quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Consulta: Justiça Com As Próprias Mãos?

 (Publicado em 31 de janeiro de 2012)


Por conta da violência geral, da mulher que atirou no homem que a assaltava, da outra que esfaqueou o deputado, das milícias nas favelas, tenho discutido muito com meu filho. Ele diz que o linchamento, a justiça com as próprias mãos, os matadores de bandidos é que estão certos, e se eu não fico feliz quando um desses casos aparece nas notícias, e se é possível confiar na polícia. Sou contra as posições dele, mas sinto vergonha de às vezes achar que ele está certo. Como vejo que o Sr. responde cartas sobre outros assuntos diferentes dos sentimentais, eu pergunto: quem está certo, afinal?

Eugênia

Prezada Eugênia,

Quando a agricultura (há 10.000 anos) permitiu que pessoas desconhecidas vivessem em um lugar só, em vez de ficar dispersas em pequenos grupos em busca de comida, houve necessidade de governos. A principal função deles era impor, com violência, leis de convivência pacífica. Até então, se uma pessoa encontrava outra desconhecida, partia para matá-la, pois sabia que ela ia fazer o mesmo. Jarred Diamond chamou esses governos de cleptocracias (governo de ladrões). Eles roubavam o povo através dos impostos, em troco de serem os únicos donos da violência, que seria usada para impor as leis de segurança pública. Se prestavam mesmo esses serviços, o povo os tolerava como pouco ladrões, e andavam nas ruas despreocupados, e abriam mão de usar violência. Quando os governos roubavam muito e não forneciam segurança, a violência voltava para as mãos dos indivíduos.

Nada mudou. Até hoje esse contrato do povo com os governos continua valendo. E a principal função dos governos continua sendo a segurança pública. Por aí, e pelo estado a que chegamos, posso responder que, tanto você quanto seu filho, têm suas doses de razão.

Consulta: Filho Gay

 (Publicado em 31 de janeiro de 2012)


Meu filho tem 25 anos e veio nos comunicar que é gay. Nós ficamos arrasados e perplexos. Ele não é nem nunca foi efeminado, quando criança brincou de lutas e guerras, jogou bola, teve namoradas e tudo, enfim, foi um menino normal, e agora isso… Como se explica?

Maria Alzira

Prezada Maria Alzira,

Seu filho é normal, só que é uma minoria genética. Como os canhotos (10% da população). No entanto ele é uma minoria dentro da minoria: o gay que tem cabeça de homem. A preferência sexual nasce com a pessoa, e a formatação do cérebro também. Homens e mulheres têm cérebros diferentes, a seleção natural assim determinou: homens silenciosos na caça; mulheres falantes tecendo alianças sociais. Apesar de a maioria dos homens nascerem com cabeça de homem e mulheres com de mulher, as misturas são muitas, e não determinam preferências sexuais. Muitas mulheres com cabeça de homem não são lésbicas. Muitos homens com cabeça de mulher não são gays. Os gays com cabeça de homem não são poucos, e sofrem muito menos discriminação que os outros, pois são mais invisíveis. Os que nascem com cabeça de mulher costumam penar já dentro de casa, maltratados pelos pais e acolhidos pelas mães, daí vem a idéia de que é a ligação forte entre mãe e filho que os torna gays. São empurrados para guetos (turmas, lugares e profissões), onde reforçam, por imitação, sua atitude feminina. Diria que, dentro dos dramas que um homossexual é obrigado a viver, seu filho deu sorte.

Consulta: Religião

 (Postado em 31 de janeiro de 2012)


Venho acompanhando suas respostas e o Sr. me parece não dar a menor importância à fé. Em seu livro “O Amor

Companheiro” há mesmo um capítulo chamado “As crenças de um não crente”. Temos nos esforçado por criar nossos filhos dentro da religião, mesmo que eles, para nossa tristeza, parecem desprezá-la. Dostoievsky afirmou que “se não existe Deus, então tudo é permitido”. Nestes tempos de falta de ética o Sr. não acha que a religião é indispensável?

Dario e Susana Almeida

Prezados Dario e Suzana,

A fé, explicou-me um querido amigo religioso, “é a entrega amorosa ao que não pode ser explicado pela razão”. Ainda por ele: “ela é uma mistura de dom e de vontade”. Há pessoas afortunadas que têm os dois, essas sentirão que há alguém por elas, que as protejam, e encontrarão enorme consolo e apoio em suas vidas, diminuindo seus estresses, tocando suas vidas do jeito que podem, entregando a Deus o que não podem. Enfim, é uma bem-aventurança.

Há, porém, aqueles que não foram abençoados nem com o dom, nem com a vontade. Estou entre eles. Sou um apaixonado pela razão, e esta me faz ético e solidário com meus semelhantes, mesmo fazendo face ao desamparo e à solidão características de nossa espécie. Seus filhos podem não ter apreço à religião (que é a fé regulada por alguma instituição), mas podem bem ter fé, se por ela foram abençoados, numa relação sem intermediários com seu Criador. Foi como começou o protestantismo. Não significa que serão pessoas sem altos valores. Tenham fé neles.



Consulta: Todos Devem Se Analisar?

 (Publicado em 31 de janeiro de 2012)


Dr. Daudt, sou psicanalista como o Sr., e sua última resposta me deixou intrigada, pois sempre achei que todas as pessoas deveriam fazer análise, enquanto o Sr. parece querer restringi-la a “ambições emocionais”. Poderia ser mais claro?

Aparecida

Prezada Aparecida,

Já briguei muito por conta desse tema. Mais nos anos 70, quando a psicanálise parecia arrebanhar fanáticos que “interpretavam” qualquer coisa dita em ambiente social, e que defendiam essa sua tese. A psicanálise é: a) uma teoria sobre a mente e b) uma psicoterapia. A primeira é melhor que a segunda. Ela é fruto das deduções geniais de um cientista (Freud), mas só pode ser considerada “um conhecimento que aspira ser ciência”, como um dia a astronomia foi. A ciência é, por definição, humilde. Sabe que suas teses são vulneráveis a novas descobertas. É uma permanente busca da verdade, sem dogmas, sem fé (coisas de religião). Um psicanalista não é, portanto, um cientista. Mas pode ter atitude científica. Fico feliz ao ver a neurociência confirmar várias intuições de Freud, mas me rebelava contra os colegas (e analisandos) que queriam dar à psicanálise essa importância de “saber acima dos outros”, autoritários “iluminados”, regulando a vida das pessoas, enunciando dogmas, pois a estariam transformando numa religião. Olhando os leigos como os jesuítas olhavam os índios.

Quanto às ambições emocionais, falo daqueles que sofrem com seus conflitos internos e querem se livrar dos aluguéis mentais que eles produzem, para poder viver e amar de maneira sintonizada com seus desejos mais autênticos. Enquanto a teoria da mente é um deleite para as ambições intelectuais, a psicoterapia pode ajudar, e muito, nessas ambições emocionais. O tema é enorme. Meu espaço, não. Espero que esta síntese possa respondê-la.

Consulta: Fetichismo

 (Publicado em 31 de janeiro de 2012)


Acho que meu marido é fetichista, pois só consegue transar se me vê nua e de salto alto, que não posso tirar nem durante… Isso é uma doença? É grave? Não me incomodo com a coisa, mas fico me perguntando.

Gilda

Prezada Gilda,

Há muito sofrimento desnecessário por conta da obsessão pelo ideal, pelo perfeito, no caso, o encontro permanente de almas gêmeas no sexo, de preferência com orgasmos simultâneos. A vida não é assim, e o ótimo é inimigo do bom, o que nos impede de desfrutar do que é simplesmente bom. “Fetiche” vem do lusitano “feitiço”, “artifício”. Um artifício para simplificar a pessoa com quem se transa, reduzi-la a um objeto, tirar o medo da complexidade humana. Parece feio, não é? Mas todos nós somos um pouco fetichistas, e o objeto de nosso desejo nunca é a “totalidade da pessoa amada”. Ora é um jeito de falar, ora a visão de nádegas na posição “cachorrinho”, ora um perfume. A lista não tem fim, e fica mudando a cada momento. Pense em você mesma e me diga se eu não estou certo. Se vocês se entendem e se divertem, o que fazem entre quatro paredes é da exclusiva conta dos dois. Não deixe que a psicanálise invada a cama de vocês, e, se você também tem suas fantasias que precisem da participação dele, não se iniba em pedir. A psicanálise existe para atender ambições emocionais, não para regular a vida das pessoas.

Consulta: Viagra

 (Publicado em 31 de janeiro de 2012)


Oi. tenho 24 anos e meu namorado tem disfunção erétil. Para mantermos uma boa relação sexual, ele necessita de medicamentos. Contudo, quando ingere o remédio, acabo ficando quase obrigada a manter a relação, não só para não magoá-lo, mas também porque sei o quanto são caros os remédios e o esforço que ele faz para adquiri-los. O que devo fazer?

Caroline

 Prezada Caroline,

Quando a gente desenvolve um raciocínio lógico, deve-se sempre perguntar se o começo, a premissa, está correta. Se ela não estiver, não adianta o raciocínio ser bom, a resposta estará errada. “Meu namorado tem disfunção erétil”. Será esta uma premissa correta? O que tenho visto no consultório é que os rapazes estão pressionados para ter um desempenho sexual formidável. A pressão causa-lhes medo. Ora, não há nada como o medo para impedir a ereção, não importa o desejo envolvido. Para contornar esse medo, é comum que rapazes perfeitamente normais se valham dos Viagra da vida. O problema então não estará na disfunção erétil, mas no medo. Você não sabe, mas é enorme o número de homens que tem medo de mulher, do julgamento que elas vão fazer de sua virilidade, e quanto mais valorizadas elas são por eles, mais medo eles têm. Minhas sugestões: pergunte para ele se a “disfunção erétil” se apresenta quando ele se masturba (não se incomode em perguntar, todos os homens se masturbam). Não? Pois então ele não tem disfunção erétil nenhuma, só tem medo. Outra: peça a ele para não usar mais remédio, pois você não estará esperando penetração, e sim diversão. Diga mais, que o doutor proibiu penetração durante um mês, pode-se fazer de tudo, todas as boas brincadeiras que a atividade sexual contém, menos penetração. Todos os pacientes a quem fiz esta imposição acabaram chegando para mim com um sorriso maroto, dizendo que tinham me desobedecido… e foram felizes por… um bom tempo.

Consulta: Pai Com Alzheimer

 (Publicado em 31 de janeiro de 2012)


Meu pai tem Alzheimer e já está há mais de 6 anos vegetando. Mas a mulher mantém uma equipe de mais de dez profissionais, a custos altíssimos, todos empenhados em sugar o pobre vegetal, preservando sua vida. A casa é uma festa permanente, com champanhe rosé e flores para receber os amigos dela, onde impera absoluta sobre o mausoléu. Tal festim macabro vem consumindo o dinheiro dele rapidamente. Meu dilema é que quero e não quero que meu pai morra. Cada vez que desejo que ele descanse, me acomete um sentimento de culpa, e uma acusação interna de mesquinharia, pois sua herança se torna cada vez menor. A raiva contra a “imperatriz” também é perturbadora. Como o sr. poderia me ajudar?

Quase-órfã

Prezada Quase-órfã,

No fundo do nosso coração nossos sentimentos nunca são únicos. Especialmente quando se dirigem a nossos pais, então… Mágoas e ternuras se misturam, no que os americanos chamam de “mixed feelings” (sentimentos misturados). É o exemplo da maior complexidade que existe no planeta: o cérebro humano. Nenhuma ação humana tem causa única, cada uma puxando para seu lado com peso diferente, e resultando a cada momento na soma das mais pesadas. Chama-se a isso “dialética”, não aquela dos comunistas (hegelliana), mas a do pensamento complexo de Edgar Morin. Não se espante ou se condene por isto. No momento não vejo outra saída senão se conformar, mas quando seu pai morrer você vai novamente enfrentar a mistura de alívio e dor, pois quem morre não é o pobre vegetal de hoje, mas o conjunto de memórias afetivas que ele representou pela vida. Toda minha compaixão por você nos dois momentos. E meu protesto por não deixarem pessoas sem esperança partir em paz, sem medidas heróicas.