O AMIGO PERGUNTA
“O que é o trauma, em psicanálise?”
Francisco Daudt: O trauma é um acontecimento recente externo ou interno que impõe na pessoa uma desorganização mental (de seu jeito de pensar) e produz uma reorganização problemática: a doença psíquica.
Ele é o detonador de uma bagunça prévia que pode ter durado anos, geralmente vinda dos conflitos da pessoa com seus amparadores da infância - como os pais, p.ex.
Um exemplo típico é o da fobia: a criança já vinha tendo raiva reprimida contra seu pai, p.ex., quando uma barata entrou voando em casa e veio em cima dela.
A partir daquele momento, a bagunça mental que seu conflito com o pai causava se desloca para seu “conflito” com a barata: “não é meu pai que pode me atacar, eu não tenho nenhum problema com ele. Meu problema é com as baratas”. A raiva do pai foi reprimida e a fobia apareceu em seu lugar.
Então, o voo da barata foi para a criança um trauma. Outras crianças, sem o conflito paterno, poderiam passar pela mesma experiência e simplesmente matariam a barata.
É claro, também existe a síndrome pós-traumática, tipo “neuróticos de guerra”, quando o estímulo atual é tão desestruturante que nem precisa de bagunças prévias para causar a doença. Mas essa é rara, não é tão cotidiana quanto a que gera neuroses e vícios.
E o acontecimento mental, como pode ser traumático? Ah, o melhor exemplo desse são as releituras dos “abusos sexuais da infância”: a criança participou daquela brincadeira divertida com a pessoa mais velha, achou tudo ótimo, inclusive a atenção que recebeu, mas… um dia ela foi informada de que aquilo era um horror, que era pecado, que era uma violência, que podia marcá-la para sempre. A partir daí a coisa é lida como uma bagunça horrível que exige rearrumação mental.
O exemplo clássico é o de Édipo: ele matou um viajante que tentou matá-lo. Foi em legítima defesa, portanto. Ele decifrou o enigma da Esfinge e livrou Tebas de sua praga, foi recebido como herói e forçado a se casar (“como prêmio”) com a rainha viúva.
Até aí, tudo bem, a vida seguia tranquila. Um dia descobre que o cara que matou em legítima defesa era “na verdade” seu pai (biológico) e que a viúva hoje sua esposa era “na verdade” sua mãe (biológica).
Aí se deu o trauma: ele se considerou (ou melhor, seu Superego o considerou) um monstro e cegou-se em automutilação, um vício sadomasoquista gerado pelo trauma daquela “descoberta”.
Nunca vi exemplo melhor das injustiças do Superego do que essa história.