domingo, 21 de maio de 2023

DIAGNÓSTICOS EM PSICANÁLISE 3º capítulo - Narcisismo

 



DIAGNÓSTICOS EM PSICANÁLISE 3º capítulo.

Narcisismo.

Nascemos narcisistas (Freud o chamou de narcisismo primário), ignorando o mundo externo, que dirá a complexidade de outra pessoa.

Somos despertados para isso através do incômodo: a luz da sala de parto, o som, a manipulação, a fome, o frio. Aspectos interessantes do mundo virão depois, nos farão amar e sorrir. E nos interessar por ele.

Mas há uma fragilidade herdada para alguns (em torno de 7%, um pouco mais comum em homens): o narcisismo. Nesses, o mundo lhes interessará como espectador de si, como serventia de adorno, como comparação/espelho, como objeto de inveja, como tela projetiva das suas características. Nunca como algo com existência própria a considerar.

Importante: Nenhuma das características citadas aqui é fruto de malícia, escolha, mau caráter, má intenção. Elas acontecem apenas porque o perfil narcisista veio com a máquina: é uma triste limitação, mas com alguma margem de conserto, caso a pessoa se dê conta do que sofre e queira corrigir isso.

Sua incapacidade de empatia, de se pôr na pele de quem é diferente e tentar descobrir como alguém sente ou pensa, é secundária à falta de interesse pelo outro. A menos que esse outro lhe seja de alguma serventia ou incômodo.

As pessoas, para o narcisista, se dividem em duas categorias: os que lhe podem prover algo e os que podem tirar algo dele (“suppliers and takers”). Os provedores serão buscados; os que podem tirar, eliminados.

Esse provimento pode ir da mera atenção ao sustento, passando pelo ornamento de fama (é comum que o narcisista seja um “name dropper”, alguém que vive citando nomes de famosos, seus contatos importantes serão sempre lembrados), pelo aplauso e elogio, pela adoração (é comum que o narcisismo incida junto com a boa aparência, ou a beleza ajuda a formação e desenvolvimento do narcisismo: a criança recebe atenções e elogios desde pequena).

A parte da retirada, da subtração (takers) merece atenção especial por parte do narcisista. Sua principal sensibilidade será para a retirada de valor de sua autoimagem: reparos, críticas, qualquer indício de que o outro não lhe acha perfeito será motivo de rompimento, cancelamento, bloqueio nas redes sociais, queixas e reversão de culpa (“ele disse que eu sou menor, mas quem é menor e ele!”).

É importante notar que um supplier pode se transformar facilmente num taker: um “filho/filha que deu desgosto”, ou que não lhe orna mais; alguém que lhe apontou algum defeito, mesmo depois de anos de supplier. Nesses casos, o descarte virá rápido, e a pessoa sumira da cabeça do narcisista: narcisistas não sentem saudades de pessoas, e sim de situações.

Seria uma condição inconsciente de super insegurança sobre seu próprio valor, que aparece como necessidade permanente de afirmação desse suposto valor. Uma espécie de obsessão de autoafirmação.

O narcisista funciona permanentemente como se estivesse à beira do abismo, o abismo de virar merda. Por isso eles são os mais suscetíveis ao vício sadomasoquista fodão-merda: afirmam-se fodões por medo de se verem merda. Pergunte a um deles se isso é verdade, e dirão que nunca se imaginaram assim. Donald Trump é a maior caricatura do narcisista.

Os narcisistas que buscam terapia só a tolerarão se o terapeuta não cair na besteira de lhes fazer um reparo, de lhes apontar um defeito, uma falha que os diminua: mudarão de terapeuta ato contínuo, desqualificando o demitido. Só lhes serve o terapeuta “lustra-neura”, passador de pano, reafirmador de sua condição de vítima.

A inveja é o motivo mais comum para um narcisista pensar em alguém. Como o outro só lhe serve de espelho (pois não tem existência própria), se ele se vê melhor (ou se o outro lhe adorna), tudo bem. Mas se o outro lhe parece melhor, tem mais do que ele, o ódio da inveja lhe entra na alma.

Mas, vamos lembrar, há diversos graus de narcisismo e ninguém está isento de algum grau. As características descritas acima devem ser avaliadas de maneira percentual: pergunte-se, “de zero a dez, quanto eu tenho disso?” Se a contagem não for alta, você não é um narcisista genético.

Mesmo porquê, existe também o narcisismo do tumulto mental: condições perturbadoras, estresses e depressão, assim como um TDDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade) mais grave podem alugar a cabeça de modo a não haver espaço para mais ninguém.

É o “narcisismo da farpa no dedo”: “meu dedo com farpa é a coisa mais importante do mundo”… até que a farpa saia dali.

Por fim, há narcisistas que veem sua condição como um problema, e que chegam à análise querendo mudar. São capazes de aprender empatia como se fosse uma língua estrangeira, são capazes de uma substancial diminuição da percentagem de seu narcisismo.

(em breve os próximos capítulos)



ATENDENDO AOS ALUNOS: DIAGNÓSTICOS EM PSICANÁLISE - 2º capítulo - Perfis mentais genéticos: obsessivos e narcisistas

 


ATENDENDO AOS ALUNOS: DIAGNÓSTICOS EM PSICANÁLISE - 2º capítulo
Perfis mentais genéticos: obsessivos e narcisistas

Um dos principais cuidados que um psicanalista precisa ter é não tirar os outros por ele. Há várias “formatações cerebrais” com as quais se nasce, é preciso entender qual.
Nem estou falando de síndromes mais evidentes, como o espectro autista ou a de Down, mas especificamente de duas genéticas: o caráter obsessivo e o narcisismo. É pura loteria genética, mas… se a pessoa é fruto de dois narcisistas, ou de dois obsessivos, as chances de sê-lo também são altíssimas. Começando pelos…

1. Obsessivos:

Podem ser detectados desde a tenra infância, pela obsessão detonada na época em que ganham capacidade de controlar a liberação das fezes. A obsessão básica é ter controle e ter pureza. Sobre as sujeiras físicas (o cocô) e sobre as sujeiras de espírito (a raiva). O antimodelo maior será “jogar merda no ventilador”: a explosão de raiva.

Sua concepção de tudo é radical e extremada: certo ou errado; limpo ou sujo; bom ou mau; amor ou raiva; arrumado ou bagunçado; pontual ou atrasado; zero ou cem.

Rigidez e rigor imperam. Não há meio-termo, não há flexibilidade, não há ambivalência (quando ambos valem), não há tolerância: todos os primeiros ítens são bons e puros; todos os segundos são maus e sujos.

Serão de dois tipos:

1. Os hiperculturais: meticulosos, limpos, ordeiros, arrumados, bonzinhos, estudiosos, prestativos, obedientes, amorosos e… controlados/controladores.

2. Os contraculturais (também chamados de “rebeldes” ou “prisioneiros da vingança”): tudo ao contrário do que os pais mandaram, o avesso de todos os ítens acima.

(Em breve os próximos capítulos)



DIAGNÓSTICOS EM PSICANÁLISE - 1º capítulo

 


ATENDENDO AOS ALUNOS:

DIAGNÓSTICOS EM PSICANÁLISE - 1º capítulo

Os psicanalistas se desinteressaram da busca da cura por vários motivos: insucesso terapêutico, sim, mas também porque não aprendem a diagnosticar as doenças psíquicas (psicopatologia).

A psicopatologia psicanalítica não é igual à da classificação habitual das doenças mentais do C.I.D. (Código Internacional das Doenças, cuja lista oficial tem mais de 300 ítens).

Os alunos me pediram; fiz então um roteiro diagnóstico condensado para eles, tudo voltado para aquilo em que a psicanálise tem efeito.

Sua base é mais simples, mesmo porque há várias doenças que estão fora do alcance da terapia psicanalítica. As psicoses, p.ex. Eu não vejo como alcançá-las pela psicanálise, apesar da importância em diagnosticá-las, para distingui-las das neuroses.

Esse roteiro deve morar em suas cabeças. Não é o caso de, na entrevista com um novo cliente, sair perguntando ítem por ítem, mas é importante saber o que pesquisar.

A psicanálise que proponho busca a cura das doenças. É certo que cura, em psicanálise, é sempre diminuição percentual das doenças psíquicas, que não se zeram nunca. Mas para buscar a cura, o primeiro passo é o diagnóstico. Vamos a ele então.

(Em breve os próximos capítulos)




A FUNÇÃO DO INCONSCIENTE - O AMIGO PEGUNTA

 



De Fernando Coelho: O inconsciente está a serviço de quê?

Francisco Daudt: Da mãe natureza. É nele que moram os softwares inatos de busca de prazer que nos levam à reprodução. É o DNA fabricando suas cópias. É de lá que a natureza nos manipula.

Claro, também têm os softwares de autopreservação, pois pela lógica do DNA não se pode morrer antes de reproduzir a cópia que ele deseja.

No nosso caso, o mais sensível deles é o que causa medo de desamparo. É esse que vai levar de volta ao inconsciente qualquer desejo que nos traga esse risco, num mecanismo de defesa chamado “repressão”.

O reprimido é o inconsciente que a psicanálise tornou mais famoso, pois ele causa bagunça em nossas vidas: as doenças psíquicas. Mas nem de longe é o único morador do inconsciente.

Espinosa disse que “a liberdade consiste em conhecer os cordéis que nos manipulam”. É por isso que eu gosto tanto da psicanálise e da psicologia evolucionista: cordéis culturais e cordéis naturais.




quinta-feira, 11 de maio de 2023

O ALUNO PERGUNTA - Sobre Dalai-Lama



De Pedro Buarque Bisaglia : Sobre o Dalai-lama.

Admitindo que o último episódio seja fruto de demência, pergunto:

A demência pareceu diminuir a censura do superego, mas não os impulsos do Id.

Porque?

Francisco Daudt: Não tenho nenhum diagnóstico sobre o caso em si, por falta de dados e de interesse. Tenho diagnóstico sociológico sobre a horda de demonstrações de superioridade moral.

Quanto à demência, o Id é mais primitivo/raiz que o Superego, que é um acréscimo cultural aos programas de autopreservação. É compreensível que o Superego seja destruído antes. 



domingo, 19 de março de 2023

AVALIAÇÃO DE SAÚDE PSÍQUICA/EMOCIONAL

 



Depois de muito debate interno e de muita reflexão, concluí que a saúde psíquica tem várias faces, tem a singularidade e a complexidade humanas, portanto é difícil desenhá-la com um perfil em comum, exceto pela baixa quantidade de doenças.

Eu pensava em diagnosticar saúde psíquica através de três parâmetros percentuais. Quanto mais próximos de 100% (taxa ideal e inatingível) eles estivessem, mais saúde haveria:

1. Independência (sustento próprio) e autonomia (poder mandar na própria vida); isso inclui baixo custo emocional para se sentir amparado na vida.

2. Conhecimento dos próprios desejos;

3. Capacidade de criar circunstâncias favoráveis (habilidade de negociação com o mundo) para a realização desses desejos.

Mas essa abordagem implica uma certa imposição de um ideal de liberdade, e isso me criou dificuldades a usá-lo, pois sou avesso a qualquer imposição.

Por exemplo: uma pessoa tem na fé religiosa sua principal fonte de amparo. Isso supõe um arco de possibilidades que vão desde a tranquila ideia da crença num ser protetor (“entrego nas mãos de deus o que não posso controlar, e ele cuidará de mim”), a uma vassalagem que lhe rouba a vida, para que seu grupo religioso a ampare.

Ou seja, há fés mais saudáveis e fés mais doentes. A variável seria: o quanto te custa o amparo da fé? Quanto menos custoso, mais saúde, e vice-versa.

Portanto, a pergunta sobre a saúde passa a ser sobre o preço do amparo: o quanto te custa sentir-se bem? Qual é o preço do pedágio que você paga, para levar sua vida em paz?

O pedágio de preço mais alto é o da doença: as doenças psíquicas são mecanismos de defesa contra a angústia de desamparo, que roubam terreno da pessoa; que lhe roubam vida; que resultam de suas condições históricas - desde a infância - de negociação com o mundo. Se elas foram muito desfavoráveis, a tendência é que você não consiga alterá-las, mesmo depois de adulto: inconscientemente, você as repete.

E ainda há as condições de hardware, as limitações psíquicas que não vêm do desamparo, mas de condições genéticas, como o espectro autista, a tendência depressiva, o Distúrbio de Déficit de Atenção/hiperatividade (DDAH), os gatilhos psicóticos e a psicopatia, e possivelmente o narcisismo herdado.

De modo que voltei a considerar a ausência percentual de doença psíquica como um parâmetro mais confiável de avaliação de saúde. Ela mostra o quanto se está pagando para ter-se um certo equilíbrio.

O que me faz lembrar, com certa dose de autoironia, do axioma do Barão de Itararé: “Nada pior para a saúde do que a doença”…


O CÔMICO, SEGUNDO FREUD E ARIANO SUASSUNA - O AMIGO PERGUNTA

 


De Claudio Kuyven: “Ariano Suassuna conta uma história e fala da visão de Freud sobre o cômico. Isso é verdade mesmo? Freud disse isso?”

Francisco Daudt: Em seu artigo “O chiste e sua relação com o inconsciente”, Freud considera dois tipos de humor assim relacionados: a piada com intenção sádica e a com intenção sexual. Ambas usam da sutileza para melhor lograr seu intento.

O obsceno, de que fala Suassuna, seria o chiste sexual intencionado. O do exemplo dele não é o sexual, é o sádico: sutilmente, o profeta chamou seu desafeto de filho da puta. A “obscenidade” seria chamá-lo assim com todas as letras, mas aí não teria efeito cômico, não suavizaria o Superego.

Os exemplos de Freud são preciosos: no de chiste hostil, conta que Napoleão deu um baile em Roma para comemorar a conquista da Itália. Dançando com uma italiana, perguntou-lhe rudemente em francês se todas as italianas dançavam mal assim. Ela lhe respondeu em italiano: “No, ma buona parte!” Como Napoleão era de origem corsa, e a Córsega era parte da Itália, ela aludia então a sua origem, usando seu nome em italiano.

O chiste sexual foi feito por um comprador de roupa feminina, que se encantou com a vendedora. Esta mostrou-lhe o vestido que usava como uma possibilidade de compra. Ele lhe respondeu: “O vestido é lindo, mas gostaria de vê-lo em minhas mãos”.

Em ambos os casos, a resposta foi um sorriso de apreciação, meio caminho andado para a aceitação do insulto… e do flerte.