domingo, 19 de março de 2023

RESTOS VITAIS

 



O luto de gente viva costuma acontecer como efeito dos rompimentos amorosos, amizades que terminam, parentes que se afastam, fins sempre um tanto incertos se comparados ao luto da morte, em que você vê o defunto.

Mesmo nos da morte, se ela não foi constatada (como no caso dos desaparecidos, vide as Mães da Praça de Maio), a incerteza assombra, a esperança atormenta e não dá o descanso da paz.

Esperança, esse é o nome do perturbador que prolonga o luto: um vaivém de dor e alento que pode se estender por anos.

O mesmo ocorre em relação a parentes afetados por Alzheimer e outras demências. Flashes de lucidez, ainda que fugazes e decrescentes, dão a impressão de que a pessoa ainda está ali. Dão esperança… e dor. E também podem fazer o luto se arrastar por anos.

Recentemente, um outro grupo que produz o mesmo efeito me chamou a atenção: os que vão sumindo, morrendo como pessoas, dominados pelos vícios.

Claro, os viciados em crack são a caricatura dessa situação. Mas alcoólatras e - incrível - sadomasoquistas fodão/merda (vícios associados são comuns) também podem ir sumindo como pessoas, devorados por sua doença incurável.

Incurável? A esperança diz reiteradamente que não, que eles têm chances de sair dali. Há neles também flashes de identidade, volta e meia parece que a pessoa ainda está lá. É assim que o luto se arrasta, numa curva declinante que parece infindável.

E não há o que fazer senão manter essa conversa interna, dar-lhes o apoio possível… mais para se ter a sensação de que tudo que era possível foi feito, e assim evitar o sentimento de culpa pelo abandono.




PORCHAT: UM BOM EXEMPLO DE SENSO INCOMUM

 



Ele pensou bem, e… decidiu que não quer ter filhos.

Havia um casal de parentes na minha infância, Cássio e Helena, que era acusado de egoísmo, pois decidiram viver em lua-de-mel e nunca ter filhos. Hoje penso que, mais que criticados, eram invejados.

As famílias eram grandes, “aceitareis os filhos que Deus lhes der”, os padres se interessavam pelo grande número de “fiéis”; os pais não discutiam, entravam na linha de montagem sem questionar seus desejos e/ou competências para a tarefa.

A humanidade tem 7,3 bilhões de pessoas. Gente não é artigo em falta. Ter filhos contra a vontade não ajuda na educação deles. Porchat nos faz um bem por afirmar um direito incomum de indivíduo.





terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

PSICANÁLISE X ARTE

 



UMA AVENTURA NA ABSTRAÇÃO (usando o App Zen Brush):
“Um elefante no meio do temporal”.

A arte e a poesia permitem viagens pessoais na maionese, interpretações que não se pretendem "verdadeiras", feitas apenas para o deleite de quem as contempla.

A psicanálise, não. A psicanálise se debruça sobre o universo psíquico de alguém que sofre. Ela precisa estar comprometida com a busca do entendimento verdadeiro.

É esta a origem da palavra: psíco = mente, + análise = decompor em partes para entender.






ALCOÓLICOS ANÔNIMOS VIA INTERNET: UM BOM FRUTO DA COVID

 



Dois empecilhos ao sucesso dos Alcoólicos Anônimos: o rótulo e a presença na reunião. São ambos agravantes vindos do Superego: “eu só bebo socialmente, eu não sou um merda de um alcoólatra, nem estou indo a uma reunião de merdas”.

Pois as reuniões se dão, depois da Covid, remotamente. Ainda as há presenciais, mas hoje tem-se essa opção. Isso reduziu a resistência do Superego ao tratamento. Ou seja, o anonimato - que já era um facilitador - se tornou maior ainda. Com a vantagem de você poder ser um visitante, experimentar sem participar. Deixar para decidir depois de ter olhado debaixo da cama, e descoberto que o bicho-papão não estava lá.

A principal ferramenta anti-Superego continua lá: o acolhimento afetivo de gente embarcada na mesma luta, ninguém é melhor que ninguém, todos se apoiam mutuamente, todos querem o bem de todos e de cada um.

Os AA têm sido uma ferramenta coadjuvante muito valiosa para o meu trabalho. (Link abaixo).


A senha do on-line é 000 000.



ENTREVISTA EM PSICANÁLISE: AVALIAÇÕES PERCENTUAIS - O AMIGO PERGUNTA

 


“O que você faz, na entrevista com um novo possível cliente?”

Francisco Daudt: Tudo o que servir para o principal propósito da psicanálise que faço: a cura das doenças psíquicas e o aumento do percentual de saúde, para que ele tenha mais chances de buscar felicidade.

Psicanálise é diagnóstico. Quero fazer diagnósticos percentuais, de sua saúde e de suas doenças. A saúde é avaliada sabendo se a pessoa é independente, autônoma, manda em sua vida, faz o que gosta, é capaz de amar e ser amada, de gostar e ser gostada, capacidade de pensar de maneira reflexiva, de ver problemas em si, de ver seus limites, de conhecer seus desejos, e finalmente se se sente amparada em termos afetivos.

Imagine-se respondendo de zero a dez a cada um desses ítens, e você terá um percentual aproximado da saúde que o cliente tem. Seu índice de saúde vai ser crucial para saber como lidar com suas doenças.

Só depois eu vou pensar em suas doenças e que percentuais elas ocupam na vida do cliente. Seu perfil, de zero a dez, é obsessivo, é narcisista?; tem vícios de substâncias, comportamentais, tem sintomas neuróticos, fobias, pânicos? Distúrbios psiquiátricos, DDAH, etc.?

Tudo de zero a dez.

Isso não se dá como se fosse uma entrevista com formulários a preencher, a coisa acontece como uma conversa gentil e atenta, de alguém que está profundamente interessado no outro. Essas cláusulas estão na minha cabeça, e eu as apresento num contexto em que elas se mostram pertinentes, dando espaço para que o cliente fale de si como quiser (o que me faz aprender sobre ele).

Finalmente, apresento-lhe o que está ao meu alcance fazer por ele, e como proponho que isso seja feito, frequência semanal (raramente mais que uma), horários (a sessão começa na hora certa, e termina 50 minutos depois), preço, formas de pagamento: é a parte do contrato claro, pois clareza e transparência servem ao cliente: nada, no meu trabalho, será misterioso ou obscuro, pois essas coisas servem ao Superego, e não ao cliente.

Como não cobro pela entrevista, pois a considero como um test-drive, ele me dirá se está dentro ou não. Se estiver dentro, a entrevista lhe será cobrada, pois no preço do carro está incluído o custo do test-drive.




PSICANÁLISE: A QUEM SE DESTINA? (O AMIGO PERGUNTA)

 



M. Cristina Ribeiro: “Dúvida: a psicanálise é só para quem sofre?”

Francisco Daudt: É, eu suponho que seja esse o principal motivo para alguém procurar a psicanálise clínica e pagar caro por suas sessões. Dizem que há também o autoconhecimento como motivação, mas, sem sofrimento? Não sei… sinceramente, eu não me interesso muito pelas razões que me fazem gostar de sorvete de pitanga.

Mas a psicanálise não acontece só nos consultórios. O interesse nela como corpo teórico, como instrumento de saber como a mente funciona, também é um grande motivador para seu aprendizado.

Mesmo porque a psicanálise tem duas faces: a pessoal e a social. A face social da psicanálise serve a inúmeros propósitos, desde o científico até metas úteis, como a educação dos filhos, a avaliação da própria saúde psíquica, a maneira de distingui-la de suas doenças, o aprendizado da complexidade humana, os vícios comportamentais presentes na sociedade e na política, o entendimento dos próprios desejos…

Por fim, pessoas curiosas que se debruçam sobre a teoria psicanalítica, sem terem que “se submeter” a uma análise (odeio essa expressão!), são muito bem-vindas, pois podem contribuir criticamente para a epistemologia psicanalítica: vale dizer, para a busca de uma teoria da mente humana que seja mais próxima do verdadeiro.

Adoro críticas e questionamentos sobre a psicanálise. Meu farol-guia sempre foi a proposta de Karl Popper (o terceiro na foto, ao lado de Darwin): faça sua teoria clara e vulnerável à refutação, e ela estará mais próxima do método científico.



quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

OBSESSIVOS E A FASE ANAL

 



Ser obsessivo é ser correto, limpo, arrumado, simétrico, fazer bem feito, entregar o prometido, ser pontual, não ter dívidas, tender ao pensamento binário (“ou isto, ou aquilo”, sem meio-termo, aquela maldição da Cecília Meirelles), ter exigências nas alturas sobre si mesmo, ter exigências de pureza idem, detectar máculas mínimas que desqualificam o todo… e, estatisticamente, ter uma inteligência acima da média.

A obsessividade é herdada, nasce-se com ela. Crianças de dois anos super arrumadinhas com seus brinquedos e objetos são um exemplo de que esse traço de personalidade não é aprendido, não é cultural.

Nascer obsessivo pode ser uma benção ou uma maldição, depende se a obsessividade é uma ferramenta sua, ou se você é um escravo dela. Lembrando: no funcionamento de nossa mente, tudo é percentual, ou seja, pode haver certa escravidão no obsessivo-ferramenta, e vice-versa, certa ferramenta no obsessivo-escravo.

Em tempo, o obsessivo-escravo pode sê-lo de forma contracultural: fazer tudo obsessivamente ao contrário do que mandam seus pais. É o prisioneiro da vingança.

Mas, e a fase anal com isso? Ah, é a dupla controle-pureza! A questão do controle está acima de tudo o mais, para os obsessivos. Quando ele aprende o controle dos esfíncteres, e que há lugar certo para liberar suas “impurezas”, aquilo lhe dá um poder especial de negociação com o mundo: se o azar lhe deu pais muito cobradores, sua tendência será ir para o “eu não preciso que ninguém me cobre, eu faço tudo melhor do que me pedem”. É o obsessivo hipercultural, o tipo mais comum.

É assim que se forma o Superego de um obsessivo. Em termos afetivos, é uma droga: ele não aceita ambivalência. Por isso, reprime a raiva que poderia ter de seus amparadores (geralmente, os pais). Se é uma questão de “ou isso, ou aquilo”, diante do dilema “você afinal ama?, ou odeia seus pais?” Ah, pode ter certeza de que o “ter raiva deles” vai sumir da consciência…

…produzindo esquisitices, como as neuroses obsessivas, as fobias, os ataques de pânico. E produzindo vícios, como o sadomasoquismo fodão-merda, e outras formas de s&m.

Sabe o “cutting”? Esses adolescentes que se cortam? Eles são obsessivos com raiva voltada para si mesmos, já que ela não pode ir para o endereço certo…