grande casa de tolerância”. Para os mais novos, casa de tolerância era o nome que se dava então ao que o Ancelmo Góis chama hoje de casa de saliência. Quando seu humor se tornava mais picante, em nome da modéstia, ele usava os trocadilhos franceses, seus amados calembours, sempre tendo D. Lygia a lhe corrigir a pronúncia, o que sempre foi uma brincadeira particular entre eles. Mas também podia usar as charadas. A mais saborosa entre elas, em que o sotaque lusitano é necessário, eu vou ter a ousadia de reproduzir aqui, mas, fique tranqüilo, meu pai, não vou dar a solução*: “abre e fecha sem ter mola, 1 – andam aos pulinhos na mata, 2 – conceito: quisera ter três”.

Seu humor se revelava até nos atos falhos: Fabio adolescente, em casa de seus pais, constatou a chegada de surpresa de uns parentes bem na hora do jantar. Meu avô Edmundo, homem gentil por natureza, entreteve os primos na sala enquanto a família se contorcia de fome. O avô, por fim, chama a família e serve aos parentes um aperitivo. Foi quando meu pai lhes ergueu brinde, e, querendo dizer “à saúde”, disse-lhes “adeusinho”.

Sobre parentes, escrevi em um dos meus livros o episódio em que, num velório, perguntei: “Pai, quem é aquele ali?” E ele: “É um primo longe… mas não o suficiente”. Quero me penitenciar aqui pela minha completa invencionice. Tal coisa nunca aconteceu. Ao contrário, meu pai sempre foi tão devoto à família, e vocês aqui são prova disso, que uma vez, também num funeral, se queixou ao tio Octávio Veiga que era uma vergonha que os parentes só se encontrassem nessas ocasiões. Era preciso combinar uma reunião, um encontro informal. O tio não tinha os pudores do meu pai. Retrucou logo: “É mesmo, Fabio… e que tal no jardim zoológico?”

Dr. Fabio herdou do avô Edmundo a gentileza. Uma vez, escutando por horas a conversa de uma senhora, começou a cabecear de sono. Recuperava-se da cabeceada com um ar atento, ou com uma observação agradável. Numa dessas saiu-se com um “que maravilha!”. A senhora, indignada, disse: “mas Dr. Fabio, eu lhe conto que minha filha grávida foi abandonada pelo marido e o senhor me diz que isso é uma maravilha?” E meu pai, já completamente desperto: “Mas é claro, é ou não é uma maravilha ela ter se livrado de tamanho cafajeste?”

Em outra ocasião não escapou tão fácil. Numa roda de pôquer as cartas lhe vinham cada vez piores. Sem que ele se desse conta, uma viúva, magra, feia, de fartos buços e toda de negro, veio espiar seu jogo. Lá ficou, bem atrás dele, por duas ou três rodadas. Na última, tendo recebido a pior mão da noite, dr. Fabio desabafou: “Um urubu pousou na minha sorte!” Dessa vez não houve conserto.

Quem sabe dominar o humor, em geral, sabe também dominar o drama. Dr. Fabio usou muito o drama em nossa educação. Bom mineiro, nunca jogou dinheiro fora. Portanto, pedir algum para ele sempre foi um sofrimento. Para nós, sem dúvida;

- Pai, me dá 10 reais para ir ao cinema?

Suspeito que para ele não era sofrimento, era só motivo para fazer drama. A face contraída, a mão no peito era de alguém apunhalado. A cada novo argumento nosso, parecia que estávamos torcendo a faca. Afinal, depois de muitos gemidos, o dinheiro saía. Seus próprios gastos eram modestos, mas nunca deixou de nos encantar quando ele vinha da cidade com um pacote da drogaria Granado, cheio de emplastros Sabiá, de Vick vaporub, de polvilho antissético, e de frascos do Pó Pelotense, o desodorante da época.

Esse seu lado de munheca de leitão assado nos ensinou uma lição preciosa: não há nada como a independência financeira. Qualquer coisa era melhor do que pedir dinheiro para o Dr. Fabio.   

No entanto ele proporcionou casa própria a cada um dos filhos, uma generosidade e um empurrão para a independência dos quais sempre seremos gratos. É um gesto que pretendo repetir com meus filhos, tão bom foi para mim. Nela resido até hoje, e dela só pretendo me mudar para a rua general Polidoro, direita de quem desce. A propósito, minha futura residência também foi providenciada por ele.

Mas você pode pensar que o humor do dr. Fabio se embotou com a idade. Pois ouça então essa de um dos mais recentes almoços de domingo. Comentando as últimas declarações do nosso presidente, ele declarou: “Lula não quer ser como Getúlio, que se suicidou; nem como Jânio, que renunciou; nem como Jango, que foi deposto. Ele quer ser como JK, ou seja: prefere morrer esmagado por um ônibus.

Por fim, me lembro da vez em que ele viu uma placa na estrada para um lugar que gostava de ir: “Como viver cem anos em Guarapari”. Naquela hora foi atacado de seu antigo trocadilhismo e respondeu de pronto: “Como viver cem anos? Ora, é muito fácil: com uma bolsa de colostomia”.

Meu pai querido, todos nós temos que lhe agradecer por nos mostrar como viver cem anos de um jeito muito mais feliz e bonito. Do jeito como você os viveu.

FIM


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Apenas para os interessados

(atenção: contém linguagem chula)

*- Solução da charada: Abre e fecha sem ter mola (uma sílaba): cu

Andam aos pulinhos na mata (duas): leões

Conceito: quisera ter três = culhões


Artigos: Em Defesa do Consumidor: Como Escolher Um Psicanalista?

 (Publicado em 11 de junho de 2012)

Artigo publicado na Folha de São Paulo

Antes de mais nada, penso que há uma pergunta a ser respondida, porque eu a ouço muito: psiquiatras, psicólogos, psicanalistas, terapeutas, qual a diferença entre eles?

Psiquiatras:

são médicos que estudam a melhor maneira de ajudar quem está mentalmente perturbado através de remédios. Isto é um espetáculo. A psicofarmacologia avançou muitíssimo nas últimas décadas, e os remédios que temos hoje são tão bons que eu diria: não há melhor momento na história da humanidade do que hoje para ser deprimido, neurótico, ansioso, maníaco, psicótico ou qualquer outro distúrbio que, antigamente, levaria você a um hospício.

Psicólogos:

são estudiosos da “alma”, ou, em termos atuais, do software que roda no cérebro e que aparece como comportamentos, pensamentos e outras perturbações (porque eles estudam como o nosso cérebro funciona e como ele nos perturba). Existem muitas maneiras de estudar isto, e muitos mestres olharam este funcionamento por muitos ângulos.

Psicanalistas:

estes psicólogos derivam da maneira de estudar o software cerebral que Freud inaugurou no século XIX. É claro que eu, como psicanalista que sou, vou me deter mais neste jeito de entender o funcionamento da nossa mente. Freud descobriu que nós éramos tão marcados pela nossa educação e pelas pessoas que nos criaram, que acabávamos por carregar este jeito de viver pelo resto de nossas vidas: se ele era favorável e lógico, ótimo, viveríamos bem; se ele era estranho e cruel, acreditaríamos nele e viveríamos mal (ele não falou quase nada da genética, que constitui 50% do que somos).

Terapeutas:

são pessoas que cuidam (terapia é cuidar, é tratamento) de outras. Por isto você tem fisioterapia, logoterapia, quimioterapia e assim por diante, até ter psicoterapias, feitas por psicoterapeutas, que são pessoas que cuidam de você e de sua maneira mental de funcionar. Os psicanalistas podem ser estudiosos apenas (teóricos), ou psicoterapeutas, aqueles que cuidam de pessoas usando a psicanálise como instrumento. É uma das inúmeras maneiras de psicoterapia.

Mas acho que basta. Meu assunto é como escolher um psicanalista terapeuta, alguém que vai cuidar de você com o instrumental que Freud inventou, alguém que vai te prestar um serviço de saúde. Você o contrata e consome o serviço dele.

“Ai, que barbaridade, pensar o cliente como consumidor!”

Sinto muito se feri suscetibilidades, mas imagino que, se você está lendo um caderno sobre psicanálise, está preparado para ler textos eruditos de que você não vai entender 10%. É uma das coisas que me horrorizam em psicanálise, e que sempre me pareceu uma contradição entre termos. Afinal, a psicanálise veio para explicar ou para confundir?

Clínica: do latim, quer dizer “inclinar-se”, para observar e entender.

Pratico a clínica psicanalítica há 35 anos, e fui consumidor desta prestação de serviço durante oito, com dois psicanalistas diferentes. É. Prestação de serviço mesmo, eu pagava (caro) e recebia 50 minutos de suposta atenção.

Assim como quando fui pai, tentei me lembrar de quando era criança e o que funcionava e o que me irritava no jeito de meus pais, quando fui ser psicanalista, prestei bem atenção no que me fez bem e no que me fez mal quando fui cliente. Para aprender com os erros (evitando-os) e com os acertos de meus psicanalistas (tomando-os como modelo).

Você já viu que vai entender tudo o que eu escrever aqui. Gosto de clareza, de transparência, do que é lógico e razoável. Se você gosta de obscuridades, perplexidades e esoterismos, pode pular este artigo. Não é tua praia.

A coisa é simples assim: quantos psicanalistas são necessários para trocar uma lâmpada? Um só, mas é preciso que a lâmpada queira muito ser trocada. Procurei a psicanálise porque me sentia mal comigo mesmo e queria muito me sentir bem. A pergunta seguinte era: o profissional teria o mesmo objetivo? Ele quereria me fazer sentir melhor com o instrumento terapêutico que usava?

Parece uma pergunta besta, não? Mas não é! Há vários psicanalistas que não se sentem comprometidos com a melhora e o bem-estar de seus pacientes (que dirá com a cura de seus sintomas), eles têm como meta “a reflexão sobre os enigmas do seu funcionamento psíquico”, ou pior, “com a sua aceitação da castração” (calma, que eu explico, é algo assim: “o mundo é duro mesmo, e você deve se dobrar e aceitá-lo como é, sem esperar colinho de mãe, que é o mesmo que querer roubá-la de seu pai, representante do mundo cruel. Tenha horror do incesto, o complexo de Édipo”).

De tal maneira que, escolher um psicanalista não é tarefa fácil. Aqui vão algumas sugestões que podem te ajudar, se você ainda não largou a leitura deste blasfemo insolente, ou mesmo desta pessoa desprezível pela sua linguagem chã que qualquer um pode compreender.

  1. A indicação. Ela pode vir de um amigo querido, que tem se sentido cada vez melhor com seu tratamento, e que te diz que nunca saiu de uma sessão pior do que entrou, e que não acredita que “hoje a sessão foi ótima, eu saí de rastos, aos prantos, me sentindo a última das criaturas, porque nós fomos fundo nos meus horrores”. Ela pode vir de artigos que você leu e te deram alívio e compreensão, assinados pelo cara. Ou o mesmo sentimento a partir de livros que ele escreveu, entrevistas que ele deu etc.

  2. O primeiro contato. Geralmente pelo telefone. É impressionante o que se pode aprender sobre o outro num telefonema: se ele é acolhedor; se é hostil; se é simpático ou não; se é pomposo ou simples; se você se sente confortável na conversa, ou constrangido; se vai te atender logo ou “talvez, se abrir uma vaga, nos próximos meses”. Enfim, minha sugestão é: só vá à entrevista se você se sentir bem com ele ao telefone. De desconforto, já basta a tua vida, você não precisa pagar (caro) por ele!

  3. Perplexidade. Se o Dr. Fulano te disser alguma coisa que você não entenda, se falar de tal maneira complicada que você chegue a achar que é burro, pode desistir: ele não serve para você.

  4. Mudez. Se o Dr. Fulano ficar olhando mudo para você quando você quiser saber algo na entrevista, as chances são de que ele ficará mudo durante a terapia. Por que você há de pagar (caro) para alguém que não diz nada? É teu trabalho se entender? Pois então fale para o espelho. É muito mais barato.

  5. Contrato. Sinta-se confortável com um contrato claro de tempos de sessão e de custos. Pergunte sobre férias suas e do terapeuta, quem paga o quê. Pergunte sobre pontualidades (há poucas coisas mais constrangedoras do que encarar colegas numa sala de espera), porque você tem mais o que fazer na vida, e continua sendo uma falta de respeito – em qualquer especialidade médica – te fazer esperar tendo hora marcada. Woody Allen diz em um filme que não podia se suicidar porque seu analista cobraria as sessões que ele faltasse. Contratos precisam ser claros!

  6. Como eu saio da sessão? Não deixe ninguém te convencer que sair de rastos, aos prantos e arrasado de uma sessão significa que ela foi “funda e produtiva”. Só significa que o terapeuta pôs mais dor naquilo de que você já se acusava. Ele quer que você se arrependa. É mais barato procurar a igreja católica (nos confessionários).

  7. Senso de humor. Se você sentir falta dele no seu terapeuta, significa que ele gosta de drama, e o drama é parte integrante, agravante e fundamental dos seus sintomas. Vá embora! Parte da cura é não se levar tão a sério, não se achar (e a ninguém) tão importante.

Dentro de cem anos, lembre-se, estaremos todos mortos (provavelmente, esquecidos). E, faz parte do meu imaginário aparelho humildificador, amanhã este artigo será papel de embrulhar peixe…


Diversos: Encanto e delicadeza

 (Publicado em 11 de junho de 2012)

Contracapa do CD do violonista Willians Pereira

Música é o que de mais próximo conheci (entendi, percebi, senti) do conceito de místico, que, de resto, me escapa. Escrever sobre música é um ato estranho, lembra-me o que um amigo disse ao ler uma vasta explicação sobre um quadro: “Arte não precisa de bula”. Certamente a música que faz minha mente fluir solta, deixando-se levar ao sopro dos acordes, como aquela peninha da abertura do “Forrest Gump”, não é uma das marchas militares do John P. DeSouza. Mas “encanto e delicadeza” são componentes que reconheço como tradução dessa mística. Reencontrá-los em peças que já me haviam encantado, como no Chopin e no Puccini do disco, só que na fala mansa do violão de Willians, foi um alumbramento. Ele nos dá tempo de saborear timbres, escandir acordes com seu instrumento, como se fossemos co-autores, surpreender-nos com soluções harmônicas inesperadas. É. O disco produziu encanto com sua delicadeza. O que mais posso pedir da música? Sim, porque Willians deixou a música vir antes do instrumentista. O que mais posso pedir dele?


Artigos: Estamos perdendo a guerra!

 (Publicado em 11 de junho de 2012)

Artigo publicado N’O Globo

Odeio ter que brigar. Odeio sentir raiva. Não tenho vocação para qualquer espécie de militância política. Quem me conhece ou leu meus livros sabe que gosto do amor companheiro, da amizade, da beleza, de cultivar o espírito, enfim, de viver em paz. Mas há ocasiões em que me lembro de uma anedota que meu pai costumava contar. Dois grãos de milho conversam no chão de um galinheiro, e um deles comenta com o outro, ao ver a galinha engolir um terceiro, a sorte que tiveram porque não foi com eles, sem se darem conta de que serão os próximos. 

Pois foi esse pai, hoje com 99 anos, e minha mãe, de 90, que ficaram sob a mira de revólveres por duas horas dentro do quarto deles, reféns de cinco assaltantes que levaram o que ainda restava do último assalto (faz quatro meses) e mais o carro, que depois foi recuperado numa favela próxima. Dois assaltos em quatro meses, isso depois de viver na mesma casa  50 anos de tranqüilidade.

É então este indivíduo-milho que aqui escreve cheio de raiva e angústia por ter visto seus pais-milhos serem engolidos por uma das várias galinhas gulosas que vêm infestando nossa cidade. Cidade? País, queria dizer. Talvez um leitor-milho possa pensar um pensamento-milho típico: “Antes eles do que eu! E mesmo ele só está reclamando porque foi atingido de perto”. Quem sabe ele possa ter o mesmo desplante do Sr. Marcelo Itagiba, subsecretário de segurança(?), que declarou ser esse assalto “um episódio esporádico”. Ao ouvir isso, fui por minha vez “assaltado” por duas dúvidas: o Sr. Itagiba usa o mesmo Aurélio que eu? E mora ele no mesmo Rio de Janeiro que eu?

A raiva traz pensamentos sanguinários, mas para minha surpresa descobri que eles não se dirigiam aos pés-de-chinelo que renderam meus pais, e sim às autoridades que, em nome do Estado, deveriam estar zelando por nossa segurança. Aqui cabe um dado histórico que aprendi no livro “Armas, germes e aço”, de Andrew Diamond. Na savana africana, na época em que éramos caçadores-coletores, há milhares de anos, se um homem encontrava um desconhecido, seguia-se uma luta de morte imediatamente: o desconhecido era sempre o inimigo. Depois da domesticação de plantas e animais, a agropecuária, houve comida excedente, não foi mais necessário se deslocar sem parar, as famílias aumentaram e se estabeleceram em cidades. Ora, para que não houvesse a necessidade constante de uns ficarem matando os outros, surgiram leis de convivência, e um poder central que zelava pelo cumprimento dessas leis. Diamond chamou essa organização de governo de “cleptocracia” (o poder-ladrão, em grego), pois os governantes roubavam do povo, sob a forma de impostos, mas prometiam em troca manter as leis de convivência. A violência passava a ser monopólio do Estado, ninguém podia mais tomar as leis nas próprias mãos.

Os habitantes das cidades acharam isso muito confortável, pois que não tinham que passar o dia se defendendo e matando cada vez que um desconhecido passava por perto. Na verdade podiam se dedicar a coisas mais interessantes, e foi assim que surgiram as invenções para o bem-estar, e não para a guerra. Foi assim que surgiu a filosofia. Não se importavam muito com o roubo dos governantes, chamados impostos (ainda que esteja por nascer aquele que goste de impostos) desde que eles cumprissem seu principal papel: zelar pela lei e pela ordem. Se os cidadãos começassem a achar que os governantes os estavam roubando demais e protegendo-os de menos, a revolta era certa… e sanguinária.

Você já está sentindo em que direção meu argumento caminha, não é? Mas no meu coração não existe só raiva sanguinária. Ela conversa, e muito, com meus sentimentos democráticos. Tenho um apreço imenso pela democracia, até hoje a menos pior das cleptocracias, pois que contempla e defende os direitos do indivíduo, e melhor: não o considera inferior aos governantes! Seu poder deve emanar do povo, e em seu nome ser exercido. Qualquer tirania (hoje chamada ditadura) me enoja, seja ela exercida em nome de quem for, mesmo dos despossuídos, quando se chama ditadura do proletariado, pois tal concentração de poder sempre corrompe, sempre acaba se tornando um pretexto para a camarilha dirigente se locupletar, levando a cleptocracia ao paroxismo. A democracia, pelo contrário, é, mais que o direito, o dever de desconfiar dos governantes. Não é à toa que ela se exerce em três poderes distintos, um vigiando a aspiração tirânica do outro.

É, portanto, com meu pensamento democrático, que constato uma perversão grave e crescente no nosso Estado, e em nosso país: uma fração da população está tirando dos supostos zeladores da lei o monopólio da violência, quer seja subsidiada pelo dinheiro do tráfico, quer seja pela ganância de poder travestida em luta social pela terra. Formam governos paralelos onde vigem suas próprias regras, estranhas às instituídas pela democracia. Como resultado, nós, cidadãos que gostaríamos de viver em paz, produzindo riquezas ou fazendo filosofia, vivemos em medo, não sentimos mais a proteção dos cleptocratas (que aliás andam com um apetite tributário que vou te contar…). A isto se dá o nome de guerra civil. E nós a estamos perdendo! Seja por leniência, complacência, cumplicidade, incapacidade, despreparo ou corrupção, nossos governantes estão perdendo a guerra. Mas eles não morrerão nela. Guerra não mata generais, mata a infantaria (que significa “os infantes”, as crianças) que fica entre o mar e o rochedo, ou seja, nós, cidadãos-milhos, pequenos, impotentes e desarmados… tal como meus pais.

Um antigo primeiro-ministro inglês dizia que o homem honesto precisa ser tão ousado quanto o marginal para defender sua vida digna. Que ousadia democrática está ao nosso alcance, além do voto, para pressionar nossos governantes a se empenhar de verdade a ganhar essa guerra? E-mails em massa para a imprensa ainda livre, e para acordar o governo? Panelaços, como aquele glorioso que apoiou as “diretas, já!”? Passeatas (mas não, nunca, passeatas “pela paz”, que devem causar acessos de riso nos traficantes)? Não sei, já disse, não tenho vocação para militante. Sei que o governo democrático instituído não pode perder essa guerra. Para que o grito de vitória tão simbólico, e nada esporádico, viu, Sr. Itagiba, de “Perdeu, perdeu!” proferido pelos assaltantes não se torne o lamento de toda uma civilização: “Perdemos… perdemos.”


Artigos: HOMOFOBIA: Por Quê?

 (Publicado em 11 de junho de 2012)

Artigo para a Revista G Magazine

Homofobia [De hom(o)- + -fobia.]:

S. f.  Aversão a homossexuais ou ao homossexualismo.

É um fenômeno universal e multicultural demais para ser desprezado como “preconceito que o tempo muda”. Não. Merece um olhar cuidadoso, e, já vou avisando, você vai ler aqui reflexões sobre o tema, e não a resposta, muito menos a solução dessa coisa misteriosa.

Você pensa que na Grécia clássica não havia homofobia? Pois a única forma de homoerotismo bem acolhida na época era o amor apaixonado e erótico de um homem mais velho por um rapazinho pré-adolescente, quando ele se tornava seu protetor e conselheiro, um segundo pai. Fosse um senhor de escravo adulto querer fazer sexo oral naquele que era sua propriedade e isso caísse no conhecimento do povo, ele seria visto com aversão. Tribos indígenas americanas acolhiam bem o homem-mulher, que como elas se vestia e comportava, desejando um homem viril como parceiro. Um fenômeno que Hugo Denizart detectou como atual em seu livro “Engenharia Erótica”: nas classes pobres a bicha-louca exuberante foi desaparecendo, dando lugar ao homem-mulher atual (o travesti), que em vez de vaias recebe cantadas na rua, dinheiro na prostituição, e é perfeitamente aceita como parceira fixa nas prisões (chamada “mulher de cadeia”, como Dráuzio Varella conta em “Estação Carandiru”).

O resumo disso é que o homossexual masculino (que o capítulo lésbicas é outra história bem diferente) tem sido aceito ao longo dos tempos “desde que esteja bem localizado dentro de um nicho social, uma aparência e uma visibilidade que não incomode os héteros”. Saiu dali, ele desencadeia curto-circuitos cerebrais (aversões) que se dão no coletivo, sim, mas também no mais íntimo do pensamento do indivíduo hétero, e disso sou testemunha de consultório. Exemplo: André Gonçalves fez um personagem de novela que mantinha um romance com um amigo, sem que o personagem tivesse qualquer estereotipo, quer de bicha, quer de pitboy. Era um cara “normalzinho”, que podia ser amigão de um hétero. Resultado: o ator foi perseguido e maltratado na rua. Seguem-se alguns componentes reconhecíveis na construção da homofobia:

  1. Desprezo pelas mulheres:

As primeiras (e mais primitivas) manifestações de homofobia se dão na infância, e não têm nada a ver com erotismo. Pelo fato de que uma boa percentagem de futuros homossexuais nasce com jeito de mulher, desde os três-quatro anos preferirão brincar de boneca, de casinha, não serão musculares e desdenharão dos esportes, dos brinquedos de guerra, do futebol etc. , desse conjunto que não existe por imposição cultural, e sim por conformação biológica. É raro o homo que teve tiazinhas cercando-o de babados e dando-lhe bonecas na infância. Muito mais comum foi ter um pai furioso, impondo-lhe lutas marciais, chuteiras e bolas de futebol. Pois esses não serão discriminados como viadinhos. Os colegas de escola vão chamá-los de mulherzinha; mariquinha. Vão identificá-los como um ser desprezível: a menina. Nessa época as meninas nem ao menos são objeto de desejo. Mais tarde, quando o forem, elas serão fáceis (e desprezadas por isso) ou difíceis (e causadoras de rancor por isso). Como pode entrar na cabeça de um menino hétero que seu semelhante queira ser, ou parecer, um traste tal?

2.  Aversão aos estrangeiros:

Não nos damos conta que conviver com estranhos sem partir para matá-los é um fato muito novo na espécie humana. Surgiu há cerca de 12.000 anos com a criação da cidade-estado. Antes disso, o ancestral caçador-coletor  partia para a luta mortal se o outro fosse reconhecido como estranho a sua tribo. Vamos tomar nossos primitivos mais próximos (as crianças). Quando saem de sua tribo (a casa) e entram num ambiente hostil (o colégio) elas se defendem passando um contínuo radar que pesca qualquer desvio do homogêneo, do familiar: esses são os inimigos. É por isso que não existe ninguém tão intolerante com as diferenças que as crianças. Os apelidos são característicos: “Gaguinho”; “Quatro-olho”; “Deixa-que-eu-chuto”;  “Ferrugem”; “Pelé”; “Tição”, e por aí vai… Os mariquinhas não haveriam de ficar de fora.

3. Medo de contágio:

Existe uma mitologia gay de que no fundo todos os héteros são enrustidos. Ela é errada, mas não deixa de ter algum parentesco com a verdade. Quando Kinsey publicou seu famoso relatório dos anos 40 mostrando que a experiência homossexual masculina (ainda que única) era muito mais comum do que se supunha, principalmente na infância e na adolescência, ele causou uma comoção equivalente a revelar o segredo mais íntimo de alguém. Sua classificação dos homens quanto à capacidade de desejo homossexual continua comprovável e útil. Ele os dividiu nos tipos de 1 a 6. O tipo 1 é o hétero em quem nem passa pela cabeça o mais vago interesse erótico por outro homem. Não quer dizer que o tipo 1 não possa ter prazer com outro homem. Muitos deles tiveram iniciação sexual com amiguinhos (por falta de outra oportunidade) e não ficaram traumatizados, não precisaram reprimir tal lembrança, são capazes de achar graça nisso. Por isso mesmo, tendem a ser os mais indiferentes/tolerantes à questão homossexual: ela não chega a ser um assunto.

O problema, quanto à homofobia, está nos tipos 2 e 3, que têm crescente capacidade de desejo homo, mesmo sendo héteros (definido por tesão visual maior por mulheres). Esses, se têm lembranças infantis homo, delas se envergonham, precisaram reprimi-las. São os tais que necessitam “afirmar sua masculinidade”, pois que, para eles mesmos, ela pode ser posta em dúvida. Cá e lá se assustam (e se afastam) com o amor que desenvolvem por seus amigos, ou com a atração que determinados homens lhes despertam. Esses sim, têm medo de “virar viado”. É um medo sem fundamento. Sua preferência visual permanecerá a mesma pela vida afora. Poderiam, teoricamente, fazer um acordo com eles mesmos, “é, eu de vez em quando vou ter tesão em homem, mas isso não me arranca pedaço”. Sinto muito, isso é teórico. Eles investiram tanto na repressão, demonizando seus poucos desejos homoeróticos, reforçando uma postura defensiva de supermachos, que passaram a ter medo, fobia, do contágio. Agem como os antigos agiam com os leprosos, apedrejando-os por pavor, mas o contágio que temem é o do desejo.

O tipo 6 é o homo em quem nem passa pela cabeça o mais vago interesse hétero. Esse é o que “sai do armário” mais facilmente, não é tanto uma questão de coragem e sim de total falta de opção. Os tipos 5 e 4 são os que têm crescente capacidade de desejo hétero, mas são e serão sempre homossexuais (pela preferência visual). Esses muitas vezes, já que podem, se casam, constituem família, e infelizmente podem engrossar o problema da homofobia por não aceitarem sua condição, tentarem reprimi-la e ficarem assim parecidos com os tipos 2 e 3 acima. É curioso, mas quando os tipos 5 e 4 se assumem gays, podem exercer uma patrulha “heterofóbica” sobre seus pares, criticando-os por transarem com mulheres, desprezando-as, chamando-as de “rachas”, pois também andaram reprimindo seus desejos héteros.

Faz parte do miolo (de 2 a 5) o michê que confessou para a polícia: “A bicha não quis me pagar porque disse que eu também gostei, aí eu matei ele, que nenhuma bicha vai me chamar de viado, eu faço isso por dinheiro”. Infelizmente, é um caso bem comum.

 4. O inimigo que nos une:

Quando dentro de grupos, turmas ou mesmo povos, surge uma liderança tirânica que quer impor suas idéias ou vontades calando qualquer discussão, é comum que o déspota se valha de um inimigo, uma espécie de bode expiatório para seus males, contra quem todos devem estar unidos, e a favor de quem ninguém pode ser, sob pena de ser suspeito dos mesmos “crimes” do bode. Tem sido assim: desde o colégio e suas tribos; skinheads; pitboys; os nazistas com os judeus (e os homossexuais, de quebra); o Bush com os terroristas; Stalin com todo mundo que não se submetia a ele; a esquerda brasileira com a ditadura; a ditadura com os comunistas. Por aí vai.

Talvez o fato histórico mais grave nessa série: Moisés, ao impor Iavé como deus único, perseguiu os devotos de sub-deuses cujos cultos tinham orgias homoeróticas, inaugurando a homofobia da cultura judáico-cristã, que vemos até hoje nos pronunciamentos do papa católico.

Essa forma de homofobia (eleger o homossexual como o inimigo que une) é a mais grave de todas, mas é a que traz a maior lição: a prática homofóbica está ligada à tirania, ao excesso de poder (de grupos ou estados fortes), e seu melhor remédio está no aprendizado da democracia e no aprimoramento de suas leis anti-discriminação, no costume de parlamentar e conviver com as idéias (ou jeitos de ser) diferentes.

Francisco Daudt da Veiga é psicanalista carioca, e autor, dentre outros livros, de “O amor companheiro – a amizade dentro e fora do casamento” (Sextante).


Artigos: Acidente Aéreo

 (Publicado em 11 de maio de 2012)

Sobre o “acidente” em Congonhas, gostaria imensamente de ter minha dor amenizada por uma manchete de jornal que estampasse, em letras garrafais, “GOVERNO ASSASSINA MAIS DE 200 PESSOAS”. O assassino não é apenas aquele que enfia a faca, mas também o que, sabendo que o crime vai ocorrer, nada faz para impedi-lo. O que ocorreu não pode ser chamado de acidente, vamos dar o nome certo: crime. Quanto mais meios de impedir o crime tem o cúmplice, mais assassino é. Remeto-me ao livro de Garcia Marques, “Crônica de uma morte anunciada”. Todos sabiam e ninguém fez nada. E não me refiro a você, leitor, que se consome em sua impotência diante deste e de tantos descalabros que vimos assistindo semanalmente, ao ponto do fastio. Ao ponto de a ministra se permitir ao deboche extremo do “relaxa e goza”? Será esta sua recomendação aos parentes das novas vítimas? Refiro-me às autoridades (in)competentes, inapetentes de trabalho gestor, ávidas pelos brilharecos do poder. Refiro-me ao presidente Lula, que, há quantos meses, ó Senhor, disse em uma de suas basófias inconseqüentes que queria “data e hora para o apagão aéreo acabar”, como se ele não dispusesse da devida autoridade para tal, como se não tivesse nada a ver com isso, como se, mais uma vez, não soubesse de nada.

Sinto pena de não ter estado na abertura do Pan, de não ter engrossado aquelas bem merecidas vaias. Talvez o presidente não se importe tanto, afinal, quem viaja de avião não é beneficiário de sua bolsa-esmola, não faz parte do seu particular curral eleitoral cevado com o dinheiro que ele arranca de nós, crescentemente. Devem fazer parte das tais “elites”, que é como ele escarnece da classe média que faz (apesar do governo) o Brasil crescer. Qual de nós escapou do medo de voar desde o desastre da Gol HÁ NOVE MESES? Qual de nós escapou da sensação de que tudo era uma questão de tempo para que nova tragédia se repetisse? Qual de nós assistiu confortável o jogo de empurra, “a culpa é dos controladores”; “não, é do ministério da defesa”; “a mídia também exagera tudo”; “é do lobby das empreiteiras que só querem fazer obras inúteis e superfaturadas nos aeroportos”.

Qual de nós deixou de ficar perplexo com a falta de ação efetiva para que o problema se resolvesse? Perdão, acho que a tal falta de ação geral de governo é de tamanho tão extenso e dura tanto tempo que muitos de nós a ela nos acostumamos.

Sou psicanalista, e, por dever de ofício, devo escutar cuidadoso qualquer coisa que meus clientes queiram dizer. Pois nunca pensei que fosse pronunciar no consultório uma frase que venho repetindo há algum tempo, depois de que mensalões, valeriodutos, Land-Rovers, dólares na cueca, dossiês fajutos, renans calheiros, criminalidade, insegurança pública, impunidade, pizzas e tudo isso que o leitor já sabe se despejam fétida, diária e gosmentamente sobre nossas cabeças. A tal frase: “Não quero falar desse assunto”. Os pacientes me respondem com alívio, “Ufa, eu também não!”

É o desabafo da impotência partilhada. É uma atitude semelhante à dos moradores da Bósnia, cuja única forma de resistência que encontravam era tocar suas vidas. “Welcome to Congo”? Talvez seja um insulto ao Congo.

Pois agora quero falar deste assunto. Deram-me a oportunidade de ser menos impotente, nessas folhas que o leitor ora contempla. Sei que falo por uma enorme quantidade de brasileiros trabalhadores que sustentam essa enorme máquina de (des)governo, muitos mais que os 90 mil do Maracanã, para expressar o nojo e a raiva que esse acúmulo de barbaridades nos provoca.

O assassinato em massa terá sido a gota d’água? O governo sairá da inação, da omissão criminosa? Alguém será preso, punido por todas essas coisas? Infelizmente, duvido. Ou quem sabe me prendam por delito de opinião? Por ter deixado o coração explodir? Irei para a cadeia alegremente, lembrando Graciliano Ramos, que, visitado no cárcere por um amigo, travou com ele o seguinte diálogo:

— Puxa, Graça, você, aí dentro, de novo?

— E você, o que está fazendo aí fora? Nestes tempos que correm, lugar de homem honesto é na cadeia.

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Material publicado na Folha de São Paulo.


Entrevistas: Revista Lola (março 2012)

 (Publicado em 10 de abril de 2012)

10 abr 2012

A felicidade virou uma obsessão

O psicanalista Francisco Daudt da Veiga afirma que estamos confundindo o sagrado direito de querer ser feliz com uma busca frenética pelo prazer imediato. E defende a amizade como a única coisa capaz de sustentar um casamento por décadas

Por Carol Vaisman, Fotos Marcelo Correa

É óbvio, é óbvio utulante: todos os homens, sem exceção, procuram ser felizes. Nada é mais justo, nada é mais certo – mas talvez nada seja também tão acidentado quando essa busca permanente. Mas a peleja é ainda mais dramática nestes tempos de vícios em grandes emoções. “Vivemos uma época de busca frenética pelo prazer imediato, que está sendo confundido com felicidade”, afirma o médico e psicanalista carioca Francisco Daudt da Veiga. Com 35 anos de experiência em consultório, ele passa os dias imersos nos sintomas dessa ansiedade geral que impacta especialmente as relações amorosas e a vida em família. Na entrevista que se segue, o autor de livros como O Amor Companheiro (Sextante) e Onde Foi Que Eu Acertei (Casa da Palavra) fala desse mar batido que cerca os casais, a busca pelas terapias de casal, a predisposição à separação (para encontrar a tal felicidade) e a tendência de idealizar o outro. E defende que a amizade é a única coisa capaz de manter um relacionamento feliz por décadas. “Ela é o verdadeiro porto seguro da nossa emoção”, diz, contrapondo-a à paixão – uma espécie de “loucura temporária”.

LOLA: Por que as pessoas estão precisando tanto de ajuda para lidar com o casamento?

FRANCISCO DAUDT DA VEIGA: As terapias de casal são, na maior parte, UTIs para casos terminais, quando o melhor que se pode fazer é ajudar para que a separação não seja tão doente. Às vezes, elas ajudam efetivamente aqueles que têm dificuldade de comunicação, o terapeuta serve de intérprete e diplomata entre as partes. Ao mesmo tempo, pode-se pensar que a maior busca de ajuda tem a ver com sua contrapartida: a facilidade com a ideia de separação faria aumentar a busca de alternativas. A obsessão pela felicidade, fenômeno social recente, atua nas duas pontas – separação e terapia.

O medo de sofrer virou uma epidemia?

O que existe é essa obsessão pela felicidade, que dá um empurrão em uma das características da natureza humana: a húbris (palavra de origem grega que significa o excesso, a intensidade, o exagero, a desmesura, a euforia), que sempre nos levou a rir, chorar, sofrer, a nos drogar como nenhuma outra espécie o faz. Vivemos uma época de busca frenética pelo prazer imediato, confundido com felicidade.

É como se diz por aí: gastamos um dinheiro que não temos, consumindo coisas de que não precisamos, para impressionar pessoas que não conhecemos.

Não há relação humana imune ao acidental. Mas o amor companheiro dá mais segurança.

As pessoas hoje acham que tudo precisa ser discutido, precisa ser levado ao divã?

Há quem pense isso. Já me vi envolvido numa discussão em que a pessoa defendia análise para a humanidade inteira, e eu na posição oposta, mostrando o perigo de autoritarismo e homogeneização cultural que tal ideia contém. Quando recebo um paciente, recebo um passaporte de limites precisos: só é da minha conta o que for sintoma. Se o paciente aprecia exercicios fisicos (sem vício nem obsessão), apesar de eu ter horror a eles, decididamente não é da minha conta.

Os relacionamentos amorosos ainda são muito idealizados?

Sim, principalmente quando há paixão. A paixão é um estado de loucura transitória em que a pessoa não se relaciona com a outra, mas com a idealização que faz da outra. Por isso, sugiro sempre que os casais só tenham filhos – essa sociedade eterna – quando a paixão passar, e possam avaliar o amor que têm (ou não) em bases mais realistas.

A amizade é sempre a receita para um casamento feliz?

Se amizade quer dizer querer o bem do outro, achá-lo interessante, ter afinidades, curiosidade sobre ele, e haver reciprocidade desses sentimentos, a probabilidade de aumentar a vontade de estar juntos é grande – e isso proporciona um casamento feliz. Para os gregos clássicos, a amizade é uma das três formas de amor (filia: amizade; ágape: camaradagem; eros: atração sexual). Ela combina intensidade e capacidade de crescimento, pode incentivar Eros, fruto do carinho e da intimidade, mas não no registro da paixão, onde o bicho pega.

Você diz que, se o amor companheiro acontece por acidente, ele corre o risco de ser acidentado. Por quê?

Afora anúncios em sites de relacionamento (“procuro amigo que se interesse por música clássica e coleção de selos” etc.), que são de baixa eficácia, a descoberta de afinidades e de atração por outras pessoas é mesmo acidental. Quanto ao fato de o amor companheiro ser acidentado, não há relação humana imune a esse risco. E ele é das mais seguras.

Mas excesso de companheirismo não pode minar a vida de um casal?

O companheirismo é uma bênção na vida de um casal. O apoio mútuo, a cumplicidade, o achar graga um no outro, ter o que conversar são coisas que só enriquecem e fazem aumentar o amor. Talvez o que você chame de excesso de companheirismo seja a tendência de certos casais perderem suas individualidades e querer partilhar tudo o que vivem, “naquela base do só vou se você for”, inclusive a senha do computador. De largarem mão do direito de ter vida própria e confundirem amor com o “de hoje em diante sereis um só corpo e uma só alma”, que até hoje alguns padres dizem. Isso, sim, é um desastre que leva ao ódio reprimido, ao sadomasoquismo e/ou à separação.

O número de pessoas que moram sozinhas está cada vez maior por aí. Em Paris, mais da metade dos lares é formada por pessoas solteiras. Em Estocolmo, o indice é de 60%. O afeto é bem resolvido para essas pessoas?

Isso envolve o cultivo do indivíduo, percebendo-se com ideias próprias, gostos próprios e vontade de respeitar suas idiossincrasias. Comemos o risco de individualismo narcisista? Sem dúvida. Na outra extremidade está o coletivismo soviético, onde o conceito de indivíduo era algo a ser exterminado em favor da comunidade e do Partido, a ponto de dizerem que “o comunismo venceu a morte”, pois a pessoa não passa de uma célula do grande corpo da sociedade ideal, que continuará vivendo, mesmo que a célula se perca”. Deu no que deu. Mas também não há muito sentido em as pessoas morarem juntas se não têm nem querem ter filhos – gerenciar uma família é um ótimo motivo para viver junto.

Como a ansiedade dos pais interfere na criação dos filhos?

A ânsia de ver os fiIhos felizes pode levar ao wagging the dog (“sacudir o cachorro pelo rabo”: um cão sacode o rabo quando está alegre, mas o contrário não funciona: se você sacudir o rabo do cachorro, ele não fica alegre). “Ah, meu filho vai ser muito preparado: botei ele no inglês, no judô, na ginástica olímpica, na natação, no piano, na aula de artesanato e no futebol.” É, encheu a agenda do filho a ponto de ele não ter tempo para brincar, nem sozinho. Se você quer seu filho saudável, contemple-o, aprenda a lê-lo, a compreender a pessoa que ele é, suas necessidades, que devem ser acolhidas, e suas capacidades e ambições, que devem ser apoiadas.

Quais são os perigos de se antecipar as vontades dos filhos?

Eu tive uma infância mais pobre, ficava invejando o brinquedo dos outros. Meus filhos não vão passar por isso”, e com essa ideia saem os pais comprando para os fiIhos aquilo que eles, pais, gostariam de ter tido, e contribuindo para um desastre, que é uma geração apática, sem vontades, sem projetos, sem ambições e mimada. É um ponto em que, nos Estados Unidos, o termo spoiled (estragado, mimado) está sendo substituído por entitled (que se sente no direito de… tudo, com arrogância). São jovens com a intuição de que as coisas caem do céu, sem esforço nem espera.

E qual é o papel da paternidade hoje?

Os homens colhem hoje um benefício precioso, que é fruto do feminismo: a paternidade participativa.

Quando eu era menino, nos anos 50, meu pai era daqueles que chegavam do trabalho para jantar e corrigiam nossos modos à mesa. Pouco mais que isso. Era um provedor ótimo, mas que não deu moleza em matéria de dinheiro – o que foi um grande estímulo para a busca de nossa independência financeira. Eu, por minha vez, já tive a oportunidade de me envolver mais ativamente na criação de meus filhos, participar de suas conquistas e consolar seus dissabores, sem nunca perder a autoridade (a principal ferramenta na criação dos fllhos), mantendo a austeridade (uma atenuação da mão fechada do meu pai), cultivando o espírito, valores éticos, senso de humor, leveza no trato de qualquer assunto, mas nunca a leviandade. Ou seja, um pai de hoje pode ser pai de um jeito muito mais ativo.

E o papel da maternidade foi afetado?

Por certo. Mães que trabalham fora aprendem que o cuidado dos filhos pode ser partilhado com várias pessoas que gostam deles. Marido, creche, parentes, babás (demita aquelas que querem desenvolver dependência nas crianças, fazendo tudo por e com elas). Já é mais raro encontrar crianças que “estranham” se não estão no colo da mãe ou agarradas à sua saia. Meu principal medo é que essa mãe se sinta culpada por não dar aos fiIhos dedicação integral e queira compensá-los pelo excesso. A culpa é o principal corrompedor da tão necessária autoridade.

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