quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

A SÍNDROME DO COITADISMO - Entrevista para a revista "Super Saudável"

 


Adenile Bringel

Quem vive reclamando da vida, se faz de vítima para familiares, amigos e no trabalho e procura encontrar sempre um culpado para os seus problemas pode estar sofrendo da síndrome do coitadismo. Em geral desconhecida pelos médicos, a síndrome pode levar ao estresse continuado e até mesmo à depressão. Segundo o psiquiatra Francisco Daudt, a síndrome do coitadismo é um problema de saúde pública porque atinge milhares de pessoas e provoca forte angústia causada pelo sentimento de culpa. Nesta entrevista exclusiva, o médico que atua desde 1978 com psicanálise explica como e porquê a síndrome deve ser tratada para evitar males para a saúde da mente e do corpo.


O senhor afirma que a síndrome do coitadismo é um problema de saúde pública. Por quê? 

É um problema de saúde pública do aspecto mental, da saúde mental da população. É curioso porque, quando se fala em prevenção de doenças, em geral se pensa em tratamento de água, em rede de esgoto, em vacinação, e dificilmente se pensa em prevenção de perturbações mentais. Por exemplo, temos um problema de saúde pública que é a depressão que, seguramente, é a provável maior causa de absenteísmo e abandono de trabalho deste século. E a depressão é uma resposta do organismo ao estresse continuado que, por sua vez, é gerado por uma situação de angústia continuada. As angústias são medos. E podemos ter angústia de ameaça física, de ameaça da perda do amor das pessoas queridas, angústia de solidão, de abandono e de se dar mal na vida. E, finalmente, existe uma angústia significativa, que é a angústia de sentimento de culpa. Curiosamente, a síndrome do coitadismo entra na angústia de sentimento de culpa, porque o coitadismo é um aproveitamento do papel de vítima para fazer com que o outro se sinta culpado.

O coitadismo está presente em todos os setores da sociedade? 

O coitadismo vira uma espécie de praga, uma espécie de doença, por isso falo em síndrome, que é a coleção de sintomas e sinais sem conhecimento de causa específica. No caso, temos sintomas e sinais de pessoas que se apresentam como vítimas da sociedade, sutilmente sugerindo que alguém é culpado da situação de miséria dela e deve indenizá-la de alguma maneira. E isso pode ocorrer de forma macro, por atitudes de governos, por exemplo, e micro, nas famílias ou mesmo no ambiente de trabalho. Essa culpa, despejada continuamente em cima da população de diferentes formas, vai gerar uma angústia que pode ser muito prejudicial à saúde mental, ao equilíbrio mental. Porque o sentimento de culpa é a mais poderosa arma de manipulação pessoal que o ser humano inventou. Se você se sentir culpado diante de alguém poderá chegar ao requinte de pedir por favor para se ajoelhar na frente da pessoa para pedir perdão, de tão aflitiva que a angústia de sentimento de culpa é. Tem um inglês que gosto muito, chamado John Stuart Mill, que propôs a ética utilitarista. Basicamente, ele dizia A síndrome do coio seguinte: “Eu quero que você seja feliz, porque a sua infelicidade atrapalha a minha felicidade.” Essa lógica pode ser usada no dia a dia para evitar a culpa provocada por aqueles que têm a síndrome do coitadismo. 

Em geral, indivíduos pouco otimistas ou que não são felizes com a própria vida têm mais tendência de desenvolver a síndrome do coitadismo? 

Posso afirmar que toda família tem pelo menos um coitadista, que é aquela pessoa que vive se lamentando, se fazendo de vítima e que, no fundo, está querendo dizer que “você que está ouvindo isso tem o papel de me tirar dessa tristeza”. Mas o indivíduo não quer sair da tristeza, porque se alimenta da tristeza e, se estiver feliz, não conseguirá fazer chantagem emocional. Para entender o caminho do coitadista podemos avaliar o chantagista emocional, cuja intenção é que o outro se sinta culpado pelo estado dele. E, sentindo-se culpado, vai ter de pagar alguma coisa. E o fruto dessa chantagem é a extorsão emocional. Como não se fala do sentimento de culpa como um problema de saúde pública, as pessoas não se dão conta de que estão se sentindo culpadas e de que estão sendo ‘chantageadas’. Portanto, o coitadismo é uma moléstia que nos acomete socialmente e também na micropolítica familiar e profissio - nal, quando um indivíduo que tra - balha com a gente acha que temos de fazer o nosso trabalho e o dele. E um dos grandes instrumentos des - se sentimento de culpa é a sutileza.

A pessoa que se faz de vítima tem consciência ou usa isso como fuga, refúgio e estratégia sem perceber a maldade implícita nesta ação? 

A má intenção é muito rara. É di - ferente do psicopata, que tem uma intenção malévola, sabe que é ma - lévola, sabe que é transgressora, sabe perfeitamente o que está fa - zendo e não tem um pingo de con - flito com isso. O coitadista é muito mais o fruto de uma cultura e de uma absorção lenta de uma atitu - de que dá resultado do que um pla - nejamento. Dificilmente uma mãe pensa: “quando eu ficar idosa vou chantagear os meus filhos para que eles me sirvam”. Eu tenho certeza de que isso jamais passou pela ca - beça dela. Curiosamente, o coita - dista frequentemente já foi vítima de coitadismo, assim como os pais espancadores frequentemente fo - ram crianças espancadas. O mais comum é que passem essa atitude adiante, porque estão imersos em uma cultura de violência física (no caso dos agressores), assim como o coitadista esteve imerso em uma cultura de violência psicológica, de violência emocional. Esses chanta - gistas seguramente foram chanta - geados. É comum no consultório eu detectar tendências coitadistas de clientes, mas nunca como sintoma principal, porque o coitadismo não leva uma pessoa a um consultório de psicanálise.

Em geral, o coitadista tem noção da situação que está vivendo e das suas atitudes? 

Não! Jamais. O indivíduo vem para o consultório por sofrimento próprio, por conflito, e eu detecto uma atitude coitadista e digo: “A sua depressão é um problema. Mas você está utilizando a sua depressão para manipular os seus filhos. Então, vamos cuidar da sua depressão e você acaba com essa prática, porque está afastando os seus filhos de você, porque ninguém aguenta sentimento de culpa por muito tempo.” 

Quem tem a síndrome do coitadismo costuma ter algum outro problema, como depressão ou transtorno de ansiedade, por exemplo? 

É claro que o coitadista precisa ter algum sofrimento. Se não tiver nenhum sofrimento não pode utilizar o seu sofrimento para chantagear, por culpa, o próximo. No entanto, esse sofrimento não precisa ser um transtorno psíquico, não precisa ser uma depressão. Mas algum sofrimento o coitadista terá e, se não tiver, inventará, porque a pessoa pode fazer drama por qualquer coisa. 

E a pessoa que faz drama de qualquer coisa frequentemente é deprimida. Mesmo que não tenha sido diagnosticada com depressão? 

Sim. Acontece uma coisa muito interessante no consultório. Algumas vezes, digo para o meu paciente que vou prescrever um medicamento. E o paciente diz que não precisa de remédio. E é verdade, ele não precisa mesmo! Mas o remédio é para a mãe dele! E aí, medicando a mãe, a metade dos problemas do meu paciente acabam, porque, muitas vezes, o sentimento de culpa em relação à mãe acaba por desencadear as angústias que trazem as pessoas ao consultório de Psiquiatria. 

É claro que o coitadista precisa ter algum sofrimento. Se não tiver nenhum sofrimento, não pode utilizar o seu sofrimento para chantagear, por culpa, o próximo.

As mães têm mesmo esse poder de manipulação em relação aos filhos? 

Eu falo frequentemente calcado em estatísticas. E é do conhecimento de todos que as mães com mais de 50, 60, 70 anos foram pessoas mais dedicadas ao lar e à família do que a uma profissão e a uma vida própria. Decorre que o microuniverso de manobras dessas pessoas são seus descendentes, são seus familiares. Por isso que, estatisticamente, acabamos falando da mãe manipuladora. É claro que se a mãe tiver vida própria não vai sugar, ‘vampirizar’ a vida dos filhos e dos familiares. Em inglês tem uma expressão que é ‘Get a life!’, ou seja, arranje uma vida para viver e deixe de ficar vivendo a vida dos outros. Quando uma mãe acredita que os filhos e a família são extensões dela, e não tem vida própria, está propiciando a porta aberta para a manipulação coitadista. 

O coitadismo pode gerar uma doença física? 

Física não, mas mental sim. Porque o coitadismo é uma variante sutil do sadomasoquismo, que consiste em alguém se entreter em fazer os outros sofrerem e sofrer junto. Em geral, quando as pessoas pensam em sadomasoquismo lembram de botas de cano alto, chicote, couro, tachas, mas isso é o sadomasoquismo caricato. O sadomasoquismo mais comum, mais sutil, é frequentíssimo nas nossas vidas. Um exemplo típico são casais que não se separam porque não conseguem e, ao mesmo tempo, se sentem carcereiros e prisioneiros um do outro. Por terem um rancor enorme um do outro vão se jogando farpa o tempo todo, vão se maltratando sutilmente. Frequentemente, um parece cruel e o outro parece vítima. Isso é um sutil sadomasoquismo, que é uma doença mental porque consome energia vital.

Quem é otimista, ama a vida que tem, é feliz e gosta de dar risada, entre outras atitudes positivas no dia a dia, tem menos possibilidade de virar um coitadista? 

Uma pessoa como a que você acabou de descrever dificilmente será deprimida e, mesmo que fique deprimida em algum momento da vida, por causa do estresse ou de alguma perda importante, jamais será coitadista. Agora, eu vou revelar um segredo: os médicos vivem falando de hormônios como dopamina e serotonina, mas a verdade é que não sabemos direito o que se passa na química cerebral. E quanto aos antidepressivos, que funcionam tão lindamente, também não sabemos direito porque funcionam assim. É dureza para um médico dizer ao paciente que não sabe, que não tem resposta para um questionamento. Mas não sabemos um monte de coisas e, entre elas, não sabemos exatamente qual a química cerebral envolvida com a depressão, por exemplo. Claro, sabemos que a tendência depressiva tem um componente genético, tem um componente hereditário alto. Os depressivos crônicos, em geral, têm outros exemplos na família. Depressivo circunstancial, hoje em dia, é muito mais fácil de ser tratado e, realmente, temos como tirálo dessa situação. Já os depressivos crônicos requerem muito cuidado e acompanhamento, porque a doença não vai desaparecer nunca.

Como os médicos podem diferenciar uma depressão crônica de uma depressão circunstancial?

 Frequentemente, a depressão crônica tem início na infância. Por exemplo, eu tive um paciente que, desde os dois anos de idade, tinha crises de enxaqueca brutais. As crises de enxaqueca o acompanharam pela infância afora e ocorriam geralmente às segundasfeiras. Na adolescência, a enxaqueca passou e surgiu a depressão. Portanto, a enxaqueca era a manifestação pouco elaborada da criança em relação à sua doença depressiva. E depressão na adolescência, assim como a depressão repetida, sugere uma tendência a uma depressão crônica. 

O tratamento da depressão crônica é um acompanhamento para a vida inteira. Quem vive ao redor dos coitadistas também tende a desenvolver algum tipo de doença? 

Pode. É curioso, porque o coitadismo gera raiva e estresse para a vítima do coitadista, que acho que é um estresse que grande parte da população brasileira sofre hoje em dia, que é o estresse de raiva contida. 

E o estresse da raiva contida pode gerar problemas físicos, caso não seja devidamente acompanhado e tratado? 

Na verdade, os problemas físicos mais comuns gerados pela raiva contida são gastrite, úlcera e problemas gastrointestinais, que estão muito relacionados ao estresse. Antes de ser psicanalista, eu atuei como médico clínico por algum tempo e atendia muitos pacientes com queixas de problemas intestinais, como a síndrome do intestino irritável, em decorrência do estresse. Esses problemas têm total relação com o estresse, mas não têm tanta repercussão em termos de saúde pública. Esse estresse de raiva contida sobre o qual estou falando causa mais perturbação de comportamento, porque deixa as pessoas facilmente irritáveis. 

Os problemas físicos mais comuns gerados pela raiva contida são gastrite, úlcera e problemas gastrointestinais, muito relacionados ao estresse.

O coitadismo tem cura? 

Tem. Porque as perversões não resistem à exposição ao sol. Se for possível mostrar com clareza que uma determinada atitude é perversa, maligna, maléfica, a pessoa pode perfeitamente mudar o seu comportamento. Eu disse no começo da nossa conversa que o coitadista, em geral, não tem má índole e, quando cai em si, quando lê sobre isso e percebe que está tendo aquele comportamento, costuma dizer: “eu não quero isso para mim, isso é muito ruim”. Isso já é metade do caminho para a cura. 

Como os médicos que não estudam a mente humana podem ajudar o seu paciente a enxergar que está se comportando como um coitadista? 

É muito difícil para um médico diagnosticar coitadismo se nunca ouviu falar disso, porque é uma moléstia da saúde mental. O importante é que os médicos leiam sobre isso e percebam que têm pacientes assim. E, para ajudar esses pacientes, o primeiro passo é dizer: “o senhor ou a senhora tem uma doença sim, mas repare que tem feito uso da sua doença para constranger e conduzir os seus familiares. Eu aposto que o senhor não faz isso por mal, mas isso pode afastá-los ainda mais. E isso é uma consequência de que o senhor não está aplicando a sua vida em uma coisa do seu interesse genuíno, em algo que lhe dê alegria e prazer de viver”. Então, o médico diagnostica e mostra uma saída. Não é para diagnosticar e deixar o paciente culpado por ser coitadista, mas mostrar que tem uma saída e ajudá-lo a encontrar esse caminho.

A síndrome do coitadismo deve ser tratada como um desequilíbrio psiquiátrico? 

A psicoterapia pode ajudar muito o coitadista a mudar esse comportamento. Mas, como eu já disse anteriormente, um coitadista não vai à psicoterapia buscar alguma ajuda, a menos que tenha um conflito com a sua prática coitadista. Se o paciente não tiver conflito, jamais irá. 

O que podemos fazer para que essa síndrome não se dissemine em nossas vidas? 

Basicamente, devemos fazer tudo de forma consciente. Tornar-se consciente de que a síndrome existe e de que é maléfica, que prejudica quem faz e quem recebe. Não é algo para ser demonizado. O próprio coitadista, que está imerso na doença, se perceber e disser que não quer mais isso, vai cuidar e tornar-se mais consciente. Então, a última palavra é tornar-se consciente.


(Entrevista para a revista "Super Saudável", 2015)